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Que discussão é esta sobre a transferência de dados?

Em julho deste ano, o Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se sobre dois tipos de mecanismos que são utilizados para controlar as transferências de dados. E decidiu invalidar um deles, o “Privacy Shield” (em português, “Escudo de Proteção da Privacidade”), mantendo em vigor as Cláusulas Legais Padrão.

O “Privacy Shield” era o principal acordo transatlântico desta ordem entre União Europeia (UE) e Estados Unidos e um dos mecanismos que permitia às empresas norte-americanas transferir e armazenar dados vindos da Europa — uma vez que não considera que os norte-americanos tenham um nível adequado de proteção. Estes mecanismos permitem às empresas comerciais e organizações norte-americanas transferir dados europeus.

Neste verão, o tribunal considerou que este acordo não era válido, porque não conseguia assegurar a proteção dos dados no nível em que é exigido pelas leis europeias. A decisão partiu depois de Max Schrems, um ativista austríaco especializado em privacidade, ter apresentado uma queixa contra a forma como o Facebook (e outros 100 sites europeus) estava a usar a informação que recolhia. Já as empresas que se enquadravam nas leis de vigilância nacional não poderiam usar estes mecanismos para transferir dados para os Estados Unidos.

Ainda assim, o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que o mecanismo das Cláusulas Contratuais Padrão continuaria em vigor, ou seja, as empresas norte-americanas poderiam continuar a receber dados da Europa, caso conseguissem dar garantias específicas de proteção e tendo em conta que, se os reguladores não as considerarem seguras, estas transferências podiam ser suspensas ou proibidas.

No entanto, nem todos consideram que este mecanismo é suficiente para garantir o cumprimento das leis da privacidade. Pelo menos no caso do Facebook.

Em setembro, soube-se que a Comissão de Proteção de Dados da Irlanda — que é o principal regulador de privacidade do Facebook na Europa — começou uma investigação à forma como a rede social transfere dados para os Estados Unidos. E o Supremo Tribunal da Irlanda ordenou a suspensão do envio deste tipo de informação, uma vez que, argumenta, “as transferências de dados [do Facebook] são feitas em circunstâncias que não garantem um nível de proteção aos titulares dos dados, que deve ser equivalente ao previsto pela legislação da UE e, em particular, pelo RGPD [Regime Geral de Proteção de Dados]”.

O Facebook, no entanto, recorreu da decisão e a ordem está suspensa até que o regulador volte a emitir um novo parecer, segundo a agência Reuters. Se os tribunais concluírem que algumas das transferências transatlânticas não protegem os utilizadores de serem alvo de espionagem por parte do governo norte-americano, a empresa de Mark Zuckerberg poderá ser forçada a parar de enviar dados sobre os seus utilizadores para os EUA. 

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O que acontece se o Facebook for forçado a parar de enviar dados para os EUA?

Se a Comissão de Proteção de Dados da Irlanda decidir avançar com a proibição da transferência de dados do Facebook da Europa para os Estados Unidos, a empresa de Mark Zuckerberg terá de fazer uma reforma cara e complexa de todas as suas operações, para assegurar que a informação sobre os utilizadores europeus fica armazenada apenas dentro da União Europeia. E não será um trabalho fácil, uma vez que a rede social movimenta uma grande quantidade de informação entre os vários centros de operação que tem espalhados pelo mundo.

A decisão preliminar já conhecida servirá também de aviso para outras grandes empresas tecnológicas com operações na Europa sobre a necessidade de assegurarem a proteção nos acordos transatlânticos e, possivelmente, para deixarem de gerir os dados da União Europeia em servidores localizados nos EUA. Apesar de esta ordem em específico apenas se aplicar ao Facebook, outras empresas norte-americanas podem vir a passar pela mesma situação.

Além disso, e caso se conclua que o Facebook não cumpre as regras europeias de proteção de dados, a Comissão de Proteção de Dados da Irlanda pode multar a empresa em até 4% da sua receita anual.

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Como reagiu o Facebook? Ameaçou mesmo a Europa?

Num comunicado publicado logo após as notícias surgirem, o Facebook explica como começou toda esta situação e alerta para os graves problemas que a falta de um acordo de transferência de dados pode ter para as empresas em todo o mundo e não só para a rede social.

Milhares de empresas europeias e americanas contam com a transferência segura e legal de dados entre jurisdições. As transferências de dados internacionais sustentam a economia global e suportam muitos serviços que são fundamentais para nossas vidas diárias”, argumenta Nick Clegg, vice-presidente de Assuntos Globais e Comunicações do Facebook.

Clegg refere que a decisão de invalidar o “Privacy Shield”, em julho, criou uma “incerteza” nas empresas de tecnologia dos Estados Unidos, “e até mesmo nas empresas europeias, que dependem de serviços online para alcançar novos clientes”. No entanto, acrescenta, a criação de uma task force do Conselho Europeu de Proteção de Dados para aplicar o que foi determinado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e uma declaração conjunta da Comissão da UE com o Departamento de Comércio dos EUA permitiu “definir uma posição para garantir a estabilidade de longo prazo das transferências internacionais de dados”.

