É uma nota de voz, com sotaque brasileiro, sobre a fotografia de uma mulher, numa cama de hospital, com queimaduras visíveis em toda a parte superior do corpo, face e cabeça incluídas, que está a circular nas redes sociais e que alerta: “Se forem usar o microondas, não usem o celular.”
Ao longo de 44 segundos, a voz não identificada explica que a mulher na imagem se “queimou todinha”, porque cometeu essa imprudência: “A radiação do microondas passou para o celular, pegou fogo e aconteceu esta tragédia”, pode ouvir-se.
Uma coisa é certa: a mulher na imagem, que surge inclusivamente ao lado de uma enfermeira, sofreu mesmo queimaduras graves. Mas será que existe algum fundamento científico para esta argumentação, de que terá sido a junção de telemóvel e microondas a provocá-las?
Em primeiro lugar, percebe-se através de uma pesquisa nos sites de notícias do Brasil, o vídeo não é novo. A história corre na internet pelo menos desde 2019, altura em que o portal R7 averiguou a situação e chegou até a contactar os hospitais da zona onde se dizia que o acidente tinha acontecido.
De acordo com a imprensa do país, além de já ter sido partilhada várias vezes ao longo dos últimos anos, a história também foi sendo veiculada com diferentes detalhes — em 2019, teria acontecido em Pinheiral, localidade no sul do estado do Rio de Janeiro.
Contactada pelo portal de notícias, a Prefeitura local, que por sua vez fez a ponte com a administração do Hospital Municipal de Pinheiral, garantiu que, pelo menos ali, o acidente não tinha acontecido. “Nenhum paciente deu entrada na unidade e nem mesmo no pronto-socorro com características do acidente relatado nesta corrente de WhatsApp”, explicou.
Marcelo Zuffo, professor de Engenharia de Sistemas Eletrónicos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, esclareceu o resto, explicou que a radiação emitida pelos telemóveis é demasiado baixa para provocar qualquer tipo de combustão e garantiu que não é possível tal reação explosiva pela mera proximidade de um telemóvel e um microondas, mesmo que ambos a funcionar. “Não há nada comprovado cientificamente de que um celular possa causar algum tipo de explosão ao ser manuseado juntamente com um eletrodoméstico. É mito urbano”, disse o especialista.
Ao Observador, Sidónio Brazete, coordenador do curso de Sistemas Eletrónicos e de Computadores do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, explica que, como ambos os equipamentos funcionam na banda das microondas, um pode influenciar o outro e até provocar queimaduras, mas apenas se estiverem defeituosos. “O facto relatado só é possível se o microondas tiver alguma parte da cavidade metálica interior danificada, por exemplo algum buraco provocado por ferrugem”, avalia o engenheiro. “A radiação por microondas fica confinada no interior do aparelho, já que a onda emitida pelo gerador, o magnetron, é refletida pela parede metálica do lado oposto.”
Segundo o especialista, se o forno não for estanque, as ondas podem sair para o exterior e ser captadas pela antena de um telemóvel em funcionamento. “As antenas dos telemóveis também funcionam na banda das microondas. Numa linguagem muito simplificada, é como se fossem pára-raios, a onda é atraída pela antena”, continua a explicar, para depois concluir: dependendo da distância, podem mesmo provocar queimaduras. “É raríssimo, mas pode acontecer.”
“A radiação que sai do forno pode ir diretamente para a pele e queimar”, explica Sidónio Brazete. “Mas as microondas são muito direcionais e não se espalham, como as de rádio, viajam em linha reta, por isso, para provocarem queimaduras, o buraco por onde saem tem de estar perto do telemóvel. Se a pessoa estiver colada ao microondas a falar ao telemóvel, pode acontecer, se estiver de pé, duvido que isso aconteça”, diz o especialista, que considera também que as lesões visíveis na publicação “parecem exageradas”.
A pedido do portal R7, Caio Lamunier, dermatologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, analisou as queimaduras da mulher na imagem e concluiu que seriam compatíveis com lesões de grau 2, sendo a área que abrangem demasiado extensa para terem sido sequer provocadas por um telemóvel. “Pela imagem, pela expansão das lesões, parece ser mais uma queimadura provocada por fogo, como uma fogueira”, explicou.
Ao Observador, Diana Monteiro, especialista em cirurgia plástica, reconstrutiva e estética, que entre outras trabalha na área das lesões por queimaduras, também não acredita que as lesões da mulher na fotografia se possam dever à situação descrita nas publicações. “Penso que não será possível uma queimadura nesse contexto. Teria que haver arco voltaico ou chama”, explica.
Entretanto, já há sete anos, no Quora, o site que agrega milhares de questões e outras tantas respostas, Tim Hofstetter, engenheiro de software do Vermont, nos Estados Unidos, respondeu com humor a uma pergunta relacionada com o mesmo tema — mas que não fazia qualquer referência a queimaduras nem ao vídeo em análise.
“O que acontece se deixar o meu telemóvel perto de um microondas?”, perguntou um utilizador. “Aproximadamente a mesma coisa que acontece quando se coloca os olhos e o cérebro perto de um microondas: aproximadamente nada. Se o seu microondas tivesse fugas, seria capaz de sentir uma sensação distinta de calor ao passar a mão por cima da fuga”, explicou Hofstetter.
No fim, o engenheiro ainda deixou um aviso: “Agora, colocar o seu telemóvel dentro do microondas é outra história. Uma vez tive uma conversa com um dos engenheiros da ABC-TV; um dos truques favoritos dos estagiários novos era… todos eles transportavam rádios de duas vias quando iam fazer serviços fora (por exemplo, torneios de golfe). Davam o rádio ao estagiário e diziam-lhe que a memória precisava de ser apagada, e que o procedimento para isso era colocar o rádio num microondas e pô-lo a funcionar durante cinco minutos”.
Conclusão
Não há qualquer evidência científica de que um telemóvel possa explodir se utilizado junto de um microondas em funcionamento —. “É mito urbano”, garantiu, já em 2019 e ao portal de notícias brasileiro R7, Marcelo Zuffo, professor de Engenharia de Sistemas Eletrónicos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
O vídeo tem sido partilhado recorrentemente desde esse ano, pelo menos. Sempre que ressurge, traz novos detalhes adicionados.
Ao Observador, o engenheiro Sidónio Brazete até admite que, se um forno microondas estiver danificado, as ondas podem sair para o exterior e ser captadas pela antena de um telemóvel em funcionamento, provocando uma queimadura — mas nunca lesões como as que são evidenciadas na publicação em causa. “Acho que é fake, é exagerado”, determina.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook