“Escreva isto que lhe digo: vai ter de acontecer, mais tarde ou mais cedo, vai ter de ser feita uma limitação ao valor das pensões. Vai ter de acontecer”, afirmou o especialista em sistemas de pensões que foi durante 10 anos presidente da EIOPA, o principal regulador europeu das seguradoras e dos fundos de pensões – organismo que liderou até 2021. Depois disso, mais recentemente, foi durante um ano presidente do regulador do mercado de capitais, a CMVM, um mandato que teve de interromper por motivos de saúde.
Gabriel Bernardino, que fez uma apresentação sobre o sistema de pensões português na conferência anual da Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Património (APFIPP), nesta quarta-feira, pede “transparência” aos líderes políticos, para que assumam os “custos políticos” de explicar aos cidadãos – desde logo, os jovens –, que estão neste momento a financiar essas reformas, que não vão ter, nem pouco mais ou menos, reformas [públicas] que sejam consentâneas” com as que existem hoje.
“As pensões mais baixas deveriam, efetivamente, ser aumentadas e haver maior esforço nesse sentido”, afirma Gabriel Bernardino. “É muito penalizador é ver o discurso político ser apenas focalizado no ponto do crescimento das pensões, quando existe uma questão muito mais importante que tem a ver com o futuro da adequação das pensões no sistema e da sua sustentabilidade”, avisa o especialista que considera urgente que haja medidas no sentido de estimular a poupança privada para complementar a previsível descida das reformas públicas – e critica a gestão que é feita pelo Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.
“Pensões que reformados estão a receber neste momento são, ainda, relativamente generosas”
Partindo da sua experiência na EIOPA, como é que se pode enquadrar o sistema de pensões de reforma em Portugal, na comparação com os outros países europeus no que diz respeito à sua sustentabilidade futura?
Diria que há elementos que são convergentes. Todos os sistemas de pensões que funcionam em repartição têm neste momento desafios muito grandes devido ao envelhecimento das populações, a nível europeu. E, também, devido à necessidade de equilibrar as finanças públicas e, portanto, o financiamento por parte do Estado é obviamente um ponto a nível europeu como é em Portugal. Talvez o elemento mais distintivo relativamente à situação portuguesa é o facto de nós, por diversas vicissitudes ao longo dos anos, não termos conseguido ter um sistema complementar de pensões nível privado e em capitalização, como existe já a funcionar, desde há muitos anos, em vários países europeus. Esse é um aspeto distintivo que penso que deverá ter de ser alterado.
Porque a falta disso torna a sustentabilidade do sistema menos garantida?
A sustentabilidade de um sistema de segurança social deve ser vista sobre diferentes pontos de vista e de análise. Em primeiro lugar, a questão de perceber até que ponto as pensões que são geradas por esse sistema são adequadas para os cidadãos. E esse é um ponto em que o nosso sistema, claramente, com as alterações que foram efetuadas – e bem – em 2002 e em 2007…
Ficou um pouco melhor?
As pensões que, neste momento, os reformados estão a receber são, ainda, relativamente generosas, quando comparadas com a média em termos europeus. Mas há uma mudança significativa que vai acontecer nos próximos 10, 15, 20 anos, com um decréscimo muito substancial dessa adequação. As taxas de substituição vão baixar muito significativamente.
Nesta quarta-feira participou na conferência anual da APFIPP. Há poucos meses entrevistámos no Observador o presidente dessa associação, João Pratas, que dizia precisamente que as pessoas não têm noção de quanto irão perder quando chegarem à reforma, o que liga ao ponto que está a referir sobre a taxa de substituição…
As reformas feitas no sistema de segurança social em Portugal foram positivas e foram muito importantes para o equilíbrio futuro do sistema. Mas as transformações que se fizeram levam a um abaixamento da chamada taxa de substituição – que é aquilo que, no fim de contas, para o reformado, é importante, que é o valor da pensão face ao salário que se recebia. E estamos a falar de uma situação que é passar de uma taxa de substituição à volta dos 66% para uma taxa de substituição à volta dos 38%. Ora, isto é uma mudança muito radical e não foi feito, na mesma altura, o incentivo à criação de mecanismos privados, de mecanismos de capitalização.
