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Como derrubar preconceitos sobre música clássica? Sofiane Pamart sabe |
Caro/a leitor/a, |
É um prazer dar-lhe as boas-vindas a esta nova newsletter do Observador. |
Então não é que, não saciado com as recém-introduzidas doses homeopáticas de música clássica (leia-se Encontro com a Beleza, na programação da Rádio Observador todas as segundas-feiras à tarde) – o Observador sentiu ainda vontade de me acolher os pensamentos por escrito? É verdade. E eu, encantado, aceitei. |
Assim, acho o mínimo começar esta relação de escrita-e-leitura com um aviso à navegação. Uma espécie de preâmbulo, para que saibam o que podem esperar daqui. Assim decidem já se isto é para vocês ou se estão a perder tempo. Amigo não empata amigo. |
Então cá vai: estas newsletters serão reflexões e sugestões, mais ou menos canónicas, que partem da música clássica mas que poderão ir dar às artes e a fenómenos culturais at large. |
Serão um canal onde darei voz à música na minha cabeça, esperando que possa vir a materializar-se em música e ideias também na cabeça de quem me lê. Chegarão uma vez por semana à caixa de correio dos subscritores, sempre às terças-feiras. |
E, claro, estão à vontade para me escrever. Interpelem-me, falem comigo e dêem-me ideias. Têm o meu email: martimsousatavares@observador.pt. |
Porquê chamar a isto “a música na minha cabeça” e não “a música nos meus ouvidos”, por exemplo? Acontece que, para mim, a música tanto vive no acto sensorial da escuta, como no acto intelectual que é a reflexão. |
Reflectir sobre a música é um elemento indispensável do meu quotidiano enquanto músico, visto que me encontro regularmente com partituras às quais tenho de dar uma interpretação, um cunho pessoal, e com páginas em branco que me toca preencher com sons e notas. Esta reflexão, que pratico de forma ininterrupta e já praticamente involuntária, passa por reavaliar constantemente aquilo que conheço e preencher lacunas na imensidão de músicas e repertórios sobre os quais ainda não sei nada. Esta é minha forma de ouvir música, que mistura o prazer da escuta com a inquietação do pensamento. |
Mas enough about me. O que pensa uma pessoa que pensa sobre música? |
Fundamentalmente, pensa nos seus significados e nos seus potenciais. Ou seja, o que é esta música e o que poderia ser esta música. Dou exemplos para os dois casos. Às vezes ouço música que me ajuda a entender um romance de Thomas Mann. Eis música que é uma ideia, um significado. Outras vezes ouço música que me dá um flash e se materializa imediatamente no tema para um guião televisivo. Eis música que poderá vir a ser uma ideia ou um significado. |
Só que os significados são infinitos, são pessoais, entrelaçam-se, anulam-se e opõem-se ao consenso. É fascinante procurá-los. Por outro lado, como alguém disse avisadamente, “escrever sobre música é como dançar sobre arquitectura”. Podemos dizer o que quisermos, a música será sempre indiferente ao nosso palavreado. O mesmo se aplica a um vinho, uma paisagem ou um quadro. Mas a verdade é que nos sabe bem falar das coisas de que gostamos e, se há fenómeno inquestionável da prática humana, esse fenómeno é o cultivo da música. Já houve quem dissesse que a espécie humana deixou o reino animal e entrou no patamar civilizacional quando se iniciou na prática musical, ainda antes de desenvolver a linguagem. Talvez tenha sido o primeiro ATL dos nossos antepassados. No fundo, esse gosto partilhado uniu as primeiras comunidades e é esse mesmo prazer que vos traz até aqui, para ler sobre música. |
Mas também ainda não é sobre isso que quero falar nesta newsletter, isto era só o fim do preâmbulo. |
