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O velho que inventou a Presidência da República

A tomada de posse de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente foi um acontecimento mediático repartido por três dias. Rui Ramos lembra que há 105 anos, com Manuel de Arriaga, foi tudo muito diferente.

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À memória de Fátima Patriarca

Marcelo Rebelo de Sousa não passou despercebido. A tomada de posse compreendeu três dias de cerimónias e eventos, em Lisboa e no Porto. Em Lisboa, houve sessão na Assembleia da República, com o rei de Espanha e o presidente da Comissão Europeia, homenagem a Camões e Vasco da Gama no Mosteiro dos Jerónimos, uma solenidade religiosa na mesquita com todas as confissões e, à noite, um concerto na Praça do Município. No Porto, o novo Presidente visitou um bairro e patrocinou mais um concerto.

Após as celebrações, o novo Presidente tinha à espera o Palácio de Belém, com cerca de duas centenas de funcionários e um protocolo bem definido, tudo coberto por um orçamento de 14 milhões de euros. É verdade: os constitucionalistas ainda discutem os poderes do Presidente, mas ninguém duvida que possa provocar a queda de governos e antecipar eleições. Todos, por isso, esperam já o discurso de 25 de Abril.

Um Presidente de quinto andar

Há cento e cinco anos, em Agosto de 1911, era muito diferente. Depois de prestar juramento no palácio de S. Bento, o primeiro Presidente da República foi levado à varanda, enquanto bandas militares tocavam “A Portuguesa”. Houve salvas dos navios de guerra no Tejo, e pouco mais. Manuel de Arriaga tinha sido eleito pelos deputados à Assembleia Constituinte. A I República era um regime de assembleia. O Presidente da República não podia dissolver a câmara dos deputados nem o senado. Embora nomeasse o governo, era suposto que este dependesse apenas do apoio nas duas câmaras do parlamento. Segundo a opinião de muitos, o Presidente pouco mais deveria ser do que uma figura protocolar. Alguns tinham desejado mesmo que não houvesse Presidência da República.

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Os meios estavam à altura dessa singeleza. A Assembleia Constituinte arbitrou ao Presidente honorários anuais de dezoito contos, com mais seis contos para “despesas de representação”. Podia usar uma das “dependências” do palácio de Belém, mas apenas para receções oficiais. Para o ajudar, teria dois secretários. Quando recebesse delegações militares estrangeiras, seria acompanhado por um oficial do exército ou da marinha, nomeado pelo governo. Que significava isto? Como alguém notou, significava que o Presidente ganhava menos que o cônsul português no Rio de Janeiro e que estava rodeado de menos aparato do que o governador da colónia de Moçambique, que vivia num palácio e dispunha de “casa” civil e militar. Era um “Presidente modestíssimo”, que, segundo um deputado de bom humor, parecia destinado a “ir morar num quinto andar da baixa”. De facto, nos primeiros tempos, Arriaga não dispôs de residência oficial ou de meios de transporte. Tinha apenas direito a um polícia à porta. Nas suas memórias, desabafou: “Era como se não existisse.” Mas a partir de tão pouco, “o velho”, como lhe chamavam em Lisboa, conseguiu fazer a Presidência existir.

A eleição

Marcelo Rebelo de Sousa chega à presidência com uma recente celebridade televisiva. Aos 71 anos, Manuel de Arriaga tivera os seus quinze minutos de fama, mas mais de vinte anos antes. Era um fidalgo açoriano, que tinha sido colega na universidade de Antero de Quental e de Eça de Queiroz, e que ao contrário dos amigos se manteve pela vida fora fiel ao republicanismo juvenil. Vivia da advocacia em Lisboa. Na década de 1880, celebrizara-se como orador de comício e deputado republicano, sempre a denunciar os “despesismos” da monarquia e a “reação” da Igreja. A 11 de Fevereiro de 1890, passara uma noite preso por tentar organizar um protesto em Lisboa contra a cedência do governo ao ultimato britânico.

