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Chamava-se João Goulart, mas ficou conhecido como Jango. O 24.º Presidente do Brasil tomou posse em condições atípicas. Legalmente, o cargo seria seu: perante a renúncia do Presidente Jânio Quadros, a 25 de agosto de 1961, a Constituição ditava que Jango, como vice-presidente, deveria substituí-lo. Mas os militares resistiam, por considerar que o vice-presidente e herdeiro político de Getúlio Vargas tinha inclinações comunistas, pelas suas posições em defesa dos sindicatos e da reforma agrária. |
O clima era tenso e havia quem falasse no risco de guerra civil, com o governador Leonel Brizola a preparar mesmo uma reação armada. Jango estava na China, em viagem de trabalho, e vai alongando a estadia até a situação se definir no Brasil. O jornal Globo escreve a certa altura que “é a hora de se apelar para o patriotismo de todos os brasileiros, principalmente dos representantes das duas Casas do Congresso, para que encontrem, com os chefes militares, um caminho para a salvação do País”. |
A solução foi encontrada. Através da influência dos militares no Congresso, os parlamentares decretam a alteração do sistema político, aprovando rapidamente uma emenda — o Ato Adicional — que transformava o regime de sistema presidencialista para um sistema parlamentarista. Pensam, assim, que os poderes de Jango estarão mais limitados como Presidente. A tomada de posse acabaria por acontecer em setembro. E, desde então, Goulart passou o resto do seu mandato a tentar reimplementar o sistema presidencialista. |
Acabaria por consegui-lo, dois anos depois, através de um plebiscito: 83% votaram contra a manutenção do regime que vigorava à altura e pelo regresso do presidencialismo. O parlamentarismo brasileiro durou apenas um ano e quatro meses. E, com o regresso ao sistema presidencial, Jango pôde aplicar a sua agenda mais à esquerda. Não duraria muito tempo: a 31 de março de 1964 dava-se o golpe que instituiu no Brasil uma ditadura militar. E, durante 21 anos, a discussão sobre que tipo de regime faz mais sentido tornou-se espúria, porque não havia democracia. |
Com a Constituição de 1988, contudo, retomou-se a normalidade democrática. E, em 1993, os brasileiros foram chamados a votar num novo plebiscito. Desta vez, tinham de afirmar se preferiam uma monarquia ou uma república e se o regime deveria ser presidencialista ou parlamentarista. A escolha foi clara: o slogan “Vote no Rei!” não convenceu e 66% preferiram uma república. E 55,4% votaram no presidencialismo. Desde então, a situação manteve-se inalterada e é por isso que Jair Bolsonaro ocupa agora o cargo no Palácio do Planalto com as prerrogativas totais que lhe são concedidas pelo atual sistema. |
Presidencialismo, sim, mas “de coligação” |
Mas que poderes tem afinal um Presidente brasileiro? A Constituição de 1988 prevê que o Presidente possa fazer propostas legislativas sobre temas como a dimensão das Forças Armadas, a organização administrativa e judicial do país e o controlo sobre o número de empregos e salários na função pública. Contudo, está sempre dependente da aprovação do Congresso. A única exceção é o chamado poder de decreto, que lhe permite adotar medidas provisórias sem aprovação dos parlamentares, mas com aplicação de apenas 30 dias. |
O sistema brasileiro é inspirado no presidencialismo norte-americano, mas tem algumas diferenças. Por um lado, o Presidente no Brasil tem mais margem relativamente ao Orçamento do Estado, já que o Congresso não tem tantos poderes para alterar o projeto. Mas, por outro lado, é muito mais fácil aos parlamentares contornarem o veto presidencial de uma lei — basta a maioria absoluta e não a qualificada, como exigem os norte-americanos. |
Toda esta dependência das duas câmaras do Congresso, aliada à multiplicidade de partidos existentes no sistema brasileiro, faz com que vigore no país um regime que vários académicos apelidam de “presidencialismo de coligação”. O termo foi inaugurado pelo cientista político Sérgio Abrantes, há 25 anos, que destacou como para conseguir governar com eficácia o Presidente precisa de uma ampla maioria e de construir consensos. As diferenças ideológicas entre as múltiplas forças políticas trazem, por isso, um grande potencial de conflito e de competição interna e deixam, muitas vezes, os Presidentes em maus lençóis. |
