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O que já se sabe sobre o primeiro caso detetado de reinfeção pelo novo coronavírus?

O primeiro caso confirmado de reinfeção com o novo coronavírus foi identificado por uma equipa de investigadores da Universidade de Hong Kong, num artigo científico. O paciente é um homem de 33 anos que reside em Hong Kong e não tem problemas de saúde prévios. O primeiro teste positivo foi conhecido a 26 de março e, três dias depois, o homem foi hospitalizado com sintomas de tosse, expetoração, dor de garganta, febre e dor de cabeça. Só teve alta a 14 de abril, após dois testes negativos, feitos com um intervalo de 24 horas.

O vírus voltou a ser detetado passados quatro meses, a 15 de agosto, depois de o paciente ter visitado Espanha, com uma escala no Reino Unido. Foi testado no aeroporto de Hong Kong e deu positivo. Voltou a ser hospitalizado, mas, desta vez, permaneceu assintomático.

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Entretanto, surgiram mais casos?

Sim. Um dia depois de ter sido noticiada a reinfeção do cidadão de 33 anos, natural de Hong Kong, dois virologistas — uma holandesa e um belga — também anunciaram ter detetado um caso de reinfeção em cada um dos países.

Nos Países Baixos, foi Marion Koopmans, assessora da Organização Mundial de Saúde (OMS), a confirmar que um paciente holandês — um idoso com um sistema imunitário “deteriorado” — voltou a contrair a doença. Koopmans não revelou quais os sintomas que o paciente apresentava. Mas explicou que, para ser considerado um caso de reinfeção, é necessário provar que o material genético do vírus na primeira infeção é diferente do material genético detetado na segunda infeção (ou seja, são de estirpes diferentes). Tal como se verificou.

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Já na Bélgica, a notícia foi confirmada por Marc Van Ranst, virologista e conselheiro sanitário do governo. Trata-se de uma cidadã belga, com sintomas ligeiros e que voltou a contrair o vírus três meses após a primeira infeção, mas com uma estirpe diferente do novo coronavírus. A mulher não foi hospitalizada.

Estes dois casos não foram, porém, ainda publicados em revistas científicas, pelo que se conhecem poucos pormenores.

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Os cientistas já esperavam que isto pudesse acontecer?

Sim. Quando anunciou o primeiro caso de reinfeção confirmado nos Países Baixos, Marion Koopmans disse que a descoberta “está em linha com as expectativas científicas”. Até agora só “não existiam provas disso”. E exemplificou com as infeções respiratórias que podem “ocorrer duas vezes ou até com mais frequência”. “Sabemos que uma pessoa não está protegida para toda a vida se tiver sido infetada uma vez e é isso que esperamos da Covid-19″, disse. A reinfeção é, aliás, possível com outros coronavírus, uma vez que a imunidade não é duradoura.

Ao Observador, João Gonçalves, virologista e professor da Universidade de Farmácia de Lisboa, concorda que era uma questão de tempo até ser detetado o primeiro caso de reinfeção. “Certamente vai acontecer mais vezes”, garante. E compara com o vírus da gripe: “Uma pessoa que tem uma gripe no inverno pode vir a ser infetada novamente no outro inverno, mesmo que tenha sido vacinada.”

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Se há uma reinfeção, significa que não produzimos anticorpos ao vírus?

Não. Segundo João Gonçalves, “produzir [anticorpos], produzimos sempre”. O problema é que alguns desses anticorpos podem não ser suficientemente bons para protegerem de uma nova infeção. E uma pessoa com sintomas mais graves desenvolve, à partida, mais anticorpos e mais eficazes, ficando — sublinhe-se, à partida — mais protegida.

Por outras palavras, se uma infeção provocar sintomas mais leves ou moderados, como aconteceu com a primeira infeção do paciente de Hong Kong, as respostas imunitárias serão mais fracas, criando as condições para uma segunda infeção.

