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O hipster veio para ficar. |
Entendi-o pela primeira vez quando, por volta de 2010, vi dois estrangeiros com pinta de surfistas que, sentados na esplanada do quiosque do Largo de Camões, em pleno Chiado, cada um com o seu macbook disposto ao lado de alguma espécie de frappuccino, conversavam enquanto tricotavam. Foi uma lição sobre o que era a cultura hipster. |
Na altura já se chamava hipster a isto ou àquilo, embora sem grande critério. Hipster era todo aquele que tinha gostos um pouco desviantes do padrão ou que se dedicava a coisas pouco conhecidas ou menos normativas. Como um surfista tricotador. Se alguém ouvia uma banda de garagem que mais ninguém conhecia, essa pessoa era hipster. |
O fenómeno alargou-se e consolidou-se, embora tenha na música a sua expressão principal. Ainda é uma glória, uma joia na coroa de qualquer hipster, ouvir uma banda que mais ninguém conhece. E quando esta passa a ser famosa, já não serve e toca a procurar outra. |
Segundo o conhecimento neo-enciclopédico, o fenómeno do hipster é uma forma de subcultura praticada sobretudo por pessoas entre a casa dos 20 e 30 anos, que valorizam o pensamento livre e uma visão do mundo que é progressiva e em contra-cultura, que se manifesta no gosto por práticas artísticas que se afastam do mainstream. |
Se a música é um campo da cultura hipster, então também a música clássica deve ter o seu próprio nicho, certo? Precisamente. |
E sabem que mais? Quem vos escreve é, sob todos os pontos de vista, um hipster encartado. A minha ainda curta carreira tem sido pautada por esforços em todos os formatos possíveis no sentido de dar a ouvir e conhecer autores e músicas que estão afastados do cânone. Já expliquei em muitas ocasiões o porquê desta escolha e as formas em que considero que contribui para o nosso enriquecimento e para um ecossistema humano e cultural mais diverso. Mas também, confesso-o honestamente, simplesmente gosto muito de música que ainda pouca gente conhece e acho isso uma pena. |
Lembrei-me de abordar este tema porque recebi correio de ouvintes a propósito do episódio de Encontro com a Beleza da semana passada, que dediquei a um compositor que já foi muito famoso mas que hoje em dia poucos melómanos ainda ouvem e conhecem. Certa ouvinte pediu-me mais sugestões de compositores dessa classe, para um exercício de descoberta. |
Ora, isso é a minha praia, cara ouvinte, e é com muito gosto que aqui ficam algumas sugestões para um estilo de vida um pouco mais hipster. |
Os nomes que vou recomendar são todos, uns mais, outros menos, conhecidos e documentados. Caso contrário, se fossem tão obscuros que nem podem ouvir a sua música ou descobrir mais sobre quem a escreveu, não os colocaria aqui. Assim, por muito que me fascine a obra de Johanna Beyer, por exemplo, o seu legado e estudo ainda não estão num ponto de consolidação que permita a verdadeira difusão que merece. |
Assim, ganham pontos extra os leitores desta newsletter que, ao verem as minhas sugestões, possam exclamar “Ah! Eu conheço este nome!” |
Vamos do menos para o mais obscuro, numa lista com quatro graus de hipsterismo: |
1. Hipsterismo básico |
Lili Boulanger (1893-1918). Basta ver a cronologia do seu nascimento e morte para entender porque é que a compositora francesa, que apenas viveu 24 anos, não alcançou a fama que merece. Simplesmente não teve tempo, e o período em que viveu ainda não era o mais propício à expressão artística no feminino. Em todo o caso, a frágil Lili Boulanger, que nasceu com várias doenças crónicas que levariam à sua morte prematura, tinha um génio absolutamente ímpar, situando-se no limiar entre a estética simbolista (a que os rookies insistem em chamar impressionista) e os primeiros ecos do modernismo, que se manifestou em Paris antes de se alastrar ao resto do mundo. Após a sua morte, deveu-se à irmã, Nadia Boulanger, a defesa do seu legado. Nadia, por sua vez, veio a ser uma das mais reconhecidas e procuradas mestres de composição, atraindo sobretudo clientela do novo mundo, de Aaron Copland a Leonard Bernstein, todos eles representando esses muitos Americanos em Paris que entre os anos 1920 e 1930 encheram de vivacidade a vida parisiense. A todos quantos a visitavam no seu salão, a madame Boulanger insistia que a verdadeira mente genial naquela casa tinha sido a sua irmã, disseminando e dando assim a conhecer a obra de Lili Boulanger a muitos músicos que vieram a ocupar posições de destaque na história da música. |
Recomendo que comecem a descobrir a obra de Lili Boulanger através da Velha Oração Budista, composição de 1917 que não tem como não assombrar qualquer ouvinte de espanto. |
2. Hipsterismo moderado |
António Fragoso (1897 – 1918). Outro cuja fama (ou falta dela) se justifica numa curtíssima vida. Neste caso, o compositor natural da Pocariça, para os lados de Cantanhede, foi uma das muitas baixas da gripe espanhola H1N1 que ceifou vidas aos milhares pelo nosso país e pela Europa fora, vitimando outros artistas como Amadeo de Souza Cardoso, Gustav Klimt ou Edmond Rostand. |