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Em 1910, havia mais de uma década que Arriaga andava retirado da política. Ocupava-se então a elaborar doutrinas pacifistas, com que esperou seriamente ganhar o Prémio Nobel da Paz. A República fora feita por uma geração mais nova de republicanos, que o achava “antiquado”, demasiado “idealista”, mas que não o esquecera: nomearam-no reitor da Universidade de Coimbra e depois Procurador-Geral da República. Em 1911, lembraram-se dele para Presidente quando uma maioria de deputados na Assembleia Constituinte precisou de um republicano histórico para opor à candidatura de Bernardino Machado. Todos sabiam que, se Bernardino fosse eleito Presidente, era certo que Afonso Costa seria chefe do governo, o que a maioria da Assembleia não queria. A eleição presidencial realizou-se assim num ambiente de enorme tensão. Na tarde de 24 de Agosto de 1911, votaram 217 deputados, cabendo 121 votos a Arriaga (55,7%) e 86 a Bernardino Machado. No Porto, no mesmo dia, já os partidários de Afonso Costa corriam a cidade aos morras a Arriaga.

Cento e cinco anos depois, Marcelo Rebelo de Sousa, em contraste com a circunspeção protocolar de Cavaco Silva, apostou em “afetos”, “proximidade” e “simplicidade”. Arriaga fez o mesmo. Anunciou logo que o seu objectivo era unir os republicanos e reconciliar os restantes portugueses com a República: “Hão-de vir para nós os que de nós fugiram. Em nome da Pátria e da Liberdade, aqui estamos para os receber”. Era uma tarefa de Hércules. A República em Portugal não era uma democracia, mas a autocracia de um partido — o Partido Republicano. Nas eleições de Maio de 1911, com poucas exceções, só houve candidatos aprovados pelo PRP e muitos (91 em 230) foram declarados eleitos sem sequer serem votados. As câmaras municipais estavam entregues a comissões administrativas. A imprensa andava sujeita a proibições, apreensões e ataques de militantes do PRP. A Igreja foi “separada” do Estado só em teoria, porque o governo arrogou-se o direito de decidir da organização do clero e do culto. Os sindicatos viram-se sujeitos a uma lei restritiva. Era este regime sectário e quase ditatorial que Arriaga queria transformar numa democracia que abarcasse todos os portugueses. Fazendo o quê?

A emergência da Presidência

Manuel de Arriaga tratou de dar à presidência uma dignidade que os constituintes de 1911 não tinham previsto. Pagando todas as despesas do seu próprio bolso, alugou um palacete na rua da Horta Seca, perto do largo de Camões. Ficou a ser “o modesto Eliseu da República Portuguesa”. Comprou ainda um automóvel e começou a dar banquetes, a frequentar exposições e a apoiar associações de beneficência. Entretanto, foi pressionando os governos para lhe aumentarem os recursos. Em 1912, conseguiu que lhe arrendassem uma ala do antigo palácio real de Belém para sua residência privativa. Ficou a pagar renda como qualquer inquilino (100 escudos por mês). Em 1913, obteve que colocassem ao seu serviço quatro funcionários, dois correios, e um director de protocolo, requisitado ao ministério dos Negócios Estrangeiros.

Cuidou também das suas maneiras. Deixou de fazer visitas a particulares, e passou a andar sempre de chapéu alto. No palácio, adoptou o costume de dar ordens aos “subalternos” através do secretário, e não directamente. Mesmo as pessoas de família nunca entravam em qualquer sala onde ele estivesse sem primeiro pedir licença. Um antigo empregado do palácio de Belém, que já servira os reis, não teve dúvidas: eram “os antigos hábitos da corte”. Como notou um seu amigo, Arriaga começou ainda a pôr “um ar senhorial até nas conversas de intimidade”. Raul Brandão descreve-o, em 1911, como um “velho que mantém certa aparência de vigor, com a cabeleira branca, a pêra branca, e a sobrecasaca antiquada”.

