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“Estou espantado: já lá vai quase um mês e, ao dia de hoje, ainda recebo feedback sobre Sofiane Pamart” |
Confesso que não esperava tantas reacções à minha primeira newsletter, mas acho-as fascinantes no colorido e variedade com que me vão chegando pelos mais diversos canais. Estes contactos revelam que o mundo se divide, fundamentalmente, em dois grupos de pessoas: as que gostaram tanto de descobrir a música de Pamart que já a colocaram nas mais diversas playlists, e que há quem considere que ele não é Chopin coisa nenhuma, mas simplesmente um produto da música pop e das redes sociais. Como tal, chega a ser uma pena que eu tenha desperdiçado o meu tempo a escrever sobre ele. |
Sobre aqueles que agora gostam do pianista franco-marroquino, não tenho nada a dizer. É só desejar “boa continuação”, como se diz no Norte. São aqueles que não gostaram quem motiva este texto porque, no fundo, o maior defeito que lhe é apontado é a sua aparente falta de profundidade. Como se cada gesto, cada acto criativo e cada concerto seus estivessem na verdade ao serviço dos desígnios bem mundanos e superficiais como são a fama e a fortuna. |
A Pamart falta então o sentido da profundidade. Pamart é a espuma dos dias, enquanto outros são a essência dos dias. |
Não desejo alongar-me mais sobre Sofiane Pamart, até porque ele não precisa da minha defesa ou apologia. Mas dito isto, e visto que o tema gerou estas reacções, gostava de dedicar a newsletter de hoje ao oposto daquilo que Pamart representa e que alguns dos meus leitores parecem desejar: a profundidade. |
Se o pianista é o ápice da superficialidade e do marketing, então procuremos outros cuja pegada criativa é feita nas profundezas do espírito humano, sem concessões ao mercado ou a jogadas mediáticas. Busquemos a verdadeira introspecção e recolhimento. Aquela verdade artística mais pura, essencial e até, intransigente. |
O salmo 129 da bíblia latina dá-nos uma boa dica de começo, ao abrir da seguinte forma: |
De profundis clamavi ad te Domine (“Das profundezas chamei por ti, Deus”) |
Também conhecido simplesmente como “De profundis”, este salmo tem servido de inspiração directa a muitos artistas que, a dado momento nas suas vidas, se sentem atraídos ou próximos duma profundeza misteriosa e rica de significados. |
Poderia dar exemplos de qualquer uma das artes. Sei que esperam que me foque na música, mas como acho que ficamos melhor servidos se puder fazer citações (coisa apenas possível nas artes literárias), permitam-me que por hoje faça uso da poesia e da literatura. |
Esta profundidade, tomando como mote o salmo 129, pode vir do desespero, como no De Profundis, poema d’As Flores do Mal, em que Baudelaire escreve a partir do abismo de um amor gorado que inicia assim: |
Imploro a tua compaixão, a ti, meu único amor,
Do fundo deste abismo aonde o meu coração veio cair. |
A um passo de distância deste abismo emocional, encontramos uma forma de profundeza que é motivada pela injustiça gritante. É o caso de Oscar Wilde, que em De Profundis, carta escrita a Lord Alfred Douglas a partir da prisão, expõe a situação desesperante e sórdida em que se encontra, encontrando um sentido para a vida através do sofrimento e da forma como este se pode transformar em beleza: |
Ainda assim, a coisa mais terrível não é quando se quebra um coração — pois os corações existem para ser quebrados — mas quando acontece um coração tornar-se de pedra. |
E ainda: |
A única companhia que quero neste momento são os artistas e as pessoas que sofreram: aqueles que sabem o que é a beleza e o que é a dor. Ninguém mais me interessa. |
Do isolamento do cárcere e do alheamento social, passamos ao alheamento da consciência. O exemplo é com de De Profundis, Valsa Lenta, o livro em que José Cardoso Pires narra a experiência do seu próprio AVC, conduzindo o leitor através da fragilidade da vida humana e da sua relação com os outros, nomeadamente na perda e recuperação da capacidade cognitiva: |
Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significativas, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido. |
Mudando a orientação às nossas profundezas, há a lindíssima colectânea de Federico Garcia Lorca, Poema del Cante Jondo, em que o jovem poeta andava a trabalhar faz agora cem anos e onde dá azo à paixão pelas raízes da cultura tradicional do sul de Espanha, na qual o cante jondo é, para si, a manifestação mais profunda das entranhas do povo. Nesta colectânea, o poema De Profundis dá-nos a seguinte imagem: |
Os cem apaixonados
dormem para sempre
debaixo da terra seca.
A Andaluzia tem
largos caminhos vermelhos.
Córdova, oliveiras verdes
com que fazer cem cruzes
que os recordem.
