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"Vais ficar noutro lado durante algum tempo". Lien, a rapariga de 8 anos que mudou de família para sobreviver aos nazis

O Observador faz a pré-publicação de "A Rapariga Esquecida", de Bart van Es. O livro conta a história de Lien, a criança que foi entregue a uma família de acolhimento na Holanda ocupada.

“A Rapariga Esquecida” conta a história de Lien, uma menina de 8 anos criada por uma família de acolhimento na Holanda. Fora entregue pelos pais biológicos, judeus, que lutavam pela sobrevivência da criança em plena ocupação nazi, durante a Segunda Guerra Mundial — os pais que acabaram por morrer no campo de concentração de Auschwitz.

Bart van Es, o autor do livro, é neto dos pais adotivos de Lien e neste livro conta a história da menina, agora com 80 anos, que revelou ao escritor toda a sua história. O Observador faz a pré-publicação do livro, revelando o capítulo em que os pais contam a Lien o que vai acontecer. Holandês de 47 anos, van Es é professor de literatura inglesa na Universidade de Oxford. Vive no Reino Unido desde 1986 e é também crítico literário. Com “A Rapariga Esquecida” ganhou o prémio Costa na categoria de biografia em 2018.

“A Rapariga Esquecida”, de Bart van Es (Vogais)

«Judeu.» Em maio de 1942, Lien vê a mãe sentada à mesa de refeições na cozinha com uma grande tira de tecido amarelo. Tem um padrão de estrelas com contornos pretos, cada uma com uma palavra gravada no centro: «Judeu.» À volta de cada estrela há uma pequena linha tracejada para facilitar o recorte. Agora, é obrigatório usar aquelas estrelas em todas as peças de vestuário exterior, por isso a mãe cose com todo o cuidado uma estrela com a palavra «Judeu» no vestido.

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As crianças da rua que ela conhece continuam a ser como sempre foram, mas as que encontra a caminho da escola não são tão simpáticas. Por vezes, atiram pedras. Então, um dia um grupo de crianças aproxima-se a correr e agarra-a, empurrando-a para uma viela e gritando, «Apanhámos uma judia». Quando Lien não volta para casa, o pai vai procurá-la. O bando recua ao vê-lo, mas, quando ele lhe dá a mão, um rapaz mais atrevido aproxima-se. «Judeu nojento», balbucia, meio embaraçado, atento e preparado para fugir. O papá ignora-o, mas não com a habitual calma; os dedos da sua mão tremem quando se afasta com Lien pela viela e voltam para o apartamento.

Ao chegarem ao número 31, veem a senhora Andriessen parada no vão das escadas do prédio, meio na rua, a tentar avistá-los. Há uma expressão preocupada e inquiridora no seu rosto, que é substituída por um tenso meio sorriso de alívio quando avista Lien. Isto parece-lhe estranho porque a senhora Andriessen está quase sempre no seu quarto que cheira a sabonete. A velha senhora vira-se e diz alguma coisa para a porta aberta do apartamento, com as faces brilhantes e vermelhas. Parece estar a dizer à mamã que está tudo bem. De repente, Lien pensa que a senhora Andriessen também deve ser judia porque pode viver com eles na Pletterijstraat, mas não tem a certeza.

Por outro lado, a tia Ellie não é judia, porque não é uma tia de verdade, apenas uma velha amiga da mamã que está sempre lá em casa, embora não tenha de usar uma estrela.

Numa noite do início de agosto, ainda durante as férias, a mamã entra no quarto dela, como sempre, para lhe aconchegar a roupa e lhe dar um beijo de boa-noite. Senta-se na cadeira ao seu lado, pousa uma mão em cima dos cobertores e, com a outra, acaricia-lhe o cabelo. «Tenho de te contar um segredo», diz-lhe. «Vais ficar noutro lado durante algum tempo.»

Quando chegam as férias de verão, Lien fica muitas vezes no pátio, na cozinha, ou nas escadas à frente da casa. Conhece Lilly, que vive no primeiro andar do número 29. A Lilly desenha quatro linhas com espaçamentos iguais a lápis no álbum e copia um poema exatamente no meio da página.

Rosas grandes e rosas pequenas
Com pétalas suaves como penas
Mas é no coração de Lientje que nasceu
A rosa que mais amor ofereceu.

