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Quem está contra o Papa Francisco?

Desde que foi eleito, em 2013, o Papa Francisco tem sido capaz de mudar radicalmente a imagem da Igreja Católica, profundamente manchada por escândalos sucessivos no Vaticano. No entanto, este caráter inovador do Papa — que tem atraído crentes e não crentes — está a garantir-lhe também alguns inimigos, sobretudo na ala mais conservadora da Igreja.

O rosto mais conhecido da oposição ao Papa tem sido o cardeal norte-americano Raymond Burke, antigo arcebispo de Saint Louis, no Missouri, cuja história o Público conta detalhadamente aqui. Criado cardeal em 2008 pelo Papa Bento XVI, Burke esteve durante seis anos à frente do Supremo Tribunal, órgão responsável máximo pela aplicação do direito canónico na Igreja Católica. Em 2014, contudo, foi nomeado pelo Papa Francisco como patrono da Ordem de Malta (que está no centro da polémica mais recente, mas já lá vamos), um cargo essencialmente simbólico.

Franco Origlia/Getty Images

Em outubro de 2014, Raymond Burke foi um dos cardeais que assinaram uma carta aberta ao Papa Francisco a mostrar a sua preocupação com as ideias do Papa relativamente à família. A postura mais aberta do Papa Francisco sobre este tema, abrindo a porta à comunhão dos recasados, ao acolhimento dos divorciados e até, eventualmente, ao casamento homossexual, foi vista como um atentado à doutrina da Igreja.

Mais tarde, já em 2016, a publicação da exortação apostólica Amoris Laetitia deu origem a uma nova carta, assinada por quatro cardeais, incluindo Raymond Burke. No documento, os cardeais mostravam novamente a sua preocupação com as ideias de Francisco e exigiam o esclarecimento de um conjunto de dúvidas sobre a doutrina da Igreja, uma vez que a exortação incluía referências, entre outros temas, à comunhão dos recasados.

O Papa Francisco não respondeu à carta, o que levou Burke a avançar para uma posição mais feroz, ameaçando dar início a um processo de correção do Papa, um mecanismo previsto pela Igreja, mas nunca utilizado pelos conselheiros do Papa. Desde esse momento, a tensão entre os apoiantes de Francisco e os mais conservadores, encabeçados por Burke, tem vindo a crescer.

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O que se passa agora no Vaticano?

Não foi preciso muito tempo para que a tensão acumulada ao longo de três anos resultasse numa polémica mediática.

Bastou um episódio específico — o afastamento do Grão-Mestre da Ordem de Malta, no final de janeiro deste ano — para que se multiplicassem as notícias sobre ruturas no interior da Cúria Romana. Explicamos o episódio da Ordem de Malta numa pergunta mais à frente, mas, para já, o que precisa de saber é que o Papa instituiu uma comissão de inquérito para investigar a atuação dos dirigentes daquela instituição católica, e o responsável máximo, Matthew Festing, recusou colaborar. Acabou por ser afastado, dando início a um conflito que ainda não terminou entre o Vaticano e a Ordem de Malta, cujo patrono é… o cardeal Burke.

Dias depois, os protestos públicos contra o Papa. No dia 4 de fevereiro, sábado, dezenas de cartazes anónimos, com críticas ao Papa Francisco, apareceram misteriosamente pelas ruas de Roma. Nos cartazes, que estiveram visíveis durante várias horas antes de serem cobertos pelas autoridades italianas, lia-se: “Francisco, interditaste congregações, afastaste sacerdotes, decapitaste a Ordem de Malta e os franciscanos da Imaculada, ignoraste cardeais… mas onde está a tua misericórdia?”

LUCIANO DEL CASTILLO/EPA

As referências à Ordem de Malta e aos cardeais ignorados fizeram com que a iniciativa fosse rapidamente associada ao cardeal Burke (patrono da Ordem de Malta e autor da carta a que o Papa não respondeu). Por esse motivo, Raymond Burke tem estado, nos últimos dias, no centro das polémicas no Vaticano. No mesmo dia, o padre jesuíta Antonio Spadaro, o diretor da revista Civiltà Cattolica e um dos grandes amigos e apoiantes do Papa Francisco, escreveu no Twitter que os cartazes foram um “sinal de que [o Papa] está a agir bem e a incomodar muito”. Além disso, acrescentou que por detrás da colocação do cartazes estariam “pessoas corruptas”, com “poderes fortes”.