Manuel de Arriaga

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8 de Julho de 1840: nasce na Horta, ilha do Faial, Açores.
1861: estuda direito na Universidade de Coimbra. Amigo de Antero de Quental e de Eça de Queiroz.
1882: eleito deputado pelo Partido Republicano.
1910: o governo republicano nomeia-o Reitor da Universidade de Coimbra e depois Procurador-Geral da República.
24 de Agosto de 1911: eleito Presidente da República Portuguesa.
16 de Maio de 1915: resigna o mandato de Presidente.
5 de Março de 1917: morre em Lisboa.

Arriaga aproveitou todas as oportunidades para desempenhar um papel não previsto na constituição. Logo em 1911, a maioria parlamentar de republicanos moderados que o elegera dividiu-se entre dois chefes, António José Almeida e Manuel Brito Camacho, cada um dos quais formou o seu partido. Contando com o partido de Afonso Costa, passou a haver três grandes partidos no parlamento, nenhum com maioria e todos em guerra entre si. Isso permitiu a Arriaga tomar a iniciativa. Logo a 3 de Setembro de 1911, convidou João Chagas, representante de Portugal em Paris e que nem era deputado, para “presidente do ministério”. Afonso Costa declarou-se em estado de choque. Segundo ele, o Presidente podia “nomear”, mas não “escolher” os ministros, que deveriam ser deputados ou senadores “indicados” pelas maiorias nas duas câmaras do Congresso da República. O primeiro governo da república era portanto “inconstitucional”!

Mas o poder do Presidente continuou a manifestar-se. Em Outubro de 1911, João Chagas divergiu do ministro da Guerra acerca da repressão de uma sublevação monárquica no norte (a primeira “incursão” comandada por Paiva Couceiro). O chefe do governo resolveu entregar a questão ao Presidente, “deixando ao seu alto critério a resolução deste desacordo”. Era o reconhecimento da natureza presidencial do governo. Quando, pouco depois, Chagas se demitiu, Arriaga escreveu-lhe uma carta pública a lamentar que ele tivesse “abandonado” o “alto lugar onde eu o havia colocado ao serviço da República e da Pátria”, e agradeceu-lhe o “relevante serviço que nos prestou, a mim e ao país”. A fórmula “a mim e ao país” era significativa, tal como “o alto lugar onde eu o havia colocado”. Arriaga, sem que isso estivesse previsto na constituição, assumira o governo, não à maneira presidencialista, mas à maneira dos reis da monarquia constitucional.

Um presidente quase monárquico

Ao longo de 1912, porém, as coisas deixaram de correr bem a Arriaga. Uma das facções dos republicanos moderados, a de Brito Camacho, aproximou-se de Afonso Costa e deu-lhe maioria para formar governo no princípio de 1913. O poder assentava finalmente no parlamento. Arriaga teve de aceitar. Afonso Costa imprimiu à República toda a violência radical. Arriaga tornou-se Presidente de um regime descrito na imprensa de Londres como “the nightmare republic”, com 2000 presos políticos. A amnistia ao presos, a par da tolerância da Igreja, tornaram-se as duas causas do Presidente. Não era que Arriaga fosse menos republicano do que Costa. Mas acreditava que a República não precisava de ser imposta pela violência, e que, pelo contrário, deveria e poderia tornar-se um objecto de consenso. Isso pô-lo contra a esquerda radical que se reconhecia em Afonso Costa, para quem a República só estaria segura se excluísse quem não pertencia aos partidos republicanos e esmagasse implacavelmente quem quer que se atrevesse a criticar o regime.

Manuel de Arriaga tratou de dar à presidência uma dignidade que os constituintes de 1911 não tinham previsto. Pagando todas as despesas do seu próprio bolso, alugou um palacete na rua da Horta Seca, perto do largo de Camões. Ficou a ser “o modesto Eliseu da República Portuguesa”

Em privado, Arriaga lamentou ser Presidente de um país “sem cultura, sem educação, sem civismo, sem ideal, morto, condenado”. Mas não desistiu. Donde vinha a sua força? Em primeiro lugar da conveniência, interna e externa, de aparência de legalidade e de regularidade. Mesmo Costa pretendia governar “constitucionalmente”. Para isso, era indispensável a colaboração do Presidente. Por outro lado, o domínio de Afonso Costa, até 1915, nunca foi total. Não controlava completamente o parlamento, nem o funcionalismo, a magistratura, ou o exército. E também tinha quem lhe fizesse frente na rua.

