Não é terça-feira, nem chegou às cinco da madrugada para uma manhã de Feira da Ladra, mas André Silva lá acaba por se encontrar com os versos da “Terça Feira” de Sérgio Godinho quando, ali no meio dos “cacos e trapos”, assume as “contradições” da vida que o trouxeram onde está. Também regateia “amarguras e ilusões”, mas já iremos a esse verso da mesma canção, neste texto que acompanha a sessão fotográfica do líder do partido Pessoas-Animais-Natureza no local por ele escolhido: a secular feira lisboeta de venda de objetos usados.
Pelas 9h30 da manhã, a feira ainda vai longe do “quase transborda de abarrotada” que o músico pôs em pauta, embora já se circule entre alguns encontrões. O deputado passa despercebido. Quem passa só olha duas vezes quando dá pelo aparato de focos de luz e objetivas, mas segue sem perguntas. O homem que vende calças ainda pede uma fotografia com o fotografado. Sabe quem é?”, pergunta-lhe à parte o Observador. Encolhe-se todo, faz um tímido sinal que não, enquanto André Silva espreita pelo canto do olho. “É o deputado do partidos dos Animais”, dizemos-lhe. “Aaaaahhhhhhh!”. “E das Pessoas e da Natureza”, corrigem André Silva e a assessora do partido. Não é só animais, embora seja sempre essa a principal referência.
Nesta Feira não vendem animais e isso é ponto de honra para o PAN quando escolhe quais visita. São contra a venda e a criação intensiva. André Silva é vegan, mas essa causa só chegou à sua vida mais tarde. Em miúdo chegou a conviver muito de perto com aquilo que hoje condena. “Parte da minha família teve um aviário”, conta ao Observador recordando que ele mesmo apanhou “frangos para irem para o matadouro” da indústria familiar. Em Vilar de Besteiros, a pequena localidade de Tondela onde tem raízes, ainda se lembra da matança do porco e desta sua outra vida. O passado familiar é contraditório com a sua prática e apologia de hoje, mas André Silva assume-o sem pudor e garante que isso até o ajudou a chegar ao que chegou. “Eu sei o que é a agricultura familiar de subsistência e sei o que é a intensificação da agricultura”, reclama.
Lembra-se da diferença entre o que viu no aviário — que acabou por fechar por “insustentabilidade financeira”, consequência da gripe aviária — e o ritual de matar um animal da criação doméstica. “Lembro-me do respeito, da solenidade e tristeza com que a minha avó matava frangos e coelhos. Não se podia sequer falar. Na indústria, era totalmente diferente”. Tem a ambição de, no Parlamento, levar os colegas deputados a um matadouro, mas para uma visita a sério já que as que têm feito são higiénicas, queixa-se: “Vemos tudo, menos os matadouros em laboração…”.
Um “historiador falhado”, mas que funciona como “guarda-redes”
André Silva masca pastilha elástica enquanto pousa descontraído para a câmara, entre as quinquilharias nas mantas estendidas no chão e a banca do “Simões que dá milhões”. De mãos nos bolsos vai dizendo que ele mesmo passava por ali em miúdo, “13 ou 14 anos”, com os pais, para comprar os manuais escolares em segunda mão. Também por ali vendeu “trastes lá de casa” (dos pais) com os amigos, “mais acima, mais junto ao Panteão”. Agora, passa volta e meia para comprar móveis que restaura, ou um qualquer objeto que lhe desperte interesse. O último que comprou, há cinco meses, foi um copo dos anos 70. São voltas bem diferentes das tantas que dá por aquelas bandas em campanha — e aí a Feira é passagem obrigatória — e garante sentir por ali “muito desinteresse e descontentamento geral. O fenómeno da abstenção acaba por ser uma situação desafiante”, diz.
Curiosamente, foi numas eleições tradicionalmente menos participadas que o PAN mais se destacou: as últimas Europeias, em que o partido de André Silva conseguiu eleger um eurodeputado pela primeira vez, com 5,06% dos votos — contra os 1,39% das últimas legislativas, quando elegeu pela primeira vez para a Assembleia da República. Um salto em que apanhou a onda de crescimento dos partidos ecologistas que, a julgar pelas sondagens para as legislativas, promete continuar.
Um dos tripés de iluminação, à sua esquerda ia em queda quando, com um reflexo rápido, o deputado o apanhou no ar. “Eu fui guarda-redes”. E a partir daqui a conversa técnico-táctica cruza com a política. Isso é daqueles clássicos: não era grande jogador, por isso foi para a baliza? “Nada disso, era um bom guarda-redes. É preciso ter coragem para ser o último reduto. Atirar para o chão, ter resiliência para ouvir ‘és um frangueiro'”. Além do mais, acrescenta, “o que está atrás é o único jogador que consegue ajustar táticas e estratégias”.
Impossível não ouvir isto tudo sem fazer leitura política: também ajuda estar lá atrás nas estratégias parlamentares? Ri-se e faz futurologia política considerando que “o PS não irá negociar com todos se precisar apenas de um”. Pode ser o PAN. “É interessante para o PAN poder ser mais ou menos decisivo para fazer avançar as suas causas”. Até agora tem estado sozinho no Parlamento, mas as sondagens apontam para que o PAN consiga aumentar o número de eleitos nas legislativas de 6 de outubro.
A política toma-lhe o tempo todo. A dada altura, a meio da Feira, uma amiga encontra-o e comenta que há muito que não o vê… “Agora vais-me vendo na televisão”, atira André Silva. Foi antes de se meter nestas lides mais a fundo que publicou, em 2012, a sua tese de doutoramento. Licenciou-se em engenharia civil mas “porque era bom a matemática”, na verdade é “um historiador frustrado”, como confessa. Colmatou essa amargura com a especialização em reabilitação e conservação de interiores: “E consegui ser feliz”.
É por isso que passar com ele por um bairro histórico de Lisboa, como o de São Vicente de Fora, rapidamente se transforma numa aula de história de Lisboa. “O Campo de Santa Clara, antigo campo da forca”. “Chama-se Santa Clara porque antes do terramoto havia aqui o Mosteiro das Clarissas”. “São Vicente de Fora porque era fora da muralha, que acabava ali”. A sua tese de mestrado é sobre “Conservação e Valorização do Património: Os Embrechados do Paço das Alcáçovas”. “O horto do Paço fui eu que recuperei”, diz com indisfarçável orgulho sobre o trabalho de restauro do local onde foi assinado o Tratado das Alcáçovas, no século XV, em Viana do Alentejo.
Esteve também evolvido na recuperação do museu de Arte Sacra de Vila Viçosa e de alguns edifícios da rua de São Bento, não fazendo ideia que dali a pouco tempo havia de fazer carreira noutra área, naquela mesma artéria da cidade de Lisboa. Mais à frente, na Assembleia da República.
“Gostava de ganhar o euromilhões para me dedicar ao ativismo ambiental e ser historiador. Ainda gostava de tirar o curso de História da Arte e de Antropologia”, confessa ao Observador. Mas antes disso, o objetivo passa pela política e o crescimento parlamentar do partido que lidera, a roubar lugares à esquerda e à direita. “O coração/ é incapaz/de dizer /’tanto faz’/parte p´ra guerra/com os olhos na paz”.
O Observador convidou todos os líderes dos partidos com representação parlamentar para uma sessão fotográfica antes do arranque da campanha eleitoral, num local escolhido por eles.