Escrevo estas linhas ao som do piano de Sofiane Pamart. Ultimamente tem sido ele o responsável pela música na minha cabeça. E o mais curioso é que nem adoro a música dele, mas considero importante ouvi-la. Pelo seu significado, lá está. Pelo que a música representa além de si mesma, para lá das notas. Ouço estas peças para piano com a mesma dedicação com que um atleta se exercita no ginásio ou como as provas e pesquisas de um chef no momento de transitar do menu de verão para o menu de outono. É uma maneira de estar em forma na minha profissão, atento aos sinais e em evolução pessoal. |
Apesar de não adorar esta música, quero escrever sobre ela, para dar um exemplo de como é possível separar o prazer físico do prazer intelectual. |
Experimentem, a partir daqui, ouvir o disco LETTER para ficarmos na mesma página. |
A história da minha ainda recente carreira tem sido o desconforto perante um género que não me assenta na perfeição. Adoro a música clássica mas sempre me senti um misfit dentro dela. Não morro de amores pela forma como é apresentada, não me revejo inteiramente na maneira como é pensada e não me sinto sempre confortável ao frequentá-la. Mas nunca duvidei de que a origem do problema está na embalagem e não no conteúdo. |
Sofiane Pamart é, para mim, uma inspiração nesse sentido. Enquanto autor, é evidente que as suas composições resultam da aplicação de uma fórmula que é a simplificação dos recursos criados por Chopin há um século e meio. Qualquer par de ouvidos treinado chega lá. É como se a música de salão parisiense oitocentista se tivesse adaptado ao gosto pós-moderno, que não pede mais que uma boa ideia melódica com uma harmonia simples e funcional por trás. É indiscutível, sim, mas honestamente é irrelevante. O que interessa é perceber como é que isto acontece e porque é que é importante. |
São tantas razões para dedicar um pouco da nossa atenção a Pamart, que fico sôfrego só de pensar que tenho de as arrumar num par de parágrafos, sob pena de já ter aborrecido os meus bem-intencionados leitores. Mas tentemos fazer a exegese possível de Pamart, ainda que breve. Comecemos pelo início. |
Sofiane Pamart é um artista francês nascido a 25 de Abril de 1990 numa família de diáspora marroquina que em meados do século XX se mudou para França, onde os seus avós se empregaram no sector primário. Na única vez que veio a Portugal (Braga, 2022), disse à Lusa que “as mãos do meu avô estavam no carvão, as minhas estão no piano”. |
A mãe, que cresceu em França e teve a oportunidade de estudar e ascender à classe média, tornando-se professora, decidiu que os três filhos haviam de aprender música como exercício de disciplina e como caminho para se habituarem a rentabilizar ao máximo as suas capacidades. Foi uma aposta acertada, porque Sofiane se formou em piano com a medalha de ouro do Conservatório de Música de Lille, preparado para uma carreira como tantos outros intérpretes de Chopin ou de Beethoven. Só que o seu caminho não era esse, porque Pamart também é um misfit. |
Apesar de ser formalmente treinado em âmbito clássico (o seu estilo criativo e a sua técnica ao piano comprovam-no), a verdade é que esta linguagem só em parte o seduz. Também se interessa por rap, dubstep ou música latina. Tanto gosta de tocar num Steinway and Sons de concerto, como está em casa com os dedos a passar pelas teclas de um teclado digital. |
Se já estão a ouvir a música de Pamart, agora é o momento indicado para também procurarem o seu aspecto. A sério, vejam-no. Olhem para ele. Experimentem segui-lo no instagram (neste momento são 186 mil), onde se faz chamar Piano King. |
Estamos perante um verdadeiro artista pop, não é só na aparência. Toda a sua existência exala o savoir faire da popularidade e do fenómeno da fama. Discos de ouro, salas esgotadas, conteúdos para os fãs nas redes. É o primeiro pianista na história a esgotar a parisiense Arena Accor, por onde passam os eventos mais concorridos da capital francesa, do Masters de Paris a Roger Waters, com passagens por Backstreet Boys e Florence + The Machine. A questão é que, à data em que escrevo, para todos estes eventos ainda há bilhetes disponíveis com excepção de Pamart, que esgotou a sua data ainda no início de Setembro quando o concerto será só daqui a um mês. |