Mas há forma de reverter estes números sobre a futura taxa de substituição? As pessoas já começaram a perceber, já ouviram falar sobre esta questão da taxa de substituição, muitas já têm uma ideia dos números, mas é irreversível, ou seja, há alguma forma de dar a volta a esses números ou não?
A forma como o sistema está desenhado para ser mais sustentável vai levar inevitavelmente a isto, portanto, é uma realidade. Diz que as pessoas já têm um pouco essa noção mas ainda falta essa noção. E um dos aspetos que seriam essenciais era que fosse promovida uma campanha de comunicação muito clara para as pessoas perceberem que isto lhes vai acontecer.
Por parte de quem? Falar sobre isto não dá votos a ninguém…
Mas essa é uma questão que nós temos de ultrapassar porque o sistema de segurança social e a sustentabilidade e a adequação das pensões são iminentemente uma discussão política, mas que na sua génese é iminentemente uma discussão económico-financeira. Aquilo que temos muitas vezes visto ao longo destes anos na discussão política em Portugal, e também em outros países, é que muitas vezes torna-se numa discussão de ideologia. Parece que estamos a confrontar direita versus esquerda ou público versus privado. Ora, isso é profundamente errado. O que nós devíamos discutir é qual é a complementaridade que queremos ter entre um sistema de repartição e um sistema de capitalização. E essa discussão tem de ser feita e temos de fazê-lo de uma forma muito mais transparente, até para possibilitar que seja não só uma discussão entre os partidos, mas também uma discussão na qual a sociedade civil possa participar e perceber efetivamente o que nos vai acontecer.
“Na Europa, há uma poupança que até é razoável – mas está parqueada em depósitos”
O que nos diz é que nos outros países os regimes de pensões privados compensam o declínio da taxa de substituição das pensões públicas. Mas nesse aspeto Portugal é uma exceção, diz-nos também que houve uma ausência de estímulos à poupança privada para a reforma, o que foi um erro grave. Um erro de quem?
Um erro do Estado português, e não só: acho que, também, em termos europeus. Porque estas alterações que foram efetuadas, quer em 2002 quer em 2007, no sistema português para o tornar mais sustentável e para, obviamente, olhar para a sustentabilidade das finanças públicas também foram muito potenciadas pela Comissão Europeia. Tudo isto foi, obviamente, em parte, influência da Comissão Europeia para que existisse sustentabilidade nas finanças públicas e para que o défice fosse controlado. Mas a Comissão Europeia também devia ter potenciado que os países, ao efetuarem estas alterações, fizessem, ao mesmo tempo, mudanças no financiamento de reformas do setor privado em capitalização para poder compensar esse decréscimo. E isso não foi efetuado. Não houve estímulo do Estado português nessa altura e não houve, também, pressão por parte da Comissão Europeia para que isso acontecesse. Isso é um aspeto que tem que ser devidamente modificado.
É um ponto importante porque este problema não é apenas português. Considera que devia pensar-se, a nível europeu, numa espécie de plano global sobre esta matéria? Quase um PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) só para isto?
Durante muitos anos tentei, quando estava na EIOPA, influenciar a Comissão Europeia neste aspeto. Neste momento acho que temos uma oportunidade, por haver uma conjugação de efeitos que podem levar a que se avance nesta matéria. Temos um novo paradigma nesta nova Comissão Europeia, que tem a ver com a perceção de que a Europa não é competitiva e que é necessário mais investimento. [Por isso,] a Europa precisa que a poupança que já existe se transforme em investimento. Aliás, no relatório Draghi diz-se claramente que nós precisamos de pegar nas poupanças dos europeus e colocá-las ao serviço da economia, que é o que não acontece hoje em dia. E como é que se faz isso? Basicamente, através da criação de mecanismos de poupança de longo prazo, nomeadamente pensões. E, portanto, o novo plano da Comissão Europeia para a competitividade da Europa vai ter de passar por maior investimento na transformação digital, na transformação para a sustentabilidade verde, nos investimentos para a defesa na Europa… Nós vamos ter de ter capital público, mas também vamos ter de ter capital privado. E mecanismos de pensões que sejam suficientemente fortes em termos de investimento para traduzir um avanço nesta matéria. Acho que é um dos desafios que. a nossa comissária vai ter…
Maria Luís Albuquerque, que tem a pasta do serviços financeiros e da poupança…
Sim, a comissão deveria, como parte deste novo mecanismo – deste, se quiser, novo PRR que há de aparecer por aí, para a competitividade –, ponderar seriamente (como a cenoura para os países poderem receber isto) haver uma obrigatoriedade dos países de construírem mecanismos de poupança para a reforma de longo prazo, que possam, efetivamente, depois apostar na economia europeia também.
