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Diz-me quem é a tua companhia e dir-te-ei quem és. |
Hoje terminei a leitura de um romance de James Baldwin e veio-me à cabeça esta máxima. Existem inúmeras variações sobre esta frase. Neste caso, se é que vale a pena dar-lhe atribuição, disse-a a autora porto-riquenha Esmeralda Santiago. |
Já eu fraseio-a da seguinte forma: “diz-me que música ouves e dir-te-ei quem é a tua companhia”. |
Porque a música que ouvimos, sem surpresas, define-nos enquanto indivíduos dentro de uma comunidade. E sei que, independentemente de conhecer cada um dos meus leitores, todos quantos por aqui passam sentem um certo grau de familiaridade e pertença em relação àquilo que é o circuito da música clássica. |
Aqui vai uma metáfora: se imaginarmos a nossa sala de concerto preferida como um restaurante, há os clientes habituais, que jantam sempre à mesma hora e na mesma mesa, e que poderão ser um pouco mais velhos do que o resto da clientela. Depois há os que gostam de vir aqui jantar e aparecem regularmente, mas não têm um dia ou hora certos. Há aqueles que preferem jantar sozinhos ao balcão, discretos e sem falar com ninguém. Há os que trazem companhia, com esperanças de causar boa impressão, e certamente não vêm a pensar na comida. Há os que entram por curiosidade e nunca mais voltam, e os que entram por curiosidade e acabam por voltar. |
Há os críticos, claro, que a meio da refeição já estão a pensar no que vão escrever sobre ela. E há os que trabalham noutros restaurantes e vêm cá experimentar a nossa comida e o nosso serviço, às vezes com boas intenções, outras vezes como um acto de espionagem. Todos esses clientes pertencem ao círculo deste restaurante e estão unidos por algo, mesmo que não se reconheçam na rua ou saibam o nome uns dos outros. |
A música clássica é exactamente como este restaurante fictício que, apesar de juntar muita gente diferente, não se lhe pode chamar propriamente um lugar de encontro. É mais como um ponto de atravessamento colectivo. |
Visto que abri com uma citação que me situa na ilha de Porto Rico, nas Caraíbas, sou levado a pensar num compositor muito específico: Joseph Boulogne. Ou, melhor dizendo, Joseph Boulogne, Chevalier de Saint-Georges, que o respeito é-lhe devido. |
Este nome, desconhecido para muitos (ou todos?) os meus leitores, nasceu no dia de Natal de 1745 na ilha de Guadalupe, então uma colónia francesa no Mar das Caraíbas, e foi um tipo fora de série que levou uma vida aventureira, envolvendo façanhas de esgrima ao lado de concertos como violinista de grande sucesso em Paris. |
Parte do sucesso e atenção que conseguiu gerar deveu-se ao facto de não ser um europeu branco. Joseph Boulogne era filho de um colono francês, homem casado e dono de plantações e de escravos, que engravidou uma escrava negra de 16 anos mas cujo filho teve a decência de perfilhar e até, pasme-se, dar-lhe o seu apelido. Eis como Joseph Boulogne veio ao mundo. O pai deve ter-se-lhe afeiçoado, porque aos sete anos o levou para Paris, onde teve a sorte de receber uma educação bastante completa em música, tornando-se discípulo do maior virtuoso francês de violino de então, Jean-Marie Leclair, assim como aluno de composição de François-Joseph Gossec, importante e respeitado compositor e pedagogo. Ao mesmo tempo, aperfeiçoou-se na esgrima e na arte do galanteio. |
E o que é que Boulogne tem que ver com o livro que eu terminei hoje? De tudo um pouco. É que esse livro, que se chama Giovanni’s Room, conta a história de um triângulo amoroso trágico em Paris, composto por um americano, uma americana e um italiano, e é escrito por James Baldwin, escritor negro norte-americano, que o publicou em 1956. |
Tanto Boulogne como Baldwin foram outsiders no campo da sua arte, embora a exercessem como verdadeiros insiders, com uma mestria absolutamente soberba. A escrita de Boulogne é música clássica pura, pertencente à melhor tradição europeia. Já o romance de Baldwin é uma narrativa perfeita, só que que conta a tragédia de um jovem americano branco na primeira pessoa. |
Para muitos, isto foi um choque. Perguntaram-se “como é que ele se atreve a por as mãos naquilo que é nosso!?” |
A Baldwin incontáveis vezes recomendaram que escrevesse sobre temas negros e a Boulogne frequentemente não lhe foram permitidos maiores sucessos devido às suas origens, como quando uma petição dirigida à jovem rainha Marie Antoinette impediu que, em 1776, Boulogne se tornasse director musical da Ópera de Paris. |
Nisto, sou levado a pensar noutro nome pouco conhecido, que vos convido a ouvir aqui e agora. Porque dizer que a música é boa não vale de nada se não a pudermos comprovar nós mesmos. Assim, convido-vos a abrir um separador em paralelo e clicar aqui para começar uma banda sonora para o resto desta newsletter. |
Perante esta música de salão pura, tão romântica e parisiense, é mais que certo que estamos na órbita de Chopin. E estamos. A peça, que se chama Illusions Perdues, tem um título imensamente comercial, seguindo os padrões da época, e é da autoria de Louis Moreau Gottschalk. E Gottschalk é alguém que, tal como Chopin, vem para Paris vindo de fora, um outsider, esperando aí encontrar o seu lugar. E por um tempo parece encontrá-lo, recebendo uma perfeita educação europeia e chegando mesmo a interpretar o primeiro concerto de Chopin para o próprio autor, que lhe fez rasgados elogios.
