Antes de António Costa tirar a gravata para arrancar oficialmente a Web Summit, o groove dos portugueses Orelha Negra encheu um Altice Arena esgotado. No palco, não havia sinais de Paddy Cosgrave, fundador e líder da Web Summit, e os 15 minutos de atraso fizeram-se esquecer com os primeiros beats de “Parte de Mim”, single do último álbum da banda de Sam the Kid, DJ Cruzfader, Francisco Rebelo, João Gomes e Fred Pinto Ferreira. Nos ecrãs gigantes: imagens de Lisboa, num vídeo da autoria de Vhils que mostrava a cidade entre os seus pontos mas turísticos e projetos empreendedores com base na capital. Na plateia: as dezenas de milhar de pessoas que estão em Portugal para a maior conferência de empreendedorismo e inovação da Europa. No Altice Arena, dançou-se sentado: “Sejam incrivelmente bem-vindos à Web Summit e à incrível cidade de Lisboa”.
O arranque da Web Sumit aconteceu — como Paddy haveria de escrever mais tarde no Twitter — “sem falhas” de Wi-Fi, ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando tentou fazer um Facebook Live, mas não teve rede. Desta vez, o irlandês de 34 anos pediu a todos os participantes que se levantassem e se apresentassem às três pessoas que estavam a seu lado. “Olá, eu sou o Ben”, “Olá, eu sou a Ana”. Uma espécie de “Paz de Cristo” na Web Summit. “Sentados à vossa volta estão brilhantes empreendedores de todo o mundo”, disse Paddy. Na fila da frente, a mulher Faye e o filho Cloud, de um ano. Pediu aplausos para a estreia de ambos em Lisboa e a audiência respondeu.
WiFi worked flawlessly ????
Thank you @Altice + @Cisco ????— Paddy Cosgrave (@paddycosgrave) November 6, 2017
Num discurso mais emocionado do que o do ano passado, o líder da Web Summit relembrou a primeira edição da conferência em Dublin, em 2010, que teve apenas 40 participantes. Antes de passar a palavra a Nuno Sebastião, presidente executivo da portuguesa Feedzai, uma startup que atua na deteção de fraude eletrónica e que é líder em inteligência artificial, lembrou que a Web Summit serve para falar “do progresso da tecnologia, mas também dos perigos“, sublinhando que o impacto de toda esta revolução “está apenas a começar” e que é preciso refletir sobre ela. Nos próximos dias, vão passar pela Web Summit mais de 81.000 pessoas de 107 países. “Vão todos conhecer pessoas incríveis”, disse.
O primeiro-ministro concorda. No final da sessão de abertura da Web Summit, antes de, juntamente com Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ter pressionado o botão que fez a contagem decrescente para o arranque oficial, quebrou o protocolo para elogiar a “criatividade e energia” dos empreendedores portugueses, dirigindo-se às pessoas que estavam presentes no Altice Arena em português. “É com orgulho, como primeiro-ministro, que vejo o ecossistema das startups portuguesas” e “aquilo que quero pedir a todos é que aproveitem muito bem esta semana, bem como as oportunidades de darem a conhecer Portugal e de aprenderem com pessoas de todo o mundo”.
Costa, que foi responsável por muita da dinamização do ecossistema de empreendedorismo na capital portuguesa, com a abertura da Startup Lisboa, lembrou que a revolução digital que estamos a viver não trata apenas de “clouds e códigos”. “Até a era digital tem no seu coração e alma o cara-a-cara, que sempre será a melhor forma de conhecer pessoas. De partilhar ideias e de tornar essas ideias em negócios”, defende o primeiro-ministro. “A Web Summit põe Lisboa no debate global” desta revolução, acrescentou. E foi das necessidades desta revolução que mais se falou na abertura da Web Summit.
Mais e melhor regulação para tecnologia, defenderam António Guterres e Margrethe Vestager
A comissária europeia Margrethe Vestager — a dinamarquesa que tem a pasta da concorrência na União Europeia — e o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, foram as duas figuras políticas mais sonantes da noite. Num evento em que os limites do desenvolvimento tecnológico e a ética na inovação dominaram a discussão, Vestager e Guterres trouxeram uma mensagem clara por parte da esfera política: é preciso regular mais e melhor a forma como se produz tecnologia.
“Temos de reconquistar a democracia. A sociedade é formada por pessoas, não por tecnologia”, atirou mesmo a comissária europeia. A frase é um bom resumo das intervenções da noite e mereceu fortes aplausos, mesmo tratando-se talvez de uma das figuras mais controversas em Silicon Valley. Isto porque Vestager foi o rosto, em junho, da multa milionária (de 2,4 mil milhões de euros) aplicada à Google pela Comissão Europeia, por abuso de posição dominante no mercado de motores de busca.
Talvez por isso, Kara Swisher, editora executiva da publicação digital norte-americana Recode, que moderou a conversa com a comissária no palco da Web Summit, tenha começado o momento por lhe perguntar “how fucked is Silicon Valley?”. Vestager não respondeu à letra, mas garantiu que as multas vão mesmo ser pagas. Ainda lembrou os esquemas da Apple na Irlanda para pagar menos impostos, e destacou que as empresas têm todas de pagar impostos “de forma justa”. Sem exceções, nem mesmo para as maiores e mais bem sucedidas.
