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O Irão vai a votos. Mas... o Irão é uma democracia?

A resposta curta é “não, o Irão não é uma democracia”. Mas, como todas as respostas curtas, também esta esconde uma série de nuances que são importantes para entender as eleições desta sexta-feira, 26 de fevereiro, no Irão.

Desde que a República Islâmica do Irão foi instituída em 1979 — após o derrube do Xá Mohammad Reza Pahlavi, o monarca apoiado pelos EUA –, o país já teve várias eleições. Presidenciais: 11. Legislativas, para eleger o parlamento, cujos representantes são conhecidos por Majlis: 10, sem contar com as que agora vão acontecer. Além disso, as eleições de sexta-feira vão ser as quintas para a Assembleia de Peritos — que, além de assegurar que os princípios islâmicos são mantidos na governação do país, nomeia o Líder Supremo.

O Líder Supremo e o Presidente são, cada um do seu lado, as figuras cimeiras da política iraniana.

O atual Líder Supremo é Ali Khamenei (foi nomeado para o cargo em 1989) e foi precedido de Ruhollah Khomeini (1979-1989), o fundador da República Islâmica do Irão. Este cargo é o o mais importante na hierarquia política do país, tendo a última palavra na política interna e externa do Irão, agindo sobretudo como um supervisor. Formalmente o cargo não é vitalício, mas na prática tem sido assim — o Conselho dos Guardiães, o órgão que nomeia o Líder Supremo, também pode depô-lo. Algo que nunca aconteceu.

O Presidente é Hassan Rouhani, eleito em 2013 e com mandato até 2017. No Irão, o Presidente é chefe de Governo mas está abaixo do Líder Supremo. Assim, embora coordene a economia do país e possa intervir noutras áreas, a sua ação estará sempre dependente da aprovação do Líder Supremo e da esfera deste.

O Líder Supremo não é eleito por sufrágio universal. O Presidente é.

Se é um facto que o país presidido por Hassan Rouhani tem um historial considerável de eleições, também é verdade que estas não acontecem sem percalços ou condicionamentos. Foi assim em 2009, o ano da reeleição do então Presidente Mahmoud Ahmadinejad, uma das caras da linha mais radical, dos ultraconservadores, fortemente islamista.

Nesse ano, Ahmadinejad venceu com 62,6% dos votos, contra os 33,9% do ex-primeiro-ministro (1981-1989) e reformista Mir-Hossein Mousavi.

As alegações de fraude eleitoral não tardaram a surgir — embora nunca tenham sido apresentadas provas nesse sentido, muito em parte por não haver monitorização das eleições — e deram origem ao Movimento Verde, um grupo liderado pelo próprio Mir-Hossein Mousavi e que motivou várias manifestações. A tensão só viria a terminar em 2010, após repressão violenta de protestos, prisão de ativistas e outros opositores ao regime. Além de acusar o regime de tortura dos presos políticos, a oposição referiu na altura que a reação do Governo iraniano ao Movimento Verde resultou na morte de 72 pessoas — o dobro dos números apresentados pelas autoridades, que referiam serem 36 as vítimas mortais.

A repressão daqueles anos — e o relativo silêncio de vozes discordantes, conseguido graças ao encarceramento de vários opositores, inclusive de Mousavi, que desde 2011 está em prisão domiciliária — veio dar a prova de que o Irão não é, de facto, um país democrático apesar de ter eleições.

E, mesmo admitindo que os votos são contados de forma mais ou menos legítima, há outros fatores que determinam que o Irão não tem eleições verdadeiramente livres. Um deles é a falta de liberdade de imprensa — no ranking dos Repórteres Sem Fronteiras, o Irão aparece em 173º lugar num total de 180 países. E também noutro ranking, o Democracy Index da Economist Intelligence Unit, que tem em conta cinco princípios (processo eleitoral e pluralismo; funcionamento do governo; participação política; cultura política; liberdades civis) o Irão surge em 156º entre 167 países.

No que diz respeito a este ano, e ainda antes de os iranianos irem mesmo a votos, o processo eleitoral não tem decorrido de forma totalmente justa e livre. Mas isso não diz respeito a uma particularidade deste ano, mas antes ao funcionamento do sistema político do Irão.

O que nos leva à próxima pergunta: é possível cada cidadão iraniano ser candidato nestas eleições?

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É possível qualquer cidadão iraniano ser candidato nestas eleições?

Não.

Todos os candidatos que se apresentam a votos no Irão (tanto para o Parlamento como para a Assembleia de Peritos) têm de ser aprovados pelo Conselho dos Guardiães.

O Conselho de Guardiães é um órgão próximo do Líder Supremo, Ali Khameini, e é composto por 12 membros. Metade são clérigos escolhidos por Khameini. A outra metade são juristas escolhidos pelos Majlis, isto é, os deputados no Parlamento. Como é apanágio dos órgãos superiores da política iraniana, o Conselho dos Guardiães rege-se pelos princípios islâmicos que orientam a constituição do país. Neste momento, é dominado pela linha ultraconservadora, para desvantagem das outras duas correntes de relevo (os moderados e dos reformistas).