Mas Gottschalk, ao contrário de Chopin, não vinha da Europa, mas de New Orleans, que era até 1803 parte de outra colónia francesa, a Louisiana. |
Já nesses anos New Orleans era uma das cidades principais no florescimento da cultura afro-americana e Gottschalk bem se podia sentir em casa aí, porque tinha acesso à Place Congo, ponto de encontro da comunidade negra, onde se tocava música aos sábados à noite como forma de entretenimento ao fim de toda uma semana de labor, visto que ao domingo era permitido aos escravos um dia de folga. A mãe de Gottschalk era filha de uma padeira crioula que escapara de uma outra colónia francesa, a ilha de Saint-Domingue, no final do século XVIII, quando a ilha passou a chamar-se Haiti, depois da revolta dos escravos que expulsou os franceses, devolvendo à terra o nome e a liberdade e passando a ser, em 1804, o primeiro país livre de escravatura em todo o mundo. |
Portanto, uma exilada dessa revolução, nativa do Haiti, é a avó materna de Gottschalk. Esta proveniência fez com que, aos olhos dos europeus, ele fosse sempre uma raridade, um ser exótico num tempo pré-moderno. Mesmo tendo provado ser capaz de tocar Chopin tão bem quanto o Chopin e sabendo compor de acordo com a moda. O que a sociedade europeia esperava dele foi a demonstração do exotismo que representava, num exercício fictício que consistia em trazer à civilização raridades longínquas e exibi-las como coisas admiráveis e curiosas. |
E o pobre Gottschalk, para sobreviver, fartou-se de escrever peças com títulos fantasiosos que remetiam para as plantações, as bananeiras, as lendas dos escravos, a savana, etc. Se já chegaram ao fim de Illusions Perdues, aqui fica um link para ouvirem agora a peça intitulada Bamboula, que é música supostamente inspirada nesses saraus de sábado à noite que se organizavam na Place Congo, onde os músicos amadores tocavam com instrumentos feitos de bambu. Trata-se de uma dança ritmada que deve ter soado tremendamente fresca e exótica aos ouvidos dos parisienses de meados do século XIX. |
Assim foi a vida peculiar deste homem, que na Europa não conseguiu vingar devido a ser demasiado exótico e que por isso acabou por desenvolver grande parte da sua carreira em todo o continente americano, ao ritmo assustador de 1100 concertos em dez anos, o que dá um concerto a cada três dias durante uma década a fio. |
Graças ao crescimento exponencial das linhas ferroviárias, Gottschalk viajou por todos os sítios onde houvesse uma estação de comboio. E se não houvesse pianos nos lugares por onde andava, não havia qualquer problema, uma vez que as suas viagens eram realizadas com o patrocínio da marca de pianos Chickering, de quem se tornou embaixador ambulante. |
O seu último concerto, depois das andanças frenéticas do Canadá à Patagónia foi no Rio de Janeiro, of all places, onde o Imperador Pedro II o recebeu em apoteose e lhe colocou à disposição as três bandas militares e três orquestras municipais, realizando-se um concerto que viu 25 pianistas em palco e um total de 650 músicos, incluindo, é claro, canhões para quando se cantasse o hino do Brasil. Só este evento daria espaço para toda uma newsletter ou uma tese de mestrado em musicologia histórica, mas podem manter-se informados sobre o tema seguindo a Sociedade Gottschalk do Rio de Janeiro, uma página no Facebook que chega a ser comovente na dedicação (claramente manifestada por quem a gere) a esta personalidade e a sua passagem pela então capital brasileira. |
Voltemos a 1869. No dia seguinte ao seu concerto triunfal, Gottschalk deu um recital privado para a corte brasileira, onde sofreu um colapso enquanto tocava uma peça de sua autoria, vejam bem, intitulada, Morte! (com ponto de exclamação e tudo). Teve de ser arrastado para a cama, nunca mais tocou e morreu passado pouco tempo, daquilo a que hoje chamaríamos um burnout. Tinha apenas 40 anos. |
O aspecto mais cruel da sua vida de trabalhos é que, se na Europa sempre foi visto como um exótico, sendo esperadas de si as peças sobre danças negras ou paisagens tropicais, já nas suas viagens pelas Américas, pelo contrário, era visto como um representante da cultura europeia, sendo-lhe pedidas rapsódias e paráfrases sobre temas de ópera, como estava na moda então. O que é certo é que em lado nenhum o receberam como “um de nós”. |
Se já chegaram ao fim de Bamboula, podem continuar a leitura ao som de Le Bananier, outra peça característica que ilustra bem a situação em que Gottschalk se viu preso, e que, de forma algo sombria e estranha, se projecta nesta música inspirada pela bananeira, árvore que, se era conhecida na Europa, em muito se devia aos navegadores portugueses da era do Infante D. Henrique, que a trouxeram do corno de África ainda no século XV e que mais tarde a levaram para a América do Sul e Caraíbas. |
No entanto, será Jules Verne que, ao descrever as bananas em vários momentos do seu famoso A Volta do Mundo em 80 Dias, em 1872, fará deste fruto a cobiça de toda a Europa. |
Boulogne, Gottschalk e Baldwin: eis três exemplos de artistas a quem o seu círculo, dominado pelo mundo euro-cêntrico, não abriu plenamente as portas. Não pertenciam a esse mundo, simplesmente por não serem brancos e europeus (ou descendentes “puros”), apesar de estarem plenamente legitimados, pela sua formação e talento, para uma carreira como a de Mozart, Chopin ou Truman Capote. |
Por hoje é isto. Ah, e se a música chegou ao fim e ainda vos sobra tempo livre, não percam então a oportunidade de deitar as mãos a O Quarto de Giovanni, o tal livro de James Baldwin, que em português está editado pela Alfaguara. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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