A crise económica que se arrasta desde 2008, as ondas de refugiados vindos de vários conflitos que não conseguem uma resposta consistente por parte dos 28 Estados-membros e o Brexit, que retira um dos maiores parceiros da construção europeia do centro deste projeto, estão a abalar a identidade da União Europeia, enquanto o euroceticismo e os extremismos alastram por vários países. Mas depois de anos de desinvestimento na cultura, com uma média de menos de 1% do PIB nacional a reverter para este setor nos 28, pode a cultura ser o cimento que a Europa precisa?

A cultura dá um significado aos indivíduos. A cultura, a civilização e a arte estão ligadas e em permanente evolução. E a cultura é também um instrumento político“, diz Luca Jahier, presidente do Grupo dos Interesses Diversos do Comité Económico e Social Europeu, que representa as organizações não-governamentais neste órgão da União Europeia. Na conferência “Uma Esperança para a Europa! Cultura, Cidades e Novas Narrativas”, que decorreu em Bruxelas, a Comissão Europeia, o Comité Económico e Social e o Parlamento Europeu defenderam um maior papel da cultura e dos produtores de cultura na construção do ideal europeu, afirmando mesmo que é através das artes que se pode “construir um novo sonho europeu”.

Isabel Capeloa Gil, professora Associada da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e vice-reitora da Universidade Católica Portuguesa, lembra que Jean Monnet — um dos pais fundadores da União Europeia –, terá dito que, olhando para o projeto europeu, teria começado não pela economia, mas pela cultura, ilustrando assim a importância que assume na construção da Europa. “A cultura não é uma entidade abstrata e não serve como um fait divers para a política dos Estados. O dinamismo dos nossos criadores é um marco e isso aliado à nossa herança patrimonial, faz com que sejamos o maior centro cultural do mundo“, afirma a também investigadora ao Observador.

“Não devemos pedir desculpa pela nossa cultura. Devemos ter orgulho no futuro da Europa”, disse Nymand Christensen, diretor adjunto da direção-geral da Cultura e Educação da Comissão Europeia

Nymand Christensen, dinamarquês, defendeu que “numa altura complicada em que a Europa enfrenta a sua pior crise económica”, o investimento tanto na cultura como na educação são essenciais para enfrentar o futuro, especialmente para motivar os mais jovens. “É importante que continuemos a garantir que a Europa está assente em valores e não apenas em tratados e, para que isso aconteça, a cultura é essencial para preservar esses valores”, afirmou o diretor adjunto da direção-geral da Cultura e Educação da Comissão Europeia, defendendo que a União tem competências nestas matérias e que a cultura tem de servir para “unificar” todos os Estados-membros.

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Um ideal para unir todos os europeus

Assim, no início de junho, a Comissão Europeia elegeu a cultura como um dos seus principais fatores da diplomacia externa, utilizando-a para projetar a visibilidade da União junto de países terceiros. “A cultura é uma ferramenta poderosa para construir pontes entra as pessoas e proporciona uma compreensão mútua. Pode ser também um motor para a economia e para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo que encontramos desafios comuns, a cultura pode ajudar-nos a lutar contra a radicalização e a promover uma aliança de civilizações contra aqueles que nos querem dividir“, argumentou a italiana Federica Mogherini, Alta Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança.

No entanto, operacionalizar uma aposta na cultura a nível europeu é mais fácil de promover que de concretizar. Silvia Costa, eurodeputada italiana que preside à comissão de Cultura e Educação no Parlamento Europeu, defendeu que estas duas matérias são ainda alvo de “medidas muito tímidas” por parte da Comissão e que não se deve prestar apenas atenção à inovação tecnológica, mas também tem de se dar destaque à inovação social promovida pela cultura nos seus mais diversos campos. Uma medida que tem mudado muitas cidades na Europa, segundo a eurodeputada, é o título de Capital Europeia da Cultura atribuída anualmente a algumas cidades europeias. “Este título mudou a configuração das cidades europeias e promoveu a sua reconversão“, afirmou Silvia Costa, afirmando que a próxima luta inter-institucional é conseguir que 2018 seja Ano Europeu do Património Cultural.

Para a portuguesa Isabel Capeloa Gil, a Europa tomou a sua cultura como algo garantido e “perdeu a consciência que para a próxima geração os valores culturais não são apreendidos automaticamente”, devendo haver incentivos para que isso aconteça. “Partilhamos valores, um modelo estético e literatura. O nível de diálogo entre europeus une muito mais do que as divergências causadas pela economia e pela política”, afirmou a docente universitária, acrescentando que a resposta para os problemas da Europa é uma maior aposta na cultura, algo que tem sido esquecido nos últimos anos. Mesmo antes da crise, a tendência para o desinvestimento da Cultura na Europa já existia e que é mesmo “desprezível” entre os 28.

Ao mesmo tempo, esta tendência está a ser invertida na Ásia. “O chineses querem transformar a China que é fábrica do Mundo em estúdio do Mundo”, garantiu ainda a investigadora.

Como revitalizar a cultura na Europa? Portugal dá exemplo

No relatório “Cultura, Cidades e Identidade na Europa” — apoiado pelo Comité Económico e Social Europeu e desenvolvido pelas organizações Culture Action Europe e Agenda 21 for Culture –, divulgado na passada segunda-feira em Bruxelas, são propostas algumas medidas para que a aposta da Europa neste setor seja concretizada. A cultura deve ser desde logo considerada como um dos pilares do modelo crescimento sustentável, para além do aspeto social, económico e ambiental. O impacto da cultura nas cidades e na vida urbana das comunidades deveria fazer com que se reconsiderasse o modelo, segundo os autores do estudo.

Numa Europa que está a acolher milhares de refugiados, o estudo indica também que a cultura deve tomar o lugar dianteiro na integração de quem chega aos 28, potenciando a partilha de experiências e apostando multiculturalismo para criar uma identidade comum. Como exemplo, o estudo indica o Festival Músicas do Mundo, em Sines, em conjunto com o TANDEM (programa de intercâmbio de organizações e produtores culturais) e o Fórum Mundial das Cidades, em Milão. Quanto ao Músicas do Mundo, é considerado como um evento que celebra outras culturas e vários movimentos em todo o globo, lembrando a história da cidade de Sines. Desde 1999, data da primeira edição, este festival já recebeu mais de 940 mil visitantes.

Já na importância da cultura na revitalização das cidades, Lisboa também entre as melhores práticas, nomeadamente com o projeto Galeria de Arte Urbana que promoveu a intervenção de artistas urbanos em diferentes partes da capital. Os autores indicam que este projeto “foi para além do sucesso inicialmente esperado”. Outros exemplos de atividades que levaram à reconversão das cidades são Barcelona com o projeto das Fábricas de Arte, onde se promove a criatividade artística, e os Hubs Culturais na Eslováquia, que deu o tiro de partido para alguns dos locais mais criativos na cidade de Kosice.

Em 2050, estima-se que 70% da população mundial viva em cidades. Daí o papel destes centros urbanos na projeção e promoção da cultura. No caso da chegada dos refugiados à Europa, as cidades são os principais agentes de integração, agindo como “laboratórios para estas abordagens”, afirmou Paul Dujardin, diretor artístico do Centro de Belas Artes de Bruxelas (Bozar), indicando mesmo haver uma vantagem na diversidade e com a chegada de diferentes sensibilidades pode reforçar o panorama cultural da União Europeia.