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O que disse exactamente Vladimir Putin no seu discurso?

O Presidente russo aproveitou o seu discurso de quinta-feira à assembleia federal, semelhante ao discurso do Estado da Nação, para fazer um balanço sobre a situação do seu país. Putin falou sobre vários temas internos como a necessidade do combate à pobreza e da melhoria do sistema de saúde.

A segunda parte do discurso, contudo, abafou todas as outras declarações. Putin aproveitou para apresentar novo armamento nuclear russo, incluindo um novo protótipo de míssil que “pode atingir qualquer ponto do mundo” e uma nova arma supersónica que é impossível de ser rastreada pelos sistemas anti-mísseis. Para além disso, apresentou animações com ogivas apontadas à Flórida, nos EUA.

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O anúncio foi dirigido sobretudo aos norte-americanos, com o Presidente russo a sublinhar que este novo armamento russo é capaz de voar baixo e ludibriar as defesas anti-míssil norte-americanas, preparadas para destruir mísseis que voam alto.

“Ninguém ouvia a Rússia. Agora oiçam-na”, declarou Putin, depois de ameaçar com um ataque nuclear a quem quer que ataque a Rússia ou os seus aliados, não especificando a quem se referia.

 

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A Rússia está a fazer bluff?

É possível. Mas, mesmo que não tenha este armamento atualmente, os russos estão provavelmente a trabalhar nesse sentido.

Os EUA reagiram ao anúncio de Moscovo dizendo-se “nada surpreendidos”, em declarações curtas da porta-voz do Pentágono Dana White. Ao New York Times, responsáveis norte-americanos não identificados garantiram que os mísseis de cruzeiro anunciados por Putin estão a ser testados, mas não estão operacionais, tendo um dos testes no Ártico falhado.

“A realidade neste caso significa que se tem uma alínea no orçamento para ‘desenvolver propulsão nuclear para um míssil’ ou significa ’em breve vamos ter um pronto a usar’? Sem dúvida que gostava de ter mais provas para acreditar nisto”, declarou Douglas Barrie, especialista em armamento, ao mesmo jornal norte-americano.

No jornal The Guardian, o especialista em política russa Mark Galeotti relembra que a indústria da Defesa russa tem um historial de falhanços. “O ano passado finalmente conseguiu dois testes bem sucedidos, mas mantêm-se dúvidas sobre a sua fiabilidade“, escreve o coordenador do Centro Europeu de Segurança.

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Quais são os objetivos deste discurso?

A maioria dos especialistas concordam que estamos perante um discurso que pretende passar uma dupla mensagem: uma para consumo interno e outra para o resto do mundo.

A primeira é uma mensagem a todos os russos. À beira de eleições presidenciais (18 de março), o Presidente aproveitou para fazer um pouco de campanha eleitoral, utilizando uma estratégia que já lhe é familiar e que lhe tem trazido frutos: provar que, com Putin no poder, a Rússia está mais segura e é mais respeitada no plano internacional.

A segunda é um recado para a comunidade internacional e, sobretudo, para os EUA. Atualmente, a Rússia e os Estados Unidos têm assinado um tratado de não proliferação de armamento nuclear que impõe um teto de 1550 armas para cada lado. Esse tratado, o START, foi novamente assinado em 2010 e formalmente expira em 2021.

O problema é que ambos os países têm dado sinais de que consideram que o tratado anda a ser violado pela outra parte. Na primeira chamada telefónica entre Donald Trump e Vladimir Putin, em fevereiro de 2017, o Presidente norte-americano queixou-se do START, dizendo que favorece os russos. Em dezembro do ano passado, o departamento de Estado acusou Moscovo de estar a desenvolver um míssil que viola o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio.

Do lado russo também há queixas. Ainda no início deste mês, o Kremlin revelou desconforto com a Revisão de Postura Nuclear aprovada pelos norte-americanos, que prevê, entre outras medidas, o desenvolvimento de novos tipos de bombas nucleares, mais pequenas.

Para além disso, há todo o contexto da realidade pós-Pacto de Varsóvia e do lugar que a Rússia quer ocupar no mundo. Com a NATO em pleno funcionamento, os norte-americanos têm instalado sistemas de defesa anti-míssil perto das fronteiras russas — como os sistemas Aegis na Roménia e na Polónia –, que desagradam profundamente ao Kremlin. Como resumiu a analista Ekaterina Schulmann ao site russo independente Meduza, o objetivo deste discurso é o de “reforçar a posição [da Rússia] nas negociações imaginárias para dividir o mundo”, como uma espécie de nova Conferência de Ialta. “Queremos que nos levem a sério e nos respeitem, o que não tem acontecido.”