A Lilly desenha mais algumas linhas na diagonal do canto esquerdo da página: «Estava na cama a brincar / e a minha mãe ficou zangada e começou a ralhar». Sempre que liam aquilo em voz alta, desatavam a rir.

Depois, numa noite do início de agosto, ainda durante as férias, a mamã entra no quarto dela, como sempre, para lhe aconchegar a roupa e lhe dar um beijo de boa-noite. Senta-se na cadeira ao seu lado, pousa uma mão em cima dos cobertores e, com a outra, acaricia-lhe o cabelo. «Tenho de te contar um segredo», diz-lhe. «Vais ficar noutro lado durante algum tempo.»

Faz-se silêncio. O que acontece depois disto torna-se difuso, mas esta frase, proferida na voz da mãe, mantém-se bem nítida. Lien recorda-se de que a mãe foi muito encantadora, e carinhosa, e que se sentiu amada.

O entusiasmo do segredo é muito intenso e na manhã seguinte, quando se senta no cimo dos degraus exteriores com Lilly e algumas outras crianças ao lado, Lien quer muito contar-lhes. É muito especial ter um segredo, mas não é divertido mantê-lo durante tanto tempo. Quando a mamã vem para casa, Lien desce os degraus a correr para ir ao seu encontro. «Não posso contar?», sussurra. Acho que é um segredo muito bom.» Mas a mamã não deixa; é muito importante que mais ninguém saiba.

A “tia” Jans

Nessa noite há uma reunião de tias e tios, que se juntam na apertada cozinha, e depois, à medida que fica cada vez mais cheia, Lien encontra um lugar para espreitar à porta do quarto dos pais. Não é uma festa de anos porque não há crianças (exceto ela e o bebé Robbie), mas ainda assim Lien é o centro das atenções: tem o gosto pegajoso de chocolate na boca, que é quase desconhecido, e pedem-lhe para se sentar no colo de todos. Por algum motivo, ela decide portar-se mal e ri-se com o guincho estridente de que a mamã não gosta enquanto aponta para uma mancha no nariz da tia Ellie. Porém, por muito que guinche e aponte para as pessoas, ninguém lhe ralha. Os seus guinchos sobrepõem-se ao murmúrio das outras vozes; os adultos falam baixo uns com os outros e só têm olhos para ela. Tudo acontece muito depressa. Não há tempo para falar, nem sequer para pensar sobre as questões que surgem na sua mente para logo se desvanecerem, indefinidas. Tudo parece apressado, mas o serão continua durante horas numa sucessão de abraços e sussurros; Lien está apenas meio consciente de ser levada nos braços do pai para o quarto, quase a dormir.

De manhã, pouco depois de comer o pão com queijo, uma senhora ainda mais distinta do que a senhora Andriessen, e não tão velha, bate à porta. Tem modos firmes e simpáticos, como a enfermeira do consultório do médico, e diz coisas agradáveis sobre Lien e faz-lhe perguntas sobre o trabalho escolar e sobre os livros que ela mais gosta. Lien está envergonhada por não ler muito, embora se lembre de dizer que gosta de Jan Klaassen e Katrijn. A senhora é bastante jovem, mas não parece uma mãe. É uma verdadeira aventura ir com ela, o tipo de aventura que faz sentir uma pequena sensação de enjoo na boca. Aparentemente, está entusiasmada, mas no seu íntimo sente-se calma. Estão a descoser a estrela dos seus vestidos — os dedos das duas mulheres mexem-se muito depressa.

Lien pode manter o nome e o apelido, de Jong, mas não pode dizer nada a respeito da mamã, do papá ou da família. Agora não vai ser judia, apenas uma menina normal de Roterdão cujos pais morreram no bombardeamento. Se alguém perguntar, ela deve dizer que a mulher é a senhora Heroma, e que vai levá-la para casa da tia que vive em Dordrecht, que é uma cidade diferente. É importante ficar muito perto da senhora, muito apertada contra ela, para as pessoas que a conhecem não perceberem que ela não tem a sua estrela. A mamã diz exatamente as mesmas coisas que a senhora e manda-a repeti-las, embora Lien pense que já as sabe. Em seguida, um beijo e um abraço que dói um pouco e está na Pletterijstraat, a caminhar depressa ao lado da senhora, a esforçar-se muito para se manter encostada ao seu casaco. O saco com as suas coisas, incluindo o álbum de poesia e o puzzle do papá, está no ombro da senhora Heroma e bate contra ela a cada passo.