O “Fiat Elba” e as “pedaladas fiscais”, as armas dos impeachments |
Os dois casos mais evidentes da eventual instabilidade deste sistema são os dois processos de impeachment que levaram ao afastamento de dois Presidentes: Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016. Ambos não gozavam de uma maioria parlamentar clara no Congresso à altura do afastamento do cargo. |
Ambos os casos também estiveram sempre, de forma mais ou menos clara, ligados a suspeitas de corrupção. No caso de Collor de Mello, as denúncias acumularam-se na imprensa, com maior destaque para a entrevista dada pelo seu próprio irmão à revista Veja. A reação popular foi intensa, com as manifestações conhecidas como “Caras Pintadas” a pedirem o afastamento do Presidente. O caso mais famoso foi o do Fiat Elba, carro que servia a Casa Civil e que teria sido comprado com dinheiro manchado. Collor de Mello acabou afastado pelos parlamentares. |
Em 2016, não recaíam diretamente sobre Dilma Rousseff suspeitas de corrupção, mas o clima da Lava-Jato contaminou todo o processo. Rousseff acabou por ser afastada por ter recorrido às chamadas “pedaladas fiscais” (processos de engenharia financeira nos Orçamentos do Estado) — o que foi considerado pelo Congresso como um “crime de responsabilidade”, apesar de ter sido levado a cabo por outros governos no passado. O próprio Collor de Mello afirmou, em 2020, que o processo de impeachment foi “vulgarizado”, dizendo que não havia razões para o seu afastamento e o de Rousseff (porém, em 2016, votou como senador pelo afastamento de Dilma). |
A discussão sobre o sistema presidencialista no Brasil está longe de estar encerrada. Na Câmara dos Deputados existe atualmente um grupo de trabalho que estuda a possibilidade de o país adotar um regime semipresidencialista — mas cuja discussão final está chutada para 2030. |
O seu coordenador, porém, tem dado entrevistas a explicar porque defende a alteração: Samuel Moreira disse recentemente à agência Lusa que considera que o sistema atual tem potenciado “este radicalismo, este extremismo, esta polarização” e premiado candidaturas “populistas” e “baseadas em salvadores da pátria”. Os alvos parecem ser Jair Bolsonaro e Lula da Silva — um deles deverá ser o próximo Presidente, que continuará a liderar este sistema de poderes reforçados, mas dependente da negociação com parlamentares. |
O QUE MARCOU A SEMANA |
- Jair Bolsonaro esteve em Londres para participar no funeral da Rainha Isabel II e foi criticado por ter aproveitado o momento para fazer campanha eleitoral. Num posto de combustível em Park Lane, o Presidente brasileiro filmou um vídeo onde mostrou o preço dos combustíveis em Londres e comparou com os preços praticados no Brasil. “A nossa gasolina é, de facto, uma das mais baratas do mundo”, gabou-se. O vídeo chamou a atenção até da imprensa britânica.
- Dias depois, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, Bolsonaro voltou a aproveitar para fazer campanha nacional em palco internacional. Ao abrir a assembleia — um gesto que cabe sempre ao representante brasileiro, por tradição —, destacou o estado positivo da economia brasileira, atacou Lula da Silva e as suspeitas de corrupção e defendeu o legado do país no combate à Covid-19 (muito embora tenha inicialmente resistido ao processo de vacinação).
- No final da semana, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso fez um comunicado sobre a sua posição face a esta eleição presidencial. Recusando-se a nomear diretamente candidatos, FHC pediu, porém, aos eleitores que votem em quem quer combater a pobreza e a desigualdade, em quem defende “direitos iguais para todos independentemente da raça, género e orientação sexual”, em quem valoriza a educação e ciência e defende o “fortalecimento das instituições”.
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A AGENDA DA PRÓXIMA SEMANA |
- Segunda-feira, dia 26:
Evento de campanha de Lula da Silva com artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Anitta (São Paulo)
- Meio da semana:
Marchas para Jesus de campanha Bolsonaro em municípios do norte do país (Belém e Manaus)
- Quinta-feira, dia 29:
Debate televisivo na Globo
- Sexta-feira, dia 30:
Caminhada da campanha de Lula em São Paulo
- Final da semana:
Atos de campanha de Bolsonaro em Minas Gerais e São Paulo
- 2 de outubro:
1ª volta das eleições presidenciais
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