O resultado disto é que a cada eleição, um número considerável de candidatos é excluído logo à partida — e entre estes, a maioria são precisamente os candidatos reformistas. Este ano, 12 mil pessoas apresentaram-se como candidatos a candidatos. Entre estes, havia 3 mil reformistas — dos quais apenas 30 foram aprovados. Entre os reprovados, estava o reformista Hassan Khomeini, neto do fundador da República Islâmica do Irão, Ayatollah Khomeini.

Hassan Khomeini era candidato à Assembleia dos Peritos, o órgão que designa o nome do Supremo Líder. Segundo os media iranianos, o Conselho dos Guardiães referiu que o neto do fundador daquela república “não tem a suficiente sabedoria islâmica para ajudar a designar o próximo Líder Supremo”.

No final, dos 12 mil putativos candidatos, apenas 6 185 foram admitidos. Entre estes, estão 586 mulheres.

O Presidente, o moderado Hassan Rouhani, apelou ao campo político dos reformistas no sentido de não boicotarem estas eleições. “Se uma loja não tem as roupas ideias para comprarem para o vosso filho, vocês vão querer comprar qualquer coisa na mesma, se for para evitar que o vosso filho não passe frio”, disse, segundo a agência noticiosa IRNA.

De resto, não vai haver boicote, com os reformistas a colocarem o seu apoio nos candidatos moderados. “O nosso objetivo principal é ter o mínimo de ultraconservadores, tanto na Assembleia dos Peritos como no Parlamento”, disse ao The New York Times Hamidreza Jaleipour, um membro destacado do movimento reformista.

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Estas eleições vão servir para eleger quem? E para que órgãos?

Na sexta-feira, dia 26 de fevereiro, os iranianos vão votar para dois órgãos: o Parlamento e a Assembleia de Peritos.

O Parlamento, cujos 290 deputados são conhecidos como Majlis, tem a função legislativa. Há eleições para este órgão de quatro em quatro anos. Além de elaborar leis, tem também o poder de ratificar tratados internacionais e aprova o orçamento anual. Ainda assim, as decisões dos Majlis podem ser reprovadas pelo Conselho dos Guardiães — um órgão de 12 membros, em que uma metade é escolhida pelo Líder Supremo e outra pelo Parlamento –, que tem a função de assegurar que a legislação aprovada no Parlamento está em conformidade com a lei islâmica, também conhecida como sharia.

A Assembleia de Peritos é um órgão composto por 88 teólogos islâmicos, que são eleitos por sufrágio universal — mas, conforme já foi dito, o Conselho dos Guardiães faz um processo de seleção prévio que determina quem são os candidatos à Assembleia de Peritos. Uma das funções deste órgão é escolher o Líder Supremo do Irão — hierarquicamente a posição mais alta no sistema político do país.

A escolha da Assembleia de Peritos para Líder Supremo é extremamente importante. Pista: o atual Líder Supremo, Ali Khamenei, pode morrer nos próximos anos.

E é precisamente aqui que estas eleições ficam interessantes.

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A Assembleia de Peritos "é extremamente importante" porquê? E o que pode mudar com as eleições?

A Assembleia de Peritos tem sido, nos últimos anos, um órgão meramente decorativo — mas está perto de deixar de o ser. E tudo isto por uma razão muito natural: o Líder Supremo, Ali Khamenei, pode estar próximo de morrer, depois de 27 anos de poder. Além de ter 76 anos, há anos que circulam rumores que apontam para a fragilidade da sua saúde.

Assim, a Assembleia de Peritos terá provavelmente a tarefa de escolher o próximo Líder Supremo do Irão — uma decisão que pode ser bastante importante e que pode mudar o rumo do país.

Pode é palavra-chave — e aqui convém sublinhar de novo que o Irão não é uma democracia.

Os mais otimistas, como é o caso do site norte-americano Vox, escrevem que se resultar destas eleições uma Assembleia de Peritos “mais moderada”, esta poderá por sua vez “selecionar um Líder Supremo mais moderado para substituir Khamenei — mudando o rumo do futuro do Irão durante uma geração ou mais”.

Por outro lado, há os mais pessimistas, como é o caso de Ray Takeyh, especialista no Médio Oriente do Council on Foreign Relations. “No rescaldo das eleições, é improvável que o Parlamento atue decididamente e a Assembleia de Peritos não vai provavelmente escolher o próximo Líder Supremo, mas sim assinar de cruz uma seleção feita por outros“, escreve.

Também a Foreign Affairs prevê que “qualquer esperança por uma mudança verdadeira, tanto no plano interno como nas relações com o estrangeiro, provavelmente terá de esperar”.

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Que forças políticas é que vão a votos?

