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Para quem tem passado os últimos dias a chorar o final do verão, temos o remédio para enxugar as lágrimas: Voo Livre, com o seu toque doce, elegante e sensual, vai dar o tempero certo aos últimos mergulhos no mar e aos derradeiros pores do sol de corpo bronzeado. Referimo-nos ao primeiro álbum de originais de Salma Jô e Macloys Aquino, a dupla da banda brasileira Carne Doce que, em 2021, já havia dado um ar da sua graça com um EP homónimo.
Aí ouvimo-los depurados, apenas voz e violão e uma cumplicidade que queima, tornando-se intimista para quem os escuta, que nem lençol amarrotado, lenço atirado para o chão, copo de vinho e conversa jorrada sobre a mesa. Com canções como “Amiga” ou “Alegria Triste”, esse título que é a definição perfeita do estilo de escrita de Salma e da melancolia que povoa grande parte do reportório de Carne Doce, ficámos a perceber que o casal fundador da banda indie de Goiânia se estava a experimentar num formato a dois, agora estruturado em Voo Livre.
“É um desafio técnico e de redescoberta da mesma linguagem”, partilha Salma que, deixando a impetuosidade dos primeiros trabalhos de Carne Doce se entrega agora a uma interpretação mais subtil e delicada. Embora alguns fãs prefiram a versão irada, é uma delícia entrar em Voo Livre com Salma a sussurrar-nos em Gringa que quer “ficar de boa”, se curtindo com o seu drink, e o sol, e o mar e namorando-nos em Marquinha, com um corpo beijado pelo sol, e vai saber quais bocas mais.
“Eu sempre fui melancólica, mas o momento da pandemia foi tão deprimente e causou-me tanta ansiedade que chegou a uma altura em que eu enchi o saco. Não aguentava mais ser melancólica”. A viragem deu-se com uma visita à Cidade Maravilhosa, em dezembro de 2021, que fez com que Salma e Mac deixassem de lado a nuvem cinzenta que lhes pairava sobre a cabeça para se entregarem a uma nova aura luminosa: “Conseguimos fazer um show com Carne Doce no Rio de Janeiro e aproveitámos a oportunidade para curtir a cidade. Essa viagem trouxe-nos uma alegria no meio da tristeza toda. Ficámos novamente empolgados. Fazia tempo que não nos sentíamos assim”. Conhecer o produtor Alexandre Kassin deu corpo a essa nova euforia.
Do sertão para o Rio de Janeiro
Antes desse encontro, elemento crucial para entender todo o ambiente do disco, é preciso recuar às origens, escarafunchar bem no interior do Brasil, esse lugar ambíguo retratado pelos Carne Doce no seu último trabalho, precisamente intitulado Interior (2020). Ser natural de Goiás é simultaneamente a fraqueza e a força de Salma e Mac. O que os condena e o que os salva. O que os imobiliza e o que os faz procurar constantemente uma nova brecha para expressarem a sua voz.
Aqui, onde Brasília se afirmou como capital federal do Brasil e se embelezou graças ao dedo de Oscar Niemeyer, bate o coração da cultura sertaneja, estilo ligado ao saudosismo da vida do campo, que também conheceu uma vertente contestatária – basta escutar Gérson Coutinho da Silva ‘Goiá’, referência dos anos 50 e 60, em temas como “A Grande Esperança – Reforma Agrária ou Poluição”, para dar de caras com a luta política, social e ambiental que aquele género que é visto como a country brasileira soube embandeirar.
Porém, hoje o sertanejo não só se transformou na música mais industrializada e consumida no Brasil como na expressão cultural da sua vocação económica, aponta Mac: “Assim como a expressão económica é a de monocultura, da soja e do gado, essa também é a expressão cultural do sertanejo. Quer dominar tudo.” Com Bolsonaro no poder, dizem, a situação piorou. “A expressão do bolsonarismo na música é o sertanejo. Ele limitou todos os outros estilos de respirarem”.
Existir enquanto banda de indie rock independente no estado de Goiás é, desta forma e por si só, algo impensável. “Fora do sertanejo em Goiânia não existe nada que te possa acolher”. A exceção são os festivais, como o mítico Bananada (que em sinal de protesto se realizava ao mesmo tempo que a grande Feira de Agropecuária) onde toda a contracultura encontrava um lugar para se expressar: “Toda gente caía no festival de rock, por falta de um outro espaço. Era um grande guarda chuva. A cultura LGBT, o hip-hop, o punk, os metaleiros, todos acabavam por se encontrar nesse lugar tendo que engolir as diferenças, porque não existia nenhuma outra opção”.
