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Um catálogo extenso não é sinónimo de grandeza. E vice-versa. |
No máximo, sessenta. É este o número de pinturas que os entendidos acreditam que Johannes Vermeer tenha pintado ao longo da sua vida de 43 anos. |
Dessa estimativa, que varia de cinquenta a sessenta, conhece-se mais ou menos a metade, pois chegaram aos nossos dias (autenticados e identificados) 34 pinturas a óleo que sabemos serem da autoria de Vermeer. |
É conhecido o seu método lento (exasperantemente lento para os clientes que ia tendo), assim como o zelo extremado que fazia com que chegasse a contrair dívidas a fim de poder pintar com o uso de pigmentos e materiais caríssimos para a época. Em suma, um perfeccionista. São assim alguns dos meus criadores preferidos. Gente de muito labor e catálogos pouco extensos. Na verdade, alguns são mais do que preferidos. São heróis, mesmo. |
Pergunto-me quem desse lado conhece a obra de Albert Cossery (na imagem) e a vida por trás da obra. |
Em linhas breves, falo de um escritor egípcio radicado em Paris, onde habitou o mesmo quarto num hotel nada charmoso no coração do Quartier Latin durante sessenta anos, desde o final dos anos 40 do século XX até à sua morte em 2008, aos 94 anos. |
Cossery escreveu apenas oito romances, já que a sua vida foi dedicada à prática activa da preguiça, designada e entendida enquanto espaço e tempo para a reflexão. A sua actividade foi basicamente a inactividade militante, escrevendo ao glorioso ritmo de uma frase por semana! |
Os seus livros, que diga-se de passagem, são brilhantes, passam-se todos na sua cidade natal do Cairo ou em paragens imaginárias do Levante. E todos são, de uma forma ou outra, um manifesto suave e silencioso em defesa dos valores da inércia enquanto forma de resistência e marginalidade mas sobretudo, como forma de liberdade. |
Cossery foi um homem livre porque se libertou das expectativas que recaem sobre todos nós: ignorou a pressa, a pressão e a produtividade. Sentiu-se um príncipe caminhando de mãos nos bolsos pelas ruas de Paris, na sua bolha de tranquilidade, imperturbável perante o mundo em ebulição à sua volta. |
Segundo o próprio, é assim que vivem os homens sábios no Egipto. O trabalho é para os tolos, aqueles que não compreenderam nada na vida. No meu livro preferido de Cossery, Mandriões no Vale Fértil, acompanhamos a vida de uma família privilegiada que se dedica a um sono indolente e constante, acordando apenas para fazer as suas refeições, preparadas por uma empregada que, essa sim, tem de trabalhar. Um livro de tal forma preguiçoso que chega a ser perigoso e assustador lê-lo, porque vai contra tudo aquilo que nos ensinam sobre produtividade, bem-estar, realização e ambição pessoal. |
Alguns compositores também são de certa forma como Vermeer ou Cossery. Catálogos curtos não porque viveram vidas tragicamente curtas, como Schubert ou Mozart, mas porque o seu ritmo foi outro, deixando um catálogo mais restrito de forma quase propositada. Um deles, e bem fascinante, é Édgard Varèse, a quem a história da música reconhece o estatuto de gigante do modernismo, que no entanto deixa um legado feito de apenas 17 composições. |
Na verdade, Varese, que nasceu em 1883 em Paris, escreveu mais música, sobretudo enquanto vivia na Europa, mas um incêndio num armazém de Berlim em 1913 propagou-se ao local onde tinha todos os seus manuscritos e eliminou para sempre todas as suas composições de juventude. Em 1915 o compositor, agora desprovido de catálogo, emigrou para os EUA devido à guerra na Europa e foi como um recomeço de vida de alguém que não olha para trás. |
Se a sua música de juventude era (segundo se diz) inspirada pelos românticos tardios como Strauss ou pelo simbolismo de Debussy, a música escrita em solo americano será algo de totalmente novo. E dessa música, temos apenas as ditas 17 composições, compostas de forma espaçada ao longo dos cinquenta anos que ainda viveu na América. |