Há, até, muito investimento europeu que vai para os EUA, porque existe uma perceção de que o potencial aí é maior…
Não só… Recentemente Christine Lagarde até fez uma intervenção neste sentido… Nós temos, na Europa como um todo, e em termos médios, uma percentagem de poupança que até é razoável, mas temos muita poupança que não é transformada em investimento, porque temos muita poupança em depósitos. Em termos europeus isso é verdade, em Portugal é muito mais verdade ainda. E, portanto, nós temos aqui um potencial de montantes que já existem, que estão parqueados em depósitos, sem rendibilidade, e que pode perfeitamente ser posto ao serviço da economia para podermos crescer. Porque sem crescimento e sem investimento nós não vamos conseguir ser mais competitivos.
“Vai ter de ser feita alguma limitação ao valor das pensões [a pagar no futuro], vai ter de acontecer”
Voltaremos a esse ponto mas queria insistir naquela ideia em que disse que foi um erro não se ter, de certa forma, acautelado nas pensões uma interação entre o privado e o público. O discurso político ainda hoje continua a ser sobre como é que se pode dar mais a quem hoje recebe pensões – que como, disse há pouco, são até relativamente “generosas” – mas fala-se pouco como é que vão viver as pessoas que hoje estão a trabalhar e que um dia também se hão de reformar…
Obviamente que há aqui uma questão no sistema português que tem a ver com um número muito significativo de pensões muito baixas, sejamos claros… Houve muita gente que está no sistema e que não contribuiu. Há um esforço do Estado para contribuir para esse tipo de pensões – e eu, pessoalmente, acho que era por aí que se deveria ter mais atuação. Ou seja, as pensões mais baixas deveriam, efetivamente, ser aumentadas e haver maior esforço nesse sentido. É muito penalizador ver, hoje em dia, o discurso político ser apenas focalizado no ponto do crescimento das pensões, quando existe uma questão muito mais importante que tem a ver com o futuro da adequação das pensões no sistema e da sua sustentabilidade. Nós devíamos discutir isso. Tem havido vários países, inclusive na União Europeia, que têm feito essas mudanças nos últimos anos, o que tem de passar inevitavelmente por utilizar partes das contribuições que são efetuadas hoje em dia para capitalização, porque é isso que pode gerar rendibilidade para poder colmatar a tal descida das pensões que o sistema que nós temos neste momento vai trazer.
Fala em capitalização, mas recordo que o (antigo) primeiro-ministro falava muitas vezes sobre o risco de colocar as pensões futuras no casino dos mercados financeiros… Foi este tipo de discurso político que nos trouxe até aqui?
Também acho. Houve, de facto, declarações que não foram muito felizes relativamente aos mercados. Eu sei que existe sempre, por parte das pessoas e dos cidadãos em geral, algum receio, naturalmente, face ao risco que pode traduzir. Mas acho que nós temos de ser frios e temos que fazer uma análise com base nos números e não com base nas sensações. Analisar com base nos números é muito claro. Aliás, na semana passada foi publicado um relatório pela OCDE que mostra, claramente, que os sistemas que mais investem em capitalização, mais investem em ações, os que mais têm uma lógica de longo prazo são aqueles que têm melhor rendibilidade, são aqueles que podem, depois, no final, permitir melhores pensões. Isto não é uma questão de estados de alma, é uma questão de factos, de realidades e de números…
E de ideologia?
E de ideologias. É por isso que digo que a discussão tem de deixar de ser uma discussão ideológica, tem de passar a ser uma discussão com base económica ou financeira.
Mas comunicar sobre esta matéria é uma coisa que não dá votos a ninguém.