Os cem apaixonados
dormem para sempre. |
Fica a ideia: a profundidade é múltipla e tanto vem de um amor profundo, tornado eterno pela morte dos apaixonados, como da ligação à terra sob a qual repousam. Noutros casos temos o sofrimento, a quase-morte, a injustiça, o amor não correspondido. Sempre as profundezas, inesgotáveis e abissais, tão próprias da existência humana. |
Até aqui, falei apenas de temas marcantes na personalidade destes quatro autores. Mas no fundo, bem vistas as coisas, poucas serão as experiências da nossa vida que não se prestam a uma dimensão de profundidade. É que tudo pode ser levado a uma profundeza maior através da experiência poética e da transcendência que esta proporciona. A beleza tem, de facto, a capacidade de dar profundidade a qualquer coisa em que toque. E de cada vez que é conferida beleza a um aspecto da vida, dá-se um fenómeno em que através da estética está a ser dado um novo valor à normalidade. |
O tema mais trivial que se possa imaginar pode ser objecto de beleza e de profundidade. Curiosos? Deixemo-nos então de tópicos pesados como injustiça, amor e morte, e pensemos antes em batatas fritas. Eis o mote para uma das páginas mais enternecedoras que Adília Lopes escreve em Estar em Casa: |
Berta gostava muito de batatas fritas. Nos tempos hipocondríacos e de embuste em que vivemos é proibido comer batatas fritas. Ainda por cima Berta era obesa e diabética. Os diabéticos não podem comer fritos. Mas Berta tinha um namorado muito meigo que lhe fazia as vontades. O namorado de Berta oferecia-lhe saquinhos de batatas fritas. Berta comeu batatas fritas até morrer e nunca morreu. Esta é uma história doce. Só não é autobiográfica porque pessoalmente não gosto de batatas fritas. |
Gosto de chamar a este fenómeno a sublimação. É quando através da beleza que é conferida pela nossa percepção, o objecto observado se transcende, passando de um estado de banalidade a um estado de beleza. Tem o seu quê de místico e, se não fossem simples batatas fritas, podíamos até falar em apoteose, seguindo a verdadeira etimologia grega da palavra, que significa tornar-se divino. |
Como vemos, a transcendência da banalidade para a beleza pode dar-se com as batatas fritas oferecidas pelo namorado da Berta, tal como pode acontecer com os poemas andaluzes de Garcia Lorca ou com as baladas sentimentais de Sofiane Pamart. |
Como disse John Berger em Modos de Ver, “beauty is in the eyes of the beholder”, a beleza está no olhar de quem vê e não no objecto em si. Também é certo que em inglês esta frase se presta à piada “beauty is in the eyes of the beer-holder”, a beleza está no olhar de quem tem uma cerveja na mão, que sugere que, com um pouco de álcool a mais, coisas que eram feias podem tornar-se belas. Em todo o caso, duma forma ou doutra, a beleza é pessoal e subjectiva, razão pela qual o português diz que gostos não se discutem. |
Tudo isto para dizer que a profundidade na música de Sofiane Pamart está nos ouvidos de quem ouve, e não no pianista em si. Quer a arte nasça como um statement no Instagram ou como uma carta escrita na prisão, não é aí que está o seu significado ou valor. |
Mais uma vez, deixei-me levar a um tema demasiado rico para ser esgotado em apenas uma newsletter, razão pela qual terei de lhe dar um remate na semana que vem, desta vez, prometo, fazendo uso de exemplos musicais. |
Como sugestões, visto que qualquer amante de música é no fundo amante da beleza e a beleza conhece várias formas, deixo as referências literárias de hoje: |
As Flores do Mal, de Charles Baudelaire |
Há pelo menos duas boas edições em língua portuguesa. Uma, com tradução de Maria Gabriela Llansol e outra, mais recente e também mais aderente ao texto original, com tradução de João Moita. Ambas estão publicadas pela Relógio d’Água. |
Obra Poética Completa, de Garcia Lorca |
Infelizmente é um livro (ed. Martins Fontes) que só se encontra em alfarrabistas. Assim, fica a ligação para o Poema del Cante Jondo, disponível no site da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. |
De Profundis, de Oscar Wilde |
Está disponível em várias versões. A saber, Relógio d’Água, Guerra & Paz e Editorial Estampa. |
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Está publicado pela Relógio d’Água e pela Dom Quixote (mas esta edição também já só se arranja em alfarrabistas). |
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Foi publicado em 2020 pela Assírio & Alvim. Por essa razão, não integra as primeiras edições da Dobra, que reúne a obra completa da autora. Se procurarem a versão que foi lançada em 2021, aí sim, já aí encontrarão as batatas fritas da Berta. |
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Está publicado pela editora Antígona. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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