Deixo-vos este link para que possam ouvir (e ver) Amèriques, a sua obra orquestral mais famosa e talvez mais inspirada. Recomendo vivamente que a degustem de fio a pavio porque 1) se calhar não a conheciam e 2) porque não é todos os dias que nos deparamos com uma orquestra tão descomunal e de timbres tão ricos, capaz de evocar sonoridades que vão das civilizações pré-colombianas ao mais cosmopolita modernismo do século XX. |
Muita da obra de Varese, como vimos, foi consumida pelas chamas de um incêndio. Contam-se histórias de que as partituras que não desapareceram nessas chamas foram destruída pelo próprio, como que para fazer tabula rasa no seu próprio legado, eliminando aquilo que não estava à altura da sua própria exigência. |
Aqui entramos numa nova dimensão, que é a de autores que destroem a sua própria criação. A lista é longa e oferece-nos as mais variadas razões e episódios curiosos. Um deles é o pintor francês Charles Camoin (1879-1965) que, após uma exposição de sucesso em 1913, atravessando um período de doença mental, destruiu cerca de oitenta pinturas suas, deixando os destroços numa grande pilha de tela rasgada. A partir destes destroços, e à sua revelia, um amigo reconstruiu algumas telas e preparava-se para as vender em leilão, não tivesse Camoin ripostado com um processo em tribunal, que ganhou. Assim, as malogradas telas acabaram sendo destruídas uma segunda vez, once and for all. |
Em música, existe um caso parecido, devido também à doença mental. Trata-se de Henri Duparc (1848-1933), que aos 37 anos decidiu abruptamente parar de compor e, pouco tempo depois, deu às chamas a quase totalidade do seu catálogo, salvando-se apenas as obras que já tinham sido publicadas e uns quantos manuscritos. No total, ficaram cerca de quarenta composições de enorme beleza, que nos fazem lamentar a perda de tanta música que nunca havemos de ouvir. |
Para provar a dimensão da perda, recomendo a belíssima composição orquestral Aux Étoiles, que Duparc dedicou ao açoriano Francisco de Lacerda, compositor e maestro que desenvolveu uma interessante carreira em França na transição entre séculos, até regressar definitivamente a Portugal em 1928. |
Ao ouvir esta música, aos nossos ouvidos extraordinária, do mesmo nível de tantas outras cujo autor decidiu queimar por as considerar vergonhosas, não podemos deixar de nos questionar sobre a nossa própria legitimidade para desejar ouvir aquilo que o autor destruiu. Afinal de contas, a quem pertence a criação? Ao criador ou ao mundo inteiro? |
E, às vezes, não terá o autor razões para destruir uma sua obra? |
Um caso interessante é o do romance inacabado que Vladimir Nabokov pediu que a mulher destruísse após a sua morte. A viúva, incapaz de o fazer, guardou o manuscrito toda a vida. Este passou para o filho, que também foi incapaz de o destruir e acabou publicando-o em 2009. O Original de Laura, como se chama, foi um flop e a crítica foi unânime ao considerar que o autor tinha razões para o querer destruir. |
Pois é, por muito genial que seja um autor, temos de aceitar que por vezes uma obra não saia assim tão genial. E por isso, por muito que nos custe a acreditar, depois de ouvir um pouco da música de Varèse e Duparc, temos de aceitar que os compositores podiam ter razões válidas para querer a eliminação da sua própria obra. |
Um outro caso famoso, que não posso deixar de citar, é o de Franz Kafka, que pediu ao amigo Max Brod que deitasse ao lume os seus escritos após a morte do autor. Há quem diga que Kafka só o fez porque sabia que Brod nunca destruiria a sua obra, mas ainda assim a humanidade correu o risco de nunca vir a conhecer alguma da mais brilhante narrativa de todos os tempos. E é graças a Max Brod (grande abraço!) que os meus leitores podem, ao longo desta semana e da próxima, vir ao Teatro São Luiz assistir à ópera Na Colónia Penal, segundo o conto de Kafka e com música de Philip Glass. |
Trata-se da estreia lisboeta deste título (que também irá ao Porto em Outubro) que, prometo, não vos vai desiludir. E não digo isto porque lá estarei, no fosso de orquestra, a dirigir a parte musical. É mesmo a melhor sugestão que posso fazer e só tenho pena de não poder eu próprio assistir a uma récita sentado na plateia. Enfim, são as dores de quem está com a mão na massa. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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