Para a comissária dinamarquesa, é necessário ter “a certeza de que todos os negócios têm oportunidades justas para ter sucesso no mercado”. “Todos aqui gostariam de ser o próximo Google”, disse Vestager, apontando para a plateia. Por isso, defendeu, são necessárias “regras básicas” no mercado tecnológico, inclusivamente nas questões fiscais. “Não devemos negar a ninguém a possibilidade de desafiar o mercado. A concorrência serve para garantir que esses desafios existem”, sublinhou, rejeitando as críticas de que foi alvo depois da multa milionária aplicada à Google.
Sobre a Inteligência Artificial, tema que marcou a noite de abertura — sobretudo com o vídeo surpresa do físico Stephen Hawking — Vestager limitou-se a dizer que “alguns algoritmos deviam passar por aulas de direito”. E fazer tecnologia sem esquecer que a sociedade é “formada por pessoas”. Uma ideia que António Guterres, que subiu a palco imediatamente depois da comissária, completaria: “É importante que a inovação e a tecnologia funcionem para o bem da Humanidade”. O secretário-geral da ONU, que falou a alta velocidade num inglês fluente, foi também amplamente aplaudido — ou não fosse ele uma das figuras mais consensuais da governação mundial.
Stephen Hawking já tinha alertado para o mesmo: será “a inteligência artificial a melhor ou a pior coisa da humanidade?” Para o físico, esta “nova revolução” pode ser o “símbolo da nossa civilização”, mas também podemos ser “destruídos” por ela. No final, acabou por dizer que é “um otimista” e que acredita que a inteligência artificial pode beneficiar o mundo.
Web Summit. A aula surpresa que Stephen Hawking deu sobre a “nova revolução”
Guterres não teve meias palavras. Reconhecendo que “nas últimas décadas” a Humanidade testemunhou um grande progresso tecnológico, que teve um “impacto maioritariamente bom”, o secretário-geral das Nações Unidas alertou para os dois “danos colaterais” do crescimento exponencial da tecnologia: as alterações climáticas e a desigualdade na distribuição da riqueza a nível mundial. E defendeu medidas mais fortes para combater ambos os problemas, argumentando que o que foi feito até agora não chega.
Relativamente às alterações climáticas, Guterres foi perentório: “O acordo de Paris não é suficiente”, porque “a implementação é difícil”. É necessária maior cooperação entre governos e empresas, defendeu. Mas deixou uma palavra de ânimo pelo que já está a ser feito: “A ciência está do nosso lado. Os negócios verdes são os bons negócios”. O mesmo se verifica para o combate à desigualdade. Hoje já existem, sublinhou Guterres, “formas de inovação que nos vão ajudar a ter um crescimento que beneficie toda a gente”. Não apenas os mais ricos, mas toda a sociedade por igual.
Uma das principais formas de garantir que a evolução tecnológica acontece da melhor forma possível é antecipar as consequências potencialmente negativas. “No país onde vivo atualmente, que são os Estados Unidos, a maioria dos empregos estão relacionados com a condução. Mas, dentro de uns anos, não vamos precisar de condutores”, exemplificou Guterres, destacando a necessidade de antecipar as ameaças e de não as reconhecer “apenas quando é tarde demais”. “Precisamos de olhar para o futuro com uma estratégia”, destacou.
Tal como Vestager, Guterres defendeu mais regulação da atividade tecnológica para cumprir estes objetivos. Mas foi mais longe, admitindo que é “ingénuo” acreditar que os mecanismos de regulação que existem hoje, controlados pelos governos, são capazes de lidar com o problema. “Os mecanismos de regulação que temos não são suficientes para dar resposta. Os mecanismos de regulação do futuro terão de ser diferentes. Temos de combinar governos, cientistas, mas também a sociedade civil, a academia, e estabelecer plataformas de discussão”, defendeu. E deixou uma questão: “Como podemos assegurar que a inovação é uma força usada para o bem?”
O “casamento” entre Lisboa e a Web Summit é para durar, garante Medina
O presidente da câmara — ou mayor, que a Web Summit é toda em inglês — de Lisboa foi a última figura a subir ao palco antes da abertura oficial do certame e trouxe um presente para Paddy Cosgrave. A prenda do ano passado parecia difícil de superar. Afinal, em 2016, Fernando Medina ofereceu ao fundador da Web Summit as chaves da cidade, a mais honrosa distinção que um município concede. Por isso, Medina trouxe uma oferta “diferente”, para assinalar a parceria com a Web Summit, que “é de longo prazo, como um bom casamento”.
“Quero dar-lhe este astrolábio. Lisboa foi a capital do mundo há cinco séculos. De Lisboa partiu uma grande aventura que uniu a Humanidade. O que fazemos aqui hoje é reviver essa grande aventura que parte de Lisboa. Há 500 anos foram os navegadores, hoje são vocês. Os empreendedores”, disse Medina, aplaudido em massa pelo vasto auditório que encheu o Altice Arena.
“Welcome to Lisbon. Welcome to your home!“, rematou Medina, aos gritos, já no meio de dezenas de empreendedores portugueses que Paddy chamou ao palco para a abertura oficial do evento. Um longo abraço a António Costa e em poucos segundos lá estavam os três — Medina, Costa e Paddy — com a mão em cima do botão ao meio do palco: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1: carregou-se no botão, voaram confetti e quando olhámos para o palco já Costa — aos saltos — não tinha gravata. Foi, enfim, uma festa.