Nós, como sociedade civil, devemos pressionar o sistema político para ser transparente. O sistema de segurança social no seu todo é, talvez, dos ativos mais relevantes que nós temos, como sociedade. E deixe-me ser muito claro: não sou apologista de se acabar com o sistema de Segurança Social público. Longe disso. Acho que tem um papel muitíssimo relevante naquilo que é, depois, obviamente, a distribuição que se pode fazer e para tentar colmatar também as situações das pessoas mais vulneráveis. Mas aquilo que a realidade mostra a nível internacional é que só combinando essa lógica de repartição com uma lógica forte de capitalização é que se consegue ter resultados mais positivos. E transmitir isso às pessoas não é uma questão de ideologia, é uma questão de transparência.
Faz falta haver uma associação de futuros pensionistas, já que existe uma de atuais pensionistas?
Um dos aspetos que são mais penalizadores do sistema que temos neste momento é precisamente a questão da equidade entre gerações. Nós temos de ser muito frios a olhar para estes números. Nós temos, neste momento ainda, felizmente, pessoas que estão na reforma e que até têm reformas relativamente boas, com taxas de substituição boas, que estão a ser financiadas precisamente pelos jovens. E nós sabemos já – não é nenhuma projeção, nós sabemos pelos números – que essas pessoas que estão neste momento a financiar essas reformas não vão ter, nem pouco mais ou menos, reformas que sejam consentâneas. Portanto, o sistema, da forma como está desenhado, foi bem reformado porque era completamente insustentável, só que nós precisamos da outra parte da complementaridade dada pela capitalização para colmatar as pensões que vão ter. Há coisas que têm, obviamente, mais custos políticos do que outras. Fazer uma reforma profunda do sistema tem custos políticos. Mas escreva isto que lhe digo, vai ter de acontecer, mais tarde ou mais cedo, como já aconteceu em alguns países: vai ter de ser feita alguma limitação ao valor das pensões [a pagar no futuro]. Vai ter de acontecer.
Cargo público ligado às pensões pode estar no horizonte? "Estou sempre disponível para contribuir"
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Gabriel Bernardino esteve na presidência da CMVM durante cerca de um ano, saindo por questões de saúde. Desde essa altura, tem-se ocupado sobretudo com a sua atividade como pequeno empresário na produção agrícola na zona de que é natural (na zona do Bombarral), no cultivo de maçã e pera rocha.
Mas com a sua experiência neste setor das pensões e dos seguros, está disponível nos próximos tempos para assumir algum tipo de responsabilidade nestas áreas? “Estou sempre disponível para contribuir com aquilo que é o meu conhecimento, aquilo que tive na minha carreira e a minha paixão por este assunto, porque este é um assunto fundamental para todos. E, portanto, naquilo que eu possa contribuir com a minha experiência e com o meu conhecimento, estarei com toda a certeza aberto“, responde.
“Algumas medidas podem ter custos políticos, mas é para isso que temos líderes. Os líderes não servem só para fazer as coisas fáceis”
O número de ativos por reformado diminuiu 50% entre 1975 e 2022 e face à situação atual irá diminuir mais 40% até 2050. A solução também passa por estímulos da natalidade mais audazes?
Com certeza que sim, mas isso é um problema transversal em termos europeus. Se olhar para os dados, Portugal tem uma das piores situações em termos da pirâmide etária. E mais uma vez: isto não são opiniões, são factos, são realidades. Nós passámos de, em 1975, termos um número de 5,1 ativos por cada reformado, para andarmos, neste momento, em cerca de 2,5 ativos por reformado e o que vai acontecer, inevitavelmente, é que por volta de 2050 teremos 1,5 ativos por reformado. Ora, obviamente, não é preciso ser vidente para perceber o resultado que isto vai ter em termos do esforço financeiro e do impacto que vai ter a nível das pensões.
Já se falou no passado em escrever de forma clara na Constituição Portuguesa o princípio da equidade intergeracional, o PSD chegou a propor isso há alguns anos. Faz sentido?
sse é um princípio que deveria ser assumido por todos nós enquanto sociedade, porque se nós não contribuirmos e não fizemos reformas nos sistemas que levem, pelo menos, a diminuir o gap (fosso) que vai existir e que vai começar a existir cada vez mais, que a certo ponto vai criar problemas mesmo em termos sociais e clivagens. E, portanto, inscrever na Constituição parece-me ser um bom ponto, mas mais importante do que isso é tomar medidas e ações concretas que possam fazer com que o sistema como um todo seja muito mais equitativo.