No fim de 1913, houve nova viragem. Camacho retirou o apoio a Costa, que deixou de ter maioria no senado. Arriaga aproveitou. A 24 de Janeiro, dirigiu uma carta pública aos líderes dos três partidos republicanos, num calculado estilo sentimental: com o “coração torturado e com a alma entenebrecida”, pedia-lhes que dessem “tréguas” a “estes conflitos partidários, quase pessoais”. Era, de facto, uma peça maquiavélica na sua aparente ingenuidade. Arriaga começava por se diminuir: “dentro da constituição”, “nada posso fazer”. Precisava de seguir as “indicações parlamentares” para demitir e nomear governos, e não podia dissolver o parlamento. Tinha, por isso, de confiar no “natural bom senso dos homens que servem a república e a pátria”. Ora, o que é que, segundo o Presidente, recomendava esse bom senso? Um “governo extra-partidário”, ao qual Arriaga passava logo a prescrever a agenda: reconciliar-se com a Igreja revendo a Lei da Separação, e amnistiar os presos políticos. Insinuava finalmente que, caso contrário, se demitiria, voltando ao “convívio da Natureza, do Povo, dos bons e dos simples”. Ou seja, dava ordem de despejo a Costa e propunha um programa de governo, usando a sua resignação como arma de chantagem.

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Afonso Costa respondeu com uma carta assinada por todos os ministros, a 25 de Janeiro de 1914. Declarava-se “censurado” e sob “desconfiança” do Presidente. Aceitava demitir-se, apenas para evitar uma renúncia presidencial que iria dar “alento” aos “inimigos da república”. Ignorando a falta de apoio no Senado, Costa atribuiu a queda do governo à “intervenção irregular e contrária à lei” do Presidente. O seu objectivo era fazer-se vítima de uma inconstitucionalidade. Mas, desse modo, reconhecia ao Presidente, embora criticando-o, o papel de agente de alternância governativa que o rei tivera na monarquia constitucional.

De facto, tudo se decidiu na rua. Na noite de 26 de Janeiro de 1914, Afonso Costa convocou uma manifestação, confiando na sua força “popular”. Mas eis que, a meio do desfile, surgiu uma contra-manifestação. Houve pancadaria, tiros, e bombas. A esquerda radical foi derrotada. Na noite de 4 de Fevereiro, os anti-costistas foram manifestar-se diante do palácio de Belém, à luz de archotes e com bandas de música. Arriaga recebeu uma delegação e veio agradecer à varanda, por entre vivas ao presidente e morras a Afonso Costa.

Mas, tal como Costa, também Arriaga evitou um confronto total. Costa chefiava o maior partido da República. Não dominava o Senado, mas desde o Verão de 1913 que tinha maioria na câmara dos deputados. Não podia ser excluído. Mais: os rivais de Costa, António José de Almeida e Brito Camacho, não se entendiam para formar uma alternativa. A solução de Arriaga foi propor um governo apoiado pelos três partidos. Para convencer Costa a alinhar, admitiu mesmo que Bernardino Machado chefiasse o governo. Em troca, porém, exigiu a amnistia aos presos políticos e a revisão da Lei da Separação da Igreja e do Estado. A 22 de Fevereiro de 1914, pôde, numa cerimónia fotografada em Belém, assinar a lei da amnistia, que abrangeu 572 presos políticos e 1700 exilados. Frustrado, Afonso Costa anunciou logo que, numa futura revisão constitucional, iria propor a diminuição das “prerrogativas quase monárquicas” do Presidente.