Uma outra hipótese levantada pelos investigadores é que o paciente de Hong Kong até pode ter produzido vários anticorpos, mas, se o fez, estes desapareceram rapidamente, o que levanta dúvidas sobre a duração da proteção. Ainda que a nova infeção tenha sido provocada por uma estirpe diferente da primeira, esperar-se-ia uma resposta imune na segunda infeção, caso o paciente tivesse anticorpos suficientes.

João Gonçalves frisa, porém, que este caso é 1 em 24 milhões de infeções. O expectável é que, se uma pessoa já esteve infetada, o corpo conseguirá dar uma resposta melhor contra o vírus do que daria se não tivesse acontecido uma infeção. É por isso que se espera que os sintomas das reinfeções sejam menos graves do que os da primeira infeção.

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Como não há certezas sobre os anticorpos, as vacinas podem não ser eficazes? Ou durar pouco tempo?

Depende. A vacina atua contra uma determinada estirpe do vírus. Mas os vírus modificam-se ao longo do tempo, crescem, criam mutações. E é assim que surgem novas estirpes.

Uma vacina que agora esteja a ser desenvolvida para combater uma estirpe pode não ser tão eficaz contra outra que já exista ou que vai ser gerada nos próximos meses.

Também não é ainda certo durante quanto tempo duram os anticorpos. Segundo já disse ao Observador Marc Veldhoen, imunologista no Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, “nos coronavírus das constipações, os anticorpos mantêm-se apenas alguns meses”. No caso do SARS e do MERS, “aquilo que foi registado é que os anticorpos podiam durar entre seis meses e três anos”. Para o novo coronavírus ainda não há respostas. E a duração da imunidade gerada por uma vacina apenas poderá ser aferida com anos de monitorização das pessoas imunizadas.

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Para exemplificar, podemos comparar a vacina à resposta imunitária do corpo do doente de Hong Kong (ainda que sejam respostas diferentes). O paciente foi primeiro infetado com uma determinada estirpe, mas, numa viagem à Europa, o corpo entrou em contacto com um vírus algo diferente e não conseguiu “identificá-lo” — daí que tenha surgido uma nova infeção. Ainda assim, o corpo terá resistido melhor do que à primeira infeção (não está sintomático). É essa lógica que se espera com uma vacina: ainda que possa não ser totalmente eficaz contra uma estirpe diferente daquela para que foi desenvolvida, deverá dar alguma proteção a quem a tomar.

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Ou seja, vamos ter de ir "atualizando" a vacina?

Provavelmente, sim. Como, aliás, acontece com as vacinas do vírus da gripe. Os países de cada hemisfério estão atentos à forma como decorreu a época da gripe no ano anterior e no hemisfério oposto para perceber quais as estirpes que foram mais frequentes. A partir daí, é criada vacina.

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A imunidade que nos dará uma vacina é igual à que ganhamos depois de uma infeção?

Em princípio, “vai ser melhor“, explica João Gonçalves. É que as vacinas são desenvolvidas para estimular a imunidade. “Uma pessoa quando é vacinada tem um estímulo do seu sistema imunitário mais forte do que se tivesse uma infeção normal.”

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Este SARS-CoV-2 tem mais mutações do que é normal?

Não mais do que se esperava, garante João Gonçalves. Ainda assim, comparado com outros coronavírus, como o SARS ou o MERS, a capacidade de mutação é maior. Porquê? Porque este vírus adaptou-se melhor às células humanas ou, por outras palavras, é mais infecioso. E quanto mais se propaga, mais mutações cria.

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Já ouvi antes relatos de reinfeção. Eram falsos?

Nos últimos meses têm, efetivamente, surgido diversos relatos de doentes que foram dados como recuperados, com testes negativos, mas que voltaram a testar positivo, semanas ou meses depois. Aconteceu na China, na Coreia do Sul, em Singapura e em Itália. Se a Universidade de Hong Kong está a anunciar agora o primeiro caso de reinfeção, quer dizer que esses relatos eram falsos?