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Qual o poderio nuclear da Rússia comparado com o dos EUA?

Petr Topychkanov, do Instituto Internacional de Estocolmo da Pesquisa para a Paz (SIPRI) que estuda questões de armamento, responde diretamente ao Observador: “O arsenal nuclear da Rússia é um ligeiramente maior do que o dos Estados Unidos, mas não de forma significativa.”

Por outro lado, explica, os EUA têm sistemas de defesa mais avançados do que aqueles que a Rússia tem atualmente. Isto significa, diz Topychkanov, que temos uma certa “paridade” entre os dois países.

A disparidade é ainda maior quando comparamos o armamento tradicional. Os norte-americanos têm um orçamento para as matérias de Defesa muito maior e ainda contam com o apoio dos aliados da NATO. Ainda este mês, o Governo norte-americano apresentou uma proposta de orçamento para o departamento da Defesa que aumentará em cerca de 80 milhões de euros os gastos militares.

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Há alguma relação com a investigação sobre a alegada intervenção russa nas eleições dos EUA?

Muito indiretamente. Isto porque, oficialmente, o Kremlin nega ter levado a cabo qualquer tipo de ataque cibernético, operação de propaganda ou conspiração com responsáveis da campanha de Donald Trump. “A Rússia nunca interferiu nem tem o hábito de interferir nos assuntos internos dos outros países”, afirmou o porta-voz Dmitry Peskov.

Por outro lado, algumas vozes, como o ex-embaixador em Moscovo Michael McFaul, questionaram por que razão o Presidente norte-americano não reagiu fortemente contra este discurso do homólogo russo, à semelhança do que fez com declarações vindas de outras potências nucleares como a Coreia do Norte.

A Casa Branca reagiu através da porta-voz Heather Nauert. “Não vamos reagir a cada palavra que um líder mundial expresse”, disse, acrescentando no entanto que aquele não foi “o comportamento de um ator internacional responsável”.

Nas horas seguintes ao discurso de Putin, Trump recorreu ao Twitter não para prometer “fogo e fúria”, mas sim para escrever sobre temas tão variados como impostos sobre as importações de ferro ou o ator Alec Baldwin. O Presidente norte-americano parece não querer fazer voz grossa a Putin — falta saber se isso é uma questão de estratégia política ou se há alguma ligação à investigação de Robert Mueller.

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Vem aí uma nova corrida às armas com cheiro a Guerra Fria?

Ainda é cedo para saber e tudo depende da reação dos norte-americanos a estas declarações.

Para os mais cautelosos, como Petr Topychkanov do SIPRI, a resposta é não. “É difícil imaginar declarações destas no tempo da Guerra Fria”, diz, sublinhando que o armamento apresentado por Putin ainda não está totalmente pronto a ser utilizado. “Nos tempos soviéticos, declarações destas só poderiam ser possíveis em casos em que o armamento está pronto a ser autorizado e posto a funcionar.”

Outros analistas revelam-se mais preocupados. Alexander Golts, outro russo especialista em armamento, fala numa “nova Guerra Fria”, já que esta foi “uma tentativa de assustar o Ocidente”. Também Dmitri Trenin, do Carnegie Moscow Center, fez soar os alarmes: “As relações com os EUA estão num ponto em que a única coisa que tem de ser trabalhada todos os minutos de todos os dias é garantir que isto não resulta numa colisão.”

Certo é que há algumas diferenças entre a Guerra Fria e o tempo que vivemos. Para começar, a Rússia de hoje é muito diferente da União Soviética de outrora, sobretudo em matérias de poderio económico. Contudo, continua a ser um protagonista relevante na geopolítica mundial, como a sua intervenção na guerra síria demonstra.

Mas, por outro lado, o mundo de hoje já não está dividido ao meio entre duas potências únicas com áreas de influência respetivas. Nic Robertson, editor de Diplomacia da CNN, relembra que há muitas corridas ao armamento a decorrer já hoje que vão além da corrida EUA/Rússia: “A China está a construir ilhas cheias de armamento e de capacidade potencialmente maléfica, enquanto as suas exigências territoriais sobem de tom”, relembra.

“E, nos últimos anos, a Arábia Saudita tornou-se o terceiro país a gastar mais em Defesa e Segurança.” A ideia de uma única Guerra Fria com dois grandes intervenientes que desenvolvem todo o armamento nuclear do mundo não faz sentido hoje em dia. Que é como quem diz, façam a Rússia e os Estados Unidos o que fizerem, o mundo já não é assim tão simples.