Ao mesmo tempo que os cartazes contra o Papa apareciam nas ruas de Roma, o jornal italiano La Stampa dava conta de um encontro entre o cardeal Raymond Burke e Matteo Salvini, o secretário da Lega Nord, partido xenófobo e independentista do norte de Itália, e apoiante fervoroso de Donald Trump. Os dois terão estado reunidos durante cerca de uma hora e meia na casa de Burke no Vaticano.

A aproximação de Burke às ideias de Trump não é novidade. Um dia depois da eleição do magnata como presidente dos EUA, Burke disse, em declarações ao National Catholic Register: “Não penso que o novo presidente se inspire no ódio na forma como trata a imigração. A caridade é sempre inteligente, implica sempre saber exatamente quem são estes imigrantes, se eles são realmente refugiados e que comunidades é que os podem sustentar”. Afirmações que levaram o jornal britânico The Guardian a escrever que “os críticos mais ferozes de Francisco parecem estar a alinhar-se com o novo presidente republicano e com os seus acólitos em todo o mundo, incluindo Salvini”.

Além disso, como noticiou o The New York Times na semana passada, Raymond Burke também terá conhecido Stephen Bannon, o estratega de Donald Trump ligado à extrema-direita norte-americana. Segundo o jornal nova-iorquino, os dois ter-se-ão encontrado em 2014, quando Bannon esteve no Vaticano a cobrir a canonização do Papa João Paulo II para o Breitbart, publicação que dirigia na altura.

Mas para compreender tudo o que se está a passar agora no Vaticano, é fundamental voltar ao início e perceber o que está a acontecer na Ordem de Malta.

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O que é a Ordem de Malta?

A Ordem Soberana e Militar de Malta é uma das mais antigas instituições da Igreja Católica. Fundada como ordem religiosa no século XI para prestar assistência aos peregrinos que iam para Jerusalém, rapidamente se transformou numa ordem militar de cavaleiros, dedicados a proteger a Terra Santa.

Uma celebração com membros da Ordem de Malta. Jack Taylor/Getty Images

Hoje em dia, preserva apenas a sua tradição militar, e os seus mais de 13 mil membros dedicam-se ao apoio aos mais pobres em todo o mundo. Tal como o nome indica, a instituição é uma entidade soberana à luz do direito internacional, mesmo não tendo um território. Além disso, mantém relações diplomáticas com dezenas de países do mundo, incluindo Portugal e o próprio Vaticano, e pode emitir documentos oficiais, como passaportes.

Depois de, em 1798, ter perdido a ilha de Malta, que lhe dá nome, a ordem está agora sediada em Roma e é governada pelo Grão-Mestre e pelo Conselho Soberano, um conjunto de altos oficiais da instituição que servem funções de ministros. A ordem tem mesmo uma Constituição própria, que lhe garante soberania e permite a intervenção do Papa na governação em casos muito excecionais, uma vez que a ordem depende da Santa Sé.

O caráter soberano da Ordem de Malta, aliás, é um dos pontos fundamentais da polémica, uma vez que foi o argumento utilizado por Matthew Festing, o antigo Grão-Mestre da ordem, para tentar impedir o Papa Francisco de investigar um caso de afastamento de um dos principais responsáveis da instituição, no ano passado. Com Matthew Festing afastado por Francisco, a ordem é agora governada por um Grão-Mestre interino, Ludwig Hoffmann von Rumerstein, que deverá ocupar o lugar até à eleição do novo responsável.

 

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O que aconteceu na Ordem de Malta?

Tudo começou quando Matthew Festing, então Grão-Mestre da Ordem de Malta, decidiu afastar da instituição o Grande-Chanceler, o alemão Albrecht Freiherr von Boeselager, que presidia ao Conselho de Soberania. Alegadamente, von Boeselager permitiu a distribuição de preservativos em três projetos de apoio aos mais pobres na Birmânia, algo que, por ser contra a doutrina da Igreja Católica, não agradou a Festing.

Quando von Boeselager descobriu que nestas três missões eram distribuídos preservativos, decidiu fechar duas delas. Deixou apenas uma a funcionar, por considerar que o seu fim iria acabar definitivamente com os serviços médicos básicos para a população em causa. Foi precisamente por ter permitido a continuação do funcionamento desta missão e da distribuição de preservativos nesse projeto que Matthew Festing decidiu afastar o alemão do cargo, alegando que teria sido o próprio Papa Francisco a exigir a demissão.