Foram dezenas de milhar as pessoas que correram a comprar bilhetes para um concerto de piano a solo. Não há uma voz, não há um número de abertura, um artista convidado, uma parceria chamativa. É só Sofiane Pamart, sozinho em palco a passar em revista o seu repertório de composições para piano. |
Os críticos dizem que Pamart desafia as convenções e os limites da música clássica. Já o público, que é quem mais importa, não podia estar-se mais nas tintas para essas convenções. Seguem o músico e vão aos seus concertos porque gostam. Porque Pamart é um artista que sabe estar no mundo contemporâneo, que encontrou o seu espaço e se tornou relevante na vida de milhares de pessoas. Se por um lado já tem um disco de ouro, que o coloca na esfera pop, por outro as suas composições estão publicadas, tal como qualquer partitura de Bach ou Mozart, e são obras que é possível aprender e ensinar ao piano, coisa que o coloca na muito longa tradição da música clássica de compositores que são também intérpretes das suas próprias criações e virtuosos no seu instrumento. |
No fundo, a razão pela qual ando curioso com o fenómeno de Pamart e a sua imensa popularidade, que assenta num compromisso obstinado com uma estética própria, quando lhe teria sido muito mais fácil ceder às pressões e circunstâncias do mercado, é porque este artista desafia aquela frase feita: “Se é arte, não é para todos. Se é para todos, não é arte.” |
Considero Pamart um artista. Não sou fã do seu produto, mas admiro a sua independência, o seu modus operandi e os resultados que tem. Quando for grande, é claro, quero ser como ele. E mais que tudo, estou-lhe agradecido por provar que deitar abaixo muros intelectuais e preconceitos é uma das tarefas mais nobres que a um artista podem ser dadas cumprir. |
Com isto em mente, deixo-vos algumas sugestões para o vosso tempo livre e para aprofundarem este exercício de liberdade, se assim o entenderem. |
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Uma apologia ao alargar dos nossos horizontes através de uma certa loucura e non-sense sonoros. Chamemos-lhe, correndo o risco de soar pomposo, uma forma de libertação e relativismo sensorial. Sempre que fui a acontecimentos do universo Sonoscopia, saí de lá com a sensação de ter feito reset aos meus ouvidos, ganhando uma renovada noção daquilo que pode ser música. |
Holograma (Casa da Música)
Cineteatro António Lamoso, Santa Maria da Feira |
Que suspiro de alívio, ver as instituições sair das suas magníficas sedes e irem ao encontro das pessoas, numa lógica de aproximação cultural e estreitamento de distâncias sociais! |
Aplaudo este programa da Casa da Música, que em 2022 chegará aos 17 municípios da Área Metropolitana do Porto, e que poderia inspirar tantas outras instituições a subir o seu nível de compromisso comunitário e de compreensão da realidade. |
Ao longo de quatro dias (de quinta-feira a domingo) o ciclo Holograma propõe dez concertos em diferentes tipologias, para diversos públicos escolares, sessões abertas à família e público em geral, desta vez em Santa Maria da Feira. |
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Neste fascinante compêndio de história da música em dois volumes, o veterano da comunicação António Victorino d’Almeida está no seu melhor, ao assumir ser subjectivo. No fundo, em vez de tentar escrever (mais) uma enciclopédia impessoal que conta a história da música como se fosse apenas um rol de nomes e datas, o maestro atreve-se a mostrar a sua opinião e partilhar “porque é que acha que certa música é mesmo boa e outra não vale assim tanto”. É portanto um exercício livre da subjectividade e um elogio da natureza humana, que inevitavelmente faz muito eco em quem lê.
(ed. Oficina do Livro) |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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