Inflação sobe para 2,5% em novembro. Dados do INE confirmam atualização de pensões até 3,85%
Que propostas concretas defende, que consiga explicar em termos simples e que ache que deviam ser prioritárias?
Há um conjunto de medidas que se podem tomar no curto prazo. Dir-me-á que algumas delas podem ter custos políticos, pois acredito que sim, mas é para isso que nós temos líderes. Os líderes não servem só para fazer as coisas fáceis, as líderes servem para fazer as coisas que são, se calhar, mais difíceis.
Mas e se eles não tiverem votos suficientes para poderem fazer o que quer que seja?
Ouça, os votos existem e os portugueses, depois, tomarão a sua decisão quando votam, face às medidas que foram implementadas. E eu acredito que os portugueses verão com bons olhos quem toma medidas para assegurar a sustentabilidade e a equidade intergeracional… Acho que os portugueses não são diferentes das pessoas nos outros países. Eu acho que há quatro medidas que se podem tomar no curto prazo, que não necessitam de muita reflexão adicional. Em primeiro lugar, há um aspeto que é fundamental que é conhecer a realidade sobre quais são as responsabilidades do atual sistema de segurança social. Foi publicado, recentemente, o Livro Verde da Segurança Social – que é um trabalho que está bem feito – mas foi uma oportunidade perdida não se ter, no âmbito desse estudo, efetuado um cálculo sobre quais são as responsabilidades que o sistema tem neste momento e como é que o vamos financiar. Porque isso é que deve ser a base da discussão para tal equidade intergeracional – senão andamos todos aqui a comentar, mas sem um conhecimento de base que permita não só que sejam tomadas pelo Governo ações e medidas, mas também para que a própria sociedade civil, de uma forma transparente, possa emitir as suas opiniões. É fundamental, devia ser feito e pode ser lançado a curto prazo: ter um estudo que seja independente, que nos diga claramente: estas são as responsabilidades do sistema, isto são as contribuições que são necessárias para o sistema ser equilibrado, estas são as pensões que as pessoas irão, em termos projetados, receber.
Fundo de Estabilização da Segurança Social tem política de investimentos “errada”
E mais propostas?
Um segundo ponto que acho que é fundamental, como disse, é comunicar com as pessoas com verdade, com transparência, quais as taxas de substituição que vão poder, que vão ter, efetivamente, no futuro próximo. O terceiro ponto que acho fundamental, e que também pode ser feito no curto prazo, é potenciar e estimular a poupança privada, em capitalização, para verdadeiros produtos de reforma do longo prazo – e ter um estímulo fiscal que seja atrativo. Acho que há muito que se pode fazer em termos de benefícios fiscais que levem a que as pessoas possam ter um incentivo para pegar em alguns dos montantes que estão em depósitos e transferi-los para produtos de capitalização para a reforma de longo prazo que, naturalmente, vão potenciar mais investimento e mais rendibilidade. E isso pode ser feito a curto prazo, não há razão nenhuma para que não seja feito. Depois há outros aspetos, por exemplo: um elemento que é muito positivo no nosso sistema neste momento, que é o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social – uma almofada que foi sendo construída ao longo dos anos para fazer face a situações, no futuro, que possam ser menos equilibradas. Esse fundo tem acumulado valores significativos. Penso que, pelos números que vi, no final deste ano deverá atingir o objetivo que era ter dois anos de pensões no fundo. Mas há um aspeto muito negativo que tem a ver com a política de investimentos que esse fundo teve ao longo dos anos. A política de investimentos está definida em termos legais e impõe que o fundo tenha que investir pelo menos 50% em dívida pública nacional, que tenha de investir maioritariamente em dívida…
Está errado?
Está errado. Basta ver a comparação com aquilo que são as melhores práticas internacionais nesta matéria deste tipo de fundos onde, sendo estes fundos com um horizonte temporal muito significativo, para obterem as rendibilidades que serão adequadas têm de investir de uma maneira completamente diferente, investir em ações… O nosso fundo investe cerca de 20% em ações, quando os comparáveis em termos internacionais investem 60% a 70% em ações.