O tio “Henk”

Não é muito longe da casa de Lien até à estação, por isso a caminhada pelas ruas, e depois através do parque (onde os judeus estão proibidos de entrar), para a estação ferroviária de Hollands Spoor chega ao fim pouco depois de começar. A fachada da estação parece um palácio, mas não há tempo para olhar para ela porque o comboio está prestes a partir. Lien pensa no seu quarto durante breves instantes, que está bastante perto para poder correr para lá.

A senhora Heroma fala-lhe sobre nomes engraçados de sítios. Diz que há muitos na Holanda. Por exemplo, a rua da Salsicha Dupla em Amesterdão, O Bigode em Groningen, ou a rua do Pato Doente em Zeeland. Também há uma rua chamada Atrás do Porco Selvagem. Lien acha que os nomes têm muita piada. Gosta da senhora Heroma e ri-se enquanto observam as casas de Haia a passar cada vez mais depressa pela janela da carruagem do comboio, o pouca terra, pouca terra das rodas nos carris a tornar-se cada vez mais alto e mais próximo. O fumo da locomotiva é sujo, mas cheira a limpo. «Lien conhece alguns nomes engraçados de lugares?» Depois de muito pensar, ela lembra-se da rua do Ladrão da Vaca, que a senhora Heroma não conhecia. «Rua do Ladrão da Vaca é boa!», diz ela.

Lien prepara-se para dizer «Não é longe da nossa casa», quando se lembra que já não a pode mencionar.

Ao contrário de Haia, Dordrecht só tem uma estação ferroviária. Também parece um palácio, apenas um pouco mais pequeno e sem as torres das princesas que tem a estação de onde partiram. Atravessam outro parque — maior do que o que têm perto de casa e sonolento à luz da tarde — e em seguida percorrem ruas com pequenas casas, nada parecidas com os prédios de três andares de Haia. Lien já sente as pernas cansadas e cada vez demora mais tempo a chegar à esquina seguinte, mas em cada uma a senhora Heroma diz-lhe o nome da rua seguido de um nome engraçado de outro lugar na Holanda, por isso Lien continua. Chegam à Mauritsweg (onde a senhora Heroma diz «rua das Calças»). Mais adiante está a Krispijnseweg («rua Montanha de Manteiga», a seguir a Bilderdijkstraat («rua do Tubo de Coelho»), e por fim chegam. Todas as casas pelas quais Lien passou parecem pequenas em comparação com as de Haia, mas estas, na Bilderdijkstraat, são as mais pequenas de todas. A verdade é que a rua não parece ter casas; tem apenas duas paredes compridas e baixas de tijolo vermelho com portas e janelas, que se estendem até onde Lien pode ver.

"Apesar de não vos conhecer, imagino-vos como um homem e uma mulher que, como pai e mãe, cuidarão da minha única filha. Ela foi‑me tirada pelas circunstâncias. Que vós possais, com a melhor vontade e sabedoria, cuidar dela."

Na rua, um grupo de rapazes corre e grita. Ignorando a confusão, a senhora Heroma dirige-se diretamente para a porta número 10 e bate com força no pequeno postigo redondo. No bolso do casaco, sem que Lien saiba, há uma carta. Está escrita com a mesma caligrafia firme que a mãe usou na segunda página do seu álbum. A carta, que ainda sobrevive no apartamento de Lien em Amesterdão, está datada de agosto de 1942. O seu texto é o seguinte:

Muito honrados Senhor e Senhora,

Apesar de não vos conhecer, imagino-vos como um homem e uma mulher que, como pai e mãe, cuidarão da minha única filha. Ela foi‑me tirada pelas circunstâncias. Que vós possais, com a melhor vontade e sabedoria, cuidar dela.

Podereis imaginar a nossa despedida. Quando voltaremos a vê‑la? No dia 7 de setembro ela fará 9 anos. Espero que seja um dia feliz para ela.

Quero dizer‑vos que é meu desejo que pense apenas em vós como a sua mãe e o seu pai e que, nos momentos de tristeza que terá, a consolareis como sua mãe e seu pai.

Se Deus quiser, depois da guerra todos nos cumprimentare-mos com um aperto de mão numa alegre reunião. Dirigida a vós como o pai e a mãe da: Lientje.

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