Um pacifista em guerra

O ano de 1914 não foi mais feliz para Arriaga. No Verão, as potências europeias engalfinharam-se numa “grande guerra”. Afonso Costa fez-se logo o campeão da intervenção militar portuguesa ao lado da Inglaterra e da França. Arriaga, pelo contrário, manteve-se fiel ao seu antigo pacifismo. Optou por uma política de neutralidade, aliás recomendada pela Inglaterra. Bernardino Machado comentou com os seus próximos: “por orientação sentimental e política”, o Presidente “não queria que participássemos na guerra”.

Arriaga deixou de ir a espectáculos públicos, em sinal de “luto” pela guerra na Europa. Quando desconfiou que o chefe de governo favorecia a beligerância, interpelou-o: “Você tem-me mostrado todos os documentos da guerra?”. Bernardino, segundo contou mais tarde, teria reagido: “Senhor Presidente, depois dessa interrogação já não posso continuar a ser seu Presidente do Ministério”. Mais uma vez, um governante republicano suscitava uma questão de confiança típica da monarquia constitucional, quando os governos dependiam, não apenas do apoio parlamentar, mas da confiança do rei.

D. Manuel III

Ninguém entre os políticos apreciava Arriaga. A esquerda radical achava-o um “monarca”. No outro extremo, os monárquicos viam nele um fidalgo traidor, “um jacobino travestido em santo velho”. No meio, os republicanos moderados de Almeida e de Camacho acusavam-no de não os ajudar, embora nada fizessem para permitir a formação de outro governo.

Arriaga deixou de ir a espectáculos públicos, em sinal de “luto” pela guerra na Europa. Quando desconfiou de que chefe de governo favorecia a beligerância, interpelou-o: “Você tem-me mostrado todos os documentos da guerra?”

Bernardino Machado demitiu-se em Dezembro de 1914. Arriaga teve de entregar o governo ao partido de Afonso Costa, embora tivesse imposto a exclusão do próprio Afonso Costa. Camacho e Almeida queixaram-se de que o Presidente, à beira dos 75 anos, estava “senil”. Mas Arriaga preparava-se. 1915 era o último ano da sua presidência. Decidiu, dramaticamente, ou “submeter-se” ou “demitir-se”.

Mais uma vez, soube agarrar as oportunidades. Em Janeiro de 1915, os costistas no governo arranjaram um conflito com o exército, ao punir um oficial de cavalaria. Dezenas de oficiais protestaram, entregando as espadas ao Presidente. O governo reagiu brutalmente, mandando prender mais de 60 oficiais, muitos quase à porta do palácio de Belém. Os ministros propuseram-se também declarar o estado de sítio. Arriaga, porém, recusou, explicando-lhes que desejava “poupá-los aos desgostos de empregar meios violentos”. Tinha às vezes sentido de humor. O governo demitiu-se a 24 de Janeiro de 1915, julgando que o Presidente não teria outra opção senão formar outro governo com o partido de Afonso Costa. Mas Arriaga estava pronto. Na véspera, a 23 de Janeiro, escrevera ao general Pimenta de Castro, seu velho amigo, oferecendo-lhe a chefia do governo: “Vejo-me violentado a intervir novamente nesta amaldiçoada barafunda política em que as paixões sectárias e a intolerância dos velhos costumes têm envolvido esta nossa querida pátria.”

A Presidência tinha recursos para lá da imaginação constitucional. Era o segundo governo do partido de Afonso Costa que um Presidente supostamente decorativo conseguia despedir. Arriaga aproveitara agora as movimentações de oficiais do exército, tal como no princípio de 1914 explorara as manifestações populares em Lisboa. Mas desta vez, a situação de ambiguidade constitucional dava-lhe maior margem de manobra. O mandato de três anos do parlamento chegara ao fim em 30 de Junho de 1914. Devia ter havido eleições, mas os deputados e senadores tinham resolvido adiá-las, a pretexto da guerra na Europa. O novo chefe do governo, general Pimenta de Castro, explorou esta situação para declarar a legislatura terminada, manter o parlamento fechado e assumir todos os poderes até novas eleições, que marcou para 6 de Junho de 1915. Afonso Costa clamou logo que Arriaga, tentado pelo “poder pessoal”, impusera uma “ditadura militar” à República. Evocou ainda a liberdade que Pimenta de Castro deu finalmente à Igreja e aos monárquicos, para insinuar que o governo pretendia restaurar a monarquia. Arriaga, um republicano de sempre, passou a ser conhecido nos meios da esquerda radical por “D. Manuel III”.