Matthew Festing com o Papa Francisco. GABRIEL BOUYS/AFP/Getty Images

Mas von Boeselager não ficou conformado com a decisão de Festing, e decidiu apresentar um recurso ao Papa Francisco — que, segundo a Constituição da Ordem de Malta, tem poder para investigar as decisões tomadas pela liderança da instituição. Foi precisamente o que o líder da Igreja Católica decidiu fazer: desconfiado dos verdadeiros motivos do afastamento, nomeou uma comissão, composta por cinco elementos, para investigar a demissão do Grande-Chanceler.

Não satisfeito com a criação da comissão de inquérito, Festing decidiu não colaborar com os investigadores do Vaticano, apelando a todos os membros da Ordem de Malta que se recusassem a colaborar com a comissão, que considerou ilegítima. Num comunicado aos membros citado pela Rádio Renascença, Festing destacou que os membros não deviam colaborar com a investigação e que o seu testemunho, caso colaborassem, não deveria contradizer “direta ou indiretamente a decisão do Grão-Mestre e do Conselho Soberano sobre a substituição do Grande-Chanceler”.

O Vaticano foi intransigente e avançou com a investigação, pedindo a Festing que resignasse ao cargo de Grão-Mestre. A resignação foi confirmada a 25 de janeiro. Num comunicado divulgado pelo Vaticano, o Papa aceitou a demissão “expressando a Fra’ Festing apreço e reconhecimento pelos sentimentos de lealdade e devoção perante o Sucessor de Pedro e pela disponibilidade para servir humildemente o bem da Ordem e da Igreja”.

Poucos dias depois, e já após os polémicos cartazes afixados em Roma, o Papa Francisco nomeou D. Angelo Becciu como delegado especial para o capítulo que irá escolher o sucessor de Festing. Segundo a nota citada pela agência Ecclesia, Becciu será o “porta-voz exclusivo” do Papa, e terá “todos os poderes necessários para decidir as eventuais questões que possam surgir”.

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E agora?

A comissão papal continua neste momento o trabalho de investigação relativamente ao afastamento do Grande-Chanceler, mas o conflito entre o Papa Francisco e a Ordem de Malta (agravado pelo facto de o cardeal Raymond Burke ser o patrono da instituição) está a acender um rastilho que poderá levar a uma rutura grave no seio da Igreja Católica, especialmente se a ala conservadora de Burke conseguir engrossar as suas fileiras contra os mais progressistas, apoiantes do Papa.

Entretanto, o Conselho dos Cardeais, órgão que reúne os conselheiros mais próximos do Papa, já veio manifestar o apoio total a Francisco, afastando-se das posições de Burke. Numa nota divulgada esta segunda-feira, os cardeais expressam “pleno apoio à obra de Francisco e garantem adesão e apoio total à sua pessoa e ao seu magistério, relativamente aos eventos recentes”.

Do lado da Ordem de Malta, o presidente da assembleia portuguesa da instituição garante o seu apoio total ao antigo Grão-Mestre, Matthew Festing. Em declarações à Rádio Renascença, D. Augusto de Albuquerque de Athayde destaca que a comissão nomeada pelo Papa não tem “legitimidade para dar instruções internas ao Príncipe e Grão-Mestre”, uma vez que “foi nomeada para conduzir a uma espécie de paz e concórdia”. O responsável português acrescenta ainda que está confiante num “desenlace positivo” para o processo.

“Há corrupção no Vaticano, mas eu vivo em paz”, disse o Papa Francisco, na semana passada. ANDREAS SOLARO/AFP/Getty Images

A maior ameaça à estabilidade da Igreja parece agora vir do cardeal Raymond Burke, cuja aproximação às ideias de Trump e da direita radical europeia podem resultar na introdução destas ideologias numa Igreja Católica que Francisco está a tentar remodelar. Um artigo de opinião publicado esta semana no The Washington Post pela antiga jornalista Emma-Kate Symons acusa o cardeal Burke de estar a “usar a sua posição dentro dos muros do Vaticano para legitimar forças extremistas que querem deitar abaixo a democracia liberal ocidental”.

Na sequência deste artigo, vários meios de comunicação social católicos conservadores têm publicado textos a defender Burke — como este, este ou este. Pedem “realismo” sobre quem é verdadeiramente o cardeal e acusam os media “ataques histéricos contra Burke”.

Resta agora saber qual o verdadeiro impacto dos escândalos recentes no pontificado de Francisco. No entanto, a avaliar pelos últimos três anos, em que o Papa tem ignorado a maioria dos ataques de que é alvo, preferindo concentrar-se na reforma da imagem da Igreja, tudo indica o Papa Francisco continue a viver “em paz”, como disse, na última semana, ao admitir que “há corrupção no Vaticano”.