Só que a mais recente decisão da Comissão de Proteção de Dados da Irlanda, acrescenta o responsável do Facebook, “pode ter um efeito de longo alcance em empresas que dependem de Cláusulas Contratuais Padrão e de serviços online que muitas pessoas e empresas dependem também”. “Como muitos outros negócios, o Facebook depende das Cláusulas Contratuais Padrão para transferir dados para países fora da União Europeia, incluindo os Estados Unidos”, sublinha.

O impacto seria sentido por pequenas e grandes empresas, de vários setores. Na pior das hipóteses, isto poderia significar que uma pequena startup na Alemanha deixava de ser capaz de usar um fornecedor de cloud dos Estados Unidos. Uma empresa espanhola de desenvolvimento de produtos não conseguia mais executar operações nos vários fusos horários. Uma loja de retalho francesa pode descobrir que não pode mais manter um callcenter em Marrocos”, exemplifica o responsável do Facebook.

Segundo o Facebook, que contestou a decisão no tribunal, levar para a frente uma proibição destas não vai apenas afetar o mundo dos negócios, mas também “serviços públicos, como a saúde e a educação”. “Enquanto os legisladores estão a trabalhar para uma solução sustentável e a longo prazo, pedimos aos reguladores que adotem uma abordagem proporcional e pragmática para minimizar a disrupção a muitos milhares de empresas que, como o Facebook, contam com estes mecanismos de boa fé para transferir dados de uma forma segura e protegida”, acrescenta o Facebook.

Ao Supremo Tribunal da Irlanda, o Facebook enviou também vários documentos. No pedido feito para a ordem de suspensão ser revista judicialmente, a empresa , alega que não foi informada do processo antes da decisão e diz mesmo que não sabe como será o seu futuro na Europa caso a proibição venha mesmo a acontecer. “Caso o Facebook esteja sujeito a uma suspensão completa dos dados de utilizadores para os Estados Unidos, como parece ser a proposta da Comissão de Proteção de Dados, não está claro como é que o Facebook, nestas circunstâncias, poderá continuar a fornecer os serviços do Facebook e do Instagram na União Europeia”.

Facebook avisa que poderá ter de sair da União Europeia caso seja proibido de partilhar dados com os EUA

Inicialmente, estes argumentos foram entendidos como uma ameaça, mas fonte do Facebook disse à agência de notícias Europa Press, citada pelo El Mundo, que a empresa não estava a ameaçar sair da Europa. O porta-voz esclareceu que os documentos enviados ao tribunal têm como objetivo mostrar e avisar que o Facebook e outras organizações dependem desta transferências de dados entre a UE e os Estados Unidos para poderem operar.

“Claro que não vamos [sair da Europa]. E a razão para não o fazermos é precisamente porque queremos continuar a servir os nossos clientes e as Pequenas e Médias Empresas”, referiu Nick Clegg durante uma conferência, citado pelo TechCrunch. Ainda assim, o vice-presidente de Assuntos Globais e Comunicações alerta para os “efeitos profundos” nos vários negócios digitais “se não for encontrada uma solução por parte dos legisladores de ambos os lados para resolver a incerteza jurídica em torno das transferências de dados nos EUA”.

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Qual é o peso do Facebook na Europa?

O Facebook, que detém ainda o Messenger, Instagram e WhatsApp, é utilizado por cerca de 410 milhões de pessoas na Europa. De acordo com Nick Clegg, há 25 milhões de empresas europeias que usam as apps e ferramentas da rede social — uma atividade que está ligada a vendas de cerca de 208 mil milhões e mais de três milhões de postos de trabalho.

Além disso, e segundo um relatório publicado no ano passado pela Virtual Capitalist, o continente europeu constitui a segunda fonte de receitas da empresa, uma vez que 24% do total de receitas da empresa (55,8 mil milhões de dólares por ano) vem da Europa. Segundo este estudo, os Estados Unidos são a maior fonte de receita da gigante tecnológica, com 43%.

O segundo continente com maior peso nas receitas totais do Facebook é o continente europeu

 

Olhando com mais detalhe para dentro da Europa, os números do relatório “The Global State of Digital 2020” indicam que o Facebook foi a plataforma mais utilizada em todo o mundo e que apenas em seis países europeus (Bielorrússia, Ucrânia, Sérvia, Montenegro, Bósnia e Herzegovina e Croácia) as redes sociais pertencentes ao Facebook não lideram a lista das mais utilizadas.

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Em que fase está o processo? Já há decisão definitiva?

Para já ainda não há uma decisão definitiva e a ordem de suspensão não avançou. Tudo está em suspenso até que a disputa entre as duas partes esteja resolvida e daqui saia uma decisão.

O Facebook confirmou que vai recorrer da decisão preliminar, porque considera que proibição da transferência de dados vai ter um grande impacto nas operações — e admite que não sabe como poderia vir a funcionar desta forma no continente europeu.

A decisão do Supremo Tribunal da Irlanda, depois da investigação levada a cabo pela Comissão de Proteção de Dados do mesmo país, ainda pode ser alterada e este processo pode demorar vários meses a ser concluído. Além disso, tem de ser analisado por outros países europeus: a Comissão terá de enviar um novo relatório aos 26 reguladores de privacidade da UE para uma que haja aprovação em conjunto A decisão deverá chegar até ao final do ano.

Quanto ao Facebook, e de acordo com o comunicado enviado, a empresa garantiu que vai “continuar a transferir dados em conformidade com as regras determinadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia até receber mais orientações”.