História Política Republicana

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1910, 5 de Outubro: o Partido Republicano toma o poder e proclama a República.
1911, 21 de Agosto: a Assembleia Constituinte aprova a Constituição.
1911, 24 de Agosto: Manuel de Arriaga eleito presidente da República.
1911, 3 de Setembro: Arriaga nomeia João Chagas chefe do governo.
1913, 9 de Janeiro: Afonso Costa no governo.
1914, 9 de Fevereiro: Bernardino Machado no governo.
1914, 28 de Julho: começo da I Guerra Mundial.
1915, 25 de Janeiro: o general Pimenta de Castro no governo.
1915, 14 de Maio: revolta armada da esquerda radical republicana.
1915, 16 de Maio: Arriaga resigna o mandato de presidente.

Arriaga era prudente. Segundo Pimenta de Castro, o Presidente chamou-o “amiudadamente”, para lhe sugerir “um acto oficial” que provasse o carácter republicano do governo, de modo a “acabar com os enredos” de Afonso Costa. O problema não foi esse: o problema foi que Arriaga também teve relutância em favorecer Almeida e Camacho. Nomeadamente, não lhes quis garantir, através da pressão do Estado, vitórias nas eleições legislativas de Junho. Almeida e Camacho, despeitados, distanciaram-se do governo. Afonso Costa, perante o isolamento do Presidente entre os partidos do regime, sentiu que podia arriscar um acto violento. A 14 de Maio de 1914, já em plena campanha eleitoral, soou em Lisboa o sinistro clamor de que “a República está em perigo”. Era o prelúdio de uma revolta armada. O partido de Afonso Costa conseguiu sublevar metade da guarnição de Lisboa, incluindo todos os navios de guerra no Tejo. Foi uma revolução muito mais sangrenta do que o 5 de Outubro de 1910. A imprensa falou de 200 mortos e mais de 1000 feridos. O governo acabou por render-se.

Pimenta de Castro foi preso. Mas o alvo principal do radicalismo vitorioso era outro: o Presidente que limitara os governos do partido de Afonso Costa e contrariara a repressão política, a perseguição à Igreja e a intervenção na guerra. Em Alcântara, na tarde do dia 14 de Maio, formou-se um grande bando armado de costistas aos gritos de “vamos a Belém tirar os olhos ao velho”. Alguém avisou Arriaga de que, caso não se escondesse, corria o risco de acabar “arrastado e desfeito nas calçadas”. Aproveitando o crepúsculo, o Presidente fugiu de carro por Monsanto. Mas já nesse momento constava que diplomatas ingleses tinham feito saber que “não tocassem no velho”, ou a Inglaterra romperia relações diplomáticas com a república portuguesa. Foi o que salvou Arriaga, mas não a sua Presidência. A 16 de Maio de 1915, apresentou a sua renúncia: “Saio do poder mais pobre do que entrei.” Pôs um anúncio no jornal para vender o automóvel. Restavam-lhe dois anos para viver e para lamentar “o descalabro da nossa sonhada república” perante “a demagogia triunfante”.

Num texto recente sobre os seus antecessores, Marcelo Rebelo de Sousa reduziu os primeiros Presidentes da República a um simples “magistério”. Mas Arriaga foi mais do que um catequista. Contra a leitura minimalista da Presidência, demonstrou que o Presidente podia ser uma peça-chave da política republicana. No fim, perdeu, e por isso a historiografia permitiu-se tratá-lo como a um fantasma patético. Os seus inimigos, porém, fizeram-lhe justiça: Afonso Costa considerou-o o pior inimigo que a esquerda radical teve de enfrentar. Nessa luta, Arriaga inventou a Presidência da República, para além de todas as letras constitucionais.

Rui Ramos é historiador

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