Não é claro se esses casos foram, de facto, de reinfeção. Ou se os doentes em causa nunca estiveram verdadeiramente livres do vírus, mas tinham, na altura do teste que deu negativo, uma carga viral tão baixa que não foi detetada.

Para ser considerada uma reinfeção, tem de ser feita uma sequenciação genética (para chegar ao genoma) do vírus através da qual se conclua que o vírus da primeira infeção é diferente do da segunda.

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Então como sei que os novos casos eram de novas infeções?

Porque os investigadores sequenciaram o genoma do vírus e viram que tinha diferenças face ao vírus da primeira infeção. “Anteriormente esses testes não tinham sido feitos e não sabíamos bem se era uma nova infeção, se era o vírus que ainda estava no corpo, se era uma reativação”, explica João Gonçalves.

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Se ficar doente, os médicos detetam que estirpe tenho?

Não necessariamente. É o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge que está a sequenciar amostras, que recebe de diversos laboratórios, para identificar possíveis mutações (em junho, já tinha identificado 600 em Portugal — cerca de 90% das quais iguais às que circulam na Europa).

Essas amostras — de apenas alguns doentes — estão identificadas e, teoricamente, permitiriam perceber se um desses doentes que voltasse a ter sintomas foi reinfetado ou não.

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O que diz a Organização Mundial de Saúde?

A OMS adiantou esta terça-feira que os relatórios que recebeu sobre pessoas que foram reinfetadas com o novo coronavírus são muito raros.

“De vez em quando, recebemos relatos informais de pessoas que fizeram o teste com resultado negativo e depois positivo, mas não ficou claro até agora se isso é um problema com o teste em si ou se houve pessoas que realmente foram infetadas pela segunda vez”, disse a porta-voz da OMS, Margaret Harris. Estas possíveis reinfeções “representam um número muito, muito baixo”, frisou.

“Estamos perante um caso documentado entre mais de 23 milhões de casos confirmados”, disse a responsável, garantido que há equipas a seguir pacientes “medindo os seus anticorpos e tentando perceber quanto tempo dura a proteção natural”.

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Que perguntas ficam por responder?

A notícia da reinfeção de Hong Kong deixa ainda muitas dúvidas aos especialistas. Fica por saber, por exemplo, se o paciente poderia, nesta segunda vez, infetar outras pessoas. Além disso, trata-se de um homem jovem e saudável: “Será que uma segunda infeção será tão moderada para uma pessoa mais velha ou para alguém com uma doença crónica?”, questiona Sanjaya Senanayake, professor de doenças infecciosas na Universidade Nacional da Austrália.

Larisa Labzin, do Institute for Molecular Bioscience da Universidade de Queensland, coloca em cima da mesa dúvidas sobre a ideia de uma imunidade de grupo, caso estes novos casos sejam contagiosos. “São precisos mais estudos para estabelecer quão comum é esta reinfeção e como afeta pessoas de diferentes grupos etários e com fatores de risco”, adianta. E falta perceber se, efetivamente, os sintomas da segunda infeção serão sempre menores do que os da primeira.

Uma coisa é certa: notícias como a de Hong Kong mostram que é necessário continuar a cumprir medidas de distanciamento social e higienização, mesmo após recuperar da doença, até que uma vacina seja encontrada, defende Sarah Palmer, professora na Faculdade de Medicina e Saúde da Universidade de Sydney. E que é preciso desenvolver vacinas que protejam contra todas as estirpes, o que é particularmente importante para quem tem sistemas imunitários mais frágeis.

Sobre o caso de Hong Kong, Brian Oliver, da Universidade de Tecnologia de Sydney, interroga-se mesmo. “A questão que não está a ser explorada nesta altura é: porquê? A pessoa não estava a seguir as instruções de saúde pública, tem uma profissão de alto risco, uma suscetibilidade genética ou é apenas azar?