Refere-se aos fundos soberanos que alguns países têm…
Claro, o fundo soberano norueguês, que é o maior fundo do mundo, investe 75% em ações. Um fundo australiano, que é muito comparável àquilo que nós temos cá, investe também em ações e produtos alternativos, cerca de 65%, 70% também. As melhores práticas internacionais mostram-nos o que é que devíamos fazer. É muito penalizador este tipo de fundos estar maioritariamente investido em dívida pública nacional, porque isso depois leva também a outro tipo de situações, onde o fundo acaba por ser utilizado para gerir a dívida pública. Porque, em termos de contas nacionais, quando o fundo adquire a dívida pública, a dívida pública é cancelada para efeitos de défice e, portanto, obviamente, há aqui um incentivo para fazer uma gestão política – e não deveria ser assim.
Além daquilo que os números dizem de forma clara sobre o futuro, existe também o risco de a economia ter momentos difíceis, como já teve no passado. Na sua apresentação falou sobre o peso das transferências do Orçamento do Estado para a Segurança Social e para a CGA (Caixa Geral de Apresentações) que, em média, nos últimos anos chegaram a 6,5% do PIB. Neste contexto, o que acontece se houver novos períodos difíceis para a economia e para as contas públicas?
Esse é um dos aspetos para os quais se tem de olhar quando se analisa a sustentabilidade do sistema. Em Portugal o nosso sistema não se auto-financia, ou seja, as contribuições que nós temos enquanto empregadores e trabalhadores não são suficientes per se para as despesas que o sistema tem como um todo. E, portanto, isso leva a que haja contribuições do Orçamento do Estado. E, quando juntamos aquilo que é a realidade da Segurança Social com aquilo que é a realidade da Caixa Geral de Aposentações – e é assim que se deve ver, porque, obviamente, o sistema deve ser visto como um todo – o facto de nós termos 6,5% do PIB, em média, nos últimos cinco anos, mostra que o sistema não é auto-sustentável. E isto leva a que, quando existirem choques externos que causem problemas na economia, iremos ter dificuldades, como tivemos no tempo da troika. Felizmente, neste momento, temos o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, que nos pode ajudar. Mas também acho que deveria definir-se com maior clareza como é que o fundo é utilizado. Acho que, neste momento, não se percebe muito bem para que efeitos e quando e como é que o fundo pode ser utilizado. Quanto melhor nós definirmos isso, antecipadamente, mais fácil será gerir isso numa eventual situação de crise.
Fala num sistema de capitalização com mais poupança privada para a reforma, o que é que isso quer dizer na prática? As pessoas estão habituadas a pagar a sua TSU (taxa social única), as empresas pagam a TSU, mas o que é que isso muda na prática, sobretudo tendo em conta que o país tem salários baixos?
Em termos práticos, isto significa que podemos deslocar uma percentagem daquilo que são as contribuições que nós temos hoje em dia, já, para capitalização. E podemos também olhar para aquilo que é a poupança das famílias – como disse, em Portugal 44% da poupança está em depósitos, o que é económica e financeiramente errado – e podemos pegar numa parte desses montantes que não estão a render basicamente nada e metê-los também no sistema de capitalização.
Mas no que diz respeito aos salários, que impacto é que isso podia trazer?
Nós temos hoje em dia já taxas contributivas bastante elevadas. Tem de se ver qual é a sustentabilidade do sistema, verificar se há possibilidade de gradualmente ir pegando em alguma dessas contribuições efetuadas com base nos salários e colocá-las em capitalização. Isso vai levar, naturalmente, a que tenha que haver um reequilíbrio entre o sistema de repartição que nós temos neste momento e um sistema em capitalização. Isto não pode ser feito de um momento para o outro.
Que exemplo internacional é que pode ser útil neste caso, para comparação?
Há um bom exemplo que é a Irlanda, que vai ter uma reforma a implementar a partir do próximo ano. A Irlanda já é um país onde existem muitos fundos de pensões privados no âmbito empresarial, mas sentiram a necessidade de complementar as reformas que têm na própria segurança social e, portanto, avançaram para a criação de um sistema de capitalização em (como se diz no jargão) Auto Enrollment. Ou seja, é um sistema em que a adesão é obrigatória, automática, e depois a pessoa tem a possibilidade de sair, num certo prazo. Mas todos sabemos que a inércia das pessoas leva a que muitas vezes não adiram voluntariamente a estes sistemas, mas uma vez aí incluídos começam a ver que, de facto, são bons sistemas e portanto não saem. Essa é uma das reformas que poderiam ser feitas em Portugal.