No caso português, Fragoso pertence à mais trágica geração de brilhantes artistas que alguma vez tivemos, ceifados por mortes prematuras, entre doenças ou suicídios. Além de Fragoso e Souza Cardoso (este falecido aos 30 anos), podemos contar Mário de Sá-Carneiro (suicídio aos 26 anos), David de Sousa (falecido com 38 anos), Guilherme de Santa-Rita (falecido com 28 anos) ou Tomás Cabreira Júnior (suicídio aos 20 anos). |
A música de Fragoso, inspiradissima e em tom de novidade no panorama português, bebia ainda muita da influência de Debussy e Grieg, combinando o legado tardo-romântico com os ecos da vanguarda parisiense. Deixou apenas miniaturas, sobretudo obras para piano, piano e voz ou música de câmara, mas isso em nada lhe tira o mérito. Recomendo que comecem a descobri-lo através da Chanson d’Automne dos Poèmes Saturniens, inspirados pela poesia de Paul Valery. Daí, facilmente chegarão ao Nocturno ou à Petite Suite, composições que já conquistaram justamente o seu lugar entre o repertório dos pianistas portugueses. |
3. Hipsterismo admirável |
Charles-Valentin Alkan (1813-1888). Finalmente, um compositor que não é menos conhecido apenas porque viveu pouco. Alkan é marginal devido à obscuridade genial mas desconcertante da sua música. Compositor e pianista francês, contemporâneo de Chopin e Liszt, foi uma criança-prodígio não apenas na música mas também no domínio das línguas clássicas ou do estudo da cabala judaica. Mais tarde, já em adulto, acometido por um pendor místico, retirou-se durante décadas da cena pública, para reemergir enquanto pianista de concerto só na década de 1870, vindo a causar grande impressão por entre a geração de jovens decadentistas que então davam vida à cultura literária parisiense. |
Basta dizer que há apenas duas fotografias do compositor, sendo que uma delas, feita em estúdio, mostra-nos Alkan de costas, de cartola na cabeça e guarda-chuva na mão, como se estivesse pronto a sair. De certa forma, faz lembrar as icónicas figuras do homem-miniatura que preenchem os quadros de Magritte. |
A música de Alkan, que é o que aqui nos interessa, sempre foi cultivada e defendida pelos hipsters de cada geração, sendo que o principal dos pianistas a defender o seu legado no nosso tempo é, sem dúvida alguma, o igualmente intrépido Marc-André Hamelin. Proponho que comecem a vossa descoberta deste compositor através de uma das mais (des)concertantes obras que escreveu, o Concerto para piano solo, ou seja, um concerto para piano e orquestra mas sem a orquestra. É um calhau, como lhe chamamos entre músicos, com 50 minutos de música de seguida, divididos entre três andamentos. Toca-o, é claro, Marc-André Hamelin. |
4. Hipsterismo que não se aguenta |
Galina Ustvolskaya (1919-2006). Uma vez conheci uma pessoa que me disse que Ustvolskaya era “my favorite composer of all-times”. Juro. Isto são coisas que não se inventam. |
A verdade é que Ustvolskaya tem o seu séquito de seguidores, como pode comprovar nas caixas de comentários dos vídeos no Youtube com a sua música e até mesmo em alguns tópicos que surgem aqui e ali na subcultura digital, como o Reddit. |
A sua fama recente (ainda que diminuta, é certo), deve-se sobretudo ao esforço do admirável Reinbert de Leeuw, pianista, maestro e aventureiro musical holandês que descobriu a ponta do icebergue da sua obra e quis conhecer a compositora, visitando-a em São Petersburgo, no apartamento mínimo onde vivia em condições quase monásticas, vindo então a tirar muitas das suas partituras da gaveta onde algumas estavam a ganhar pó há décadas. |
É difícil descrever a música de Galina Ustvolskaya, que se alicerça quase sempre num misticismo religioso muito intenso. A questão que pode chocar os ouvidos mais sensíveis é que a sua música é de uma agressividade como conheço poucas, procurando sempre um intenso sentimento de catarse através da purificação que é a experiência de a ouvir. Recomendo o documentário fascinante, realizado em 2005 por Josée Voormans, intitulado Um Grito no Universo, que podem ver por inteiro no Youtube. Retrata o encontro entre de Leeuw e Ustvolskaya, com intervenções de ambos, assim como de outras pessoas que conheciam a compositora e a sua obra, e deita alguma luz sobre o significado desta música tão estranha que não admira tenha sido proscrita durante toda a vida da compositora, não só enquanto existiu a União Soviética, mas também após a sua desagregação. |
Ainda hoje não sei se estamos preparados para música assim, mas lá que é uma experiência, isso é. Nunca tive a sorte de a ouvir ao vivo mas garanto que, assim que tiver uma oportunidade, não irei desperdiçá-la. Por isso, dizer que “Ustvolskaya é a minha compositora preferida” é mais do que um statement. É um diploma na arte de ser hipster. Proponho que, a par do documentário referido, descubram a sua música começando pela Sinfonia nº2, com o subtítulo “Bênção eterna e verdadeira”, que inclui trechos recitados em russo, retirados de escritos de Hermano de Reichenau, monge beneditino do século XI. A sinfonia é escrita para um agrupamento invulgar, para dizer o mínimo, que inclui seis flautas, seis oboés, seis trompetes, percussão e um piano. |
Proponho a versão tocada, dirigida (e encenada) por Reinbert de Leeuw mas aviso-vos: ouçam-na por vossa conta e risco. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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