Mais importante do que falar em partidos — que no Irão são vários, só no Parlamento são mais de dez –, convém referir as três correntes que regem a política iraniana e que estão representadas naquele órgão:

  • Ultraconservadores. Tradicionalistas e fortemente anti-EUA, são a força com mais poder no atual statu quo da política iraniana. Ali Khamenei, Líder Supremo, é a mais ilustre personalidade desta corrente. Também Ali Larijani, Presidente da Assembleia do Irão, faz parte deste grupo, mas tem promovido o diálogo com os moderados.
  • Moderados. Conservadores e pragmáticos. O Presidente, Hassan Rouhani, é a cara mais relevante desta facção, que procura chegar a consensos com a corrente ultraconservadora. O acordo nuclear com os países do P5+1 é o exemplo mais vivo dessas negociações.
  • Reformistas. São a força que mais se distingue das restantes forças políticas e, como o nome indica, são os que mais colocam em causa o statu quo. São a favor do mercado livre, de uma maior abertura ao estrangeiro e de maiores liberdades cívicas, a par de um sistema eleitoral proporcional. Foram os reformistas que encabeçaram o Movimento Verde (manifestações após a reeleição do Ahmadinejad em 2009). Nestas eleições, viram vários candidatos a serem impedidos de concorrer — e passaram a apoiar os moderados numa tentativa de combater os ultraconservadores.
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Quais são as questões principais destas eleições?

A economia é a questão principal — e no caso do Irão isto tem muito a ver com a sua política externa.

Durante os anos de Mahmoud Ahmadinejad (2005-2013), o Irão ficou cada vez mais isolado, sendo confrontado com uma catadupa de sanções — com o embargo ao petróleo iraniano por parte da União Europeia em 2012 a fazer mossa, levando à recessão e a uma inflação galopante.

No entanto, a economia está a crescer (4,3% em 2014 e 1,9% em 2015) e a inflação desceu de um pico de 45,1% em 2012 para 9,6% em janeiro de 2016. A taxa de desemprego oficial está atualmente nos 10,7% — um valor ainda alto, mas melhor do que os 14,7 do primeiro trimestre de 2011. A contribuir para as recentes melhorias terá estado o acordo nuclear, que de uma forma histórica pôs o Irão à mesa com países da UE e os EUA.

O impulso económico — a troco do refreamento do programa nuclear — que se adivinha, apesar dos preços baixos do petróleo, poderá resultar numa melhoria da qualidade de vida dos iranianos. Para isto, ultraconservadores e moderados, os dois maiores blocos do Parlamento, terão de chegar acordo na elaboração dos orçamentos anuais vindouros.

A segunda questão é a abertura ao estrangeiro — algo que, já se viu, está intrinsecamente ligado à economia do país.

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O levantamento de sanções contra o Irão que se seguiu ao acordo nuclear tem influência?

O acordo nuclear firmado entre o Irão e os países do P5+1 (EUA, Rússia, China França, Reino Unido — enquanto membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU — mais a Alemanha) foi, no plano internacional, a maior e mais bem executada jogada política do Presidente Hassan Rouhani.

Em troca de reduzir as suas pretensões nucleares, o Irão consegue ganhar fôlego para a sua economia — e, assim, está em melhor posição para levar para a frente medidas que podem melhorar a qualidade de vida do cidadão comum. Dentro de portas, este foi um feito de Rouhani (moderado), mas que teve de contar com a aprovação (relutante) de Khamenei (o Líder Supremo, ultraconservador). É certo que os candidatos moderados tratarão de tirar proveito deste acordo — mas ainda não é claro se isso se vai refletir nos votos desta sexta-feira.

Certo é que Rouhani tenta uma abertura gradual ao estrangeiro, entretanto consumada com visitas oficiais a Itália e França, onde firmou um contrato com a Airbus no valor de 24,5 mil milhões de euros– algo que os ultraconservadores não verão com bons olhos.

O acordo determinou que o Irão iria reduzir a quantidade de urânio enriquecido em 98% nos próximos 15 anos — o que, na prática, torna a produção de uma bomba nuclear bastante mais difícil para Teerão. Além disso, o Irão acedeu a usar apenas 5 060 das suas 20 mil centrifugadoras. Tudo isto será inspecionado pelos países do P5+1.

Em troca, o Irão conseguiu um levantamento de sanções económicas impostas em 2012 que desde então resultaram em perdas de cerca 139 mil milhões de euros só na venda de petróleo. Além de poder retomar esse negócio com o estrangeiro, o Irão vai poder retomar o acesso a bens “congelados” no estrangeiro, que chegam a valer cerca de 90 mil milhões de euros.

Embora ainda estejam em vigor outras sanções ao Irão, a expectativa é que a economia do país consiga agora recuperar de anos pouco positivos — depois da recessão dos anos 2012 (-6,6) e 2013 (1,9), e apesar do crescimento de 4,3% de 2014, a economia ganhou apenas 1,9% em 2015. Mais significativa — e preocupante — é a taxa de inflação. Segundo números do Banco do Irão, a inflação chegou a estar nos 45,1% em 2012. Mas já em alturas da implementação do acordo nuclear, em janeiro de 2016, o número descia para 9,6%.