[“Sobremesa”:]
A pandemia, entretanto, chegou, os festivais ficaram em suspenso, os artistas enfiados em casa, o Brasil entrou numa grave crise económica e de repente Salma e Mac viram-se encurralados. “A banda [Carne Doce] foi bastante penalizada com custos logísticos. Ficou muito caro viajar no Brasil e em Goiás há poucas salas de concerto para uma banda.” A escapatória que encontraram foi a de resgatar temas antigos e de fazerem outros novos em duo. Voltaram ao quarto e ao formato minimal da canção.
MPB, Bossa Nova e jazz: o universo de Alexandre Kassin
Salma e Mac é, assim, fruto da pandemia e da interioridade. Se numa primeira instância o projeto se apresentou de forma algo experimental, com o EP lançado em 2021 (que de certo modo representa uma extensão da própria linguagem dos Carne Doce), agora ganhou asas ao esbarrar com Alexandre Kassin, músico que formou nos anos 2000 o trio +2, com Moreno Veloso e Domenico Lancelotti, e que produziu álbuns de artistas como Los Hermanos, Adriana Calcanhotto, Jorge Mautner, Mallu Magalhães ou Vanessa da Mata.
Todo este processo foi novo para Salma e Mac. Até então, os músicos sempre assumiram a produção dos seus próprios trabalhos, mas para o projeto em duo, ainda a dar os primeiros passos e a encontrar a sua identidade, quiseram procurar um produtor externo. “Conversámos com vários na altura, mas a conversa com o Kassin foi mais bem amarrada esteticamente”, lembra Mac. Ficaram dez dias no Rio de Janeiro, alugaram um Airbnb próximo do estúdio do produtor, em Botafogo, e gravaram todo o álbum em oito dias.
O mundo das canções encontrou, assim, conforto na esfera de Alexandre Kassin, que trouxe para o disco o multi-instrumentista Leonardo Reis (músico premiado com dois Grammy Latino pela participação em álbuns de Gilberto Gil e Caetano Veloso), a leveza da Bossa Nova e do MPB e a elegância do jazz que, ao invés de se sobrepor com arranjos altamente virtuosos, dá espaço para a voz de Salma e os acordes de Mac brilharem. Numa entrevista recente, o produtor explicou que o objetivo foi fazer com que as músicas soassem em torno das letras sem nunca se insurgirem com demasiada brusquidão: “A base está sempre cozinhando, não explode”.
Isso torna o prazer de ouvir Voo Livre tão leve e dengoso quanto o de boiar no mar, esticar o corpo na areia, bronzear ao sol como leão na savana ou o de ficar numa esplanada de caipirinha na mão a ver o dia a desaparecer no horizonte e não pensar em mais nada a não ser em existir plenamente nesse doce presente de viver.
Chegar a novos públicos, sem esquecer Carne Doce
Neste universo dionisíaco que se apresenta ao longo de oito faixas vai-se insurgindo matreiramente uma ligeira tristeza, um murmúrio leve nas entrelinhas como que a nos querer lembrar que a qualquer momento podemos desabar e acabar novamente na melancolia. Trememos, mas não chegamos a cair e é precisamente esse difícil balançar que revela toda a subtileza de Salma enquanto escritora de canções e de Mac enquanto compositor. Nas suas mãos estamos em voo livre e, simultaneamente, em queda livre, ou não é assim que acontece no amor e na vida real?
Para este primeiro trabalho de originais, o duo não esqueceu os Carne Doce. Os temas “Cetapensâno”, do disco Princesa, de 2006, e “Hater”, de Interior, foram encaixados no alinhamento com uma roupagem completamente nova, pensada para ir ao encontro da aura idealizada por Alexandre Kassin. “Acho que elas funcionam melhor com voz e violão”, partilha Mac, explicando que este projeto abre espaço para que os músicos saiam “do nicho específico onde os Carne Doce existem”. “Com este projeto sentimos que podemos chegar a outro público, a pessoas que não escutariam à partida estas músicas com os Carne Doce, porque é muito indie e alternativo”.
[“Cetapensâno”:]
Agora que o álbum está cá fora, o desafio seguinte é o de fazer conviver os dois projetos – o duo e a banda – em simultâneo. “No buraco de um, a gente faz o outro e, na verdade, esperamos que um facilite o outro”, diz Salma. “São logísticas independentes, mas por enquanto achamos que é complementar”.
É com esse espírito em mente que os músicos de Goiânia querem regressar a Portugal. Depois de terem passado por cá em 2019, com cinco datas que serviram de apresentação do terceiro álbum de estúdio dos Carne Doce, Tônus (2018), Salma e Mac querem-nos mostrar agora Interior e o seu Voo Livre. Existe uma luz ao fundo do túnel para que isso aconteça já no início do próximo ano. “Tomara que a gente se veja cara a cara em breve”, entusiasma-se Salma. “Acho que isso vai acontecer”, reforça Mac. Ficámos à espera da “Sobremesa”, com açúcar, com afeto e safadeza.