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“Qualquer amante de música é no fundo amante da beleza e a beleza conhece várias formas.” |
Concluí a newsletter da semana passada com esta ideia, justificando o porquê de ter-me servido de fragmentos de poesia e prosa em vez de música. O objectivo era demonstrar que a profundidade em arte é um conceito complexo — e sobretudo subjectivo — mas que está em toda a parte, tanto num amor arrebatador como, literalmente, num pacote de batatas fritas. |
Hoje quero chegar à música com esta mesma ideia de que coisas que estão num patamar espiritual ou estético menos elevado podem prestar-se ao fenómeno da sublimação. Para isso, quero falar de Mahler. |
É um dos artistas que melhor representam o seu tempo e que deveriam ser estudados na história em geral, na medida em que é claríssima a forma como a sua música nos ajuda a compreender o tempo e o lugar em que viveu. |
Gustav Mahler nasceu em 1860 em Iglau. A cidade chama-se hoje Jihlava mas fazia parte da Morávia (uma das muitas regiões do Império Austro-Húngaro) e fica a meio caminho entre Praga e Brno, que actualmente pertencem a outros países. Morreu em Viena em 1911. |
Espraiando-se no coração de uma Europa milenar, este vasto império continha uma amálgama de povos, línguas e tradições verdadeiramente sem igual, o que ao mesmo tempo foi origem de constantes tensões sociais, ou não fosse precisamente numa das suas províncias mais periféricas que se desencadeou a Primeira Guerra Mundial, precipitando o próprio fim do império. |
Mas não vamos tão longe, porque Gavrilo Princip só disparou sobre o Arquiduque Franz Ferdinand e a princesa Sissi em 1914, já depois da morte de Mahler. Recuemos uns anos, porque a ideia é precisamente ver como Mahler, que morreu aos cinquenta anos de idade, a escassos três anos de assistir ao desmoronar do seu próprio mundo, não precisou de ser testemunha destes acontecimentos na medida em que já os previra com a sua arte. |
A atmosfera de inquietação e conflito que agitava as periferias do Império Austro-Húngaro, atravessadas pelos mais diversos movimentos nacionalistas e independentistas, era sufocada por uma mão de ferro centralizada que agia como um tampão, fazendo com que em Viena a vida continuasse, próspera e elegante, com os valores do século XIX, de que a valsa é a representação musical por excelência. E Mahler, um homem oriundo da periferia mas a viver no centro, era a pessoa perfeita para descodificar essas relações de tensão. |
Falemos agora de Sigmund Freud, que nasce quatro anos antes de Mahler, na mesma região da Morávia. Parece mais que uma coincidência que, tendo estabelecido a seu posição profissional numa das capitais mais cosmopolitas da Europa, tenham ambos acabado por ser tão atentos tomadores do pulso ao seu tempo e lugar. Como se nunca tivessem realmente feito parte daquela sociedade e a observassem de um ponto de vista privilegiado. |
Mahler e Freud agiram de forma semelhante, o primeiro com a música e o segundo com o estudo da mente. A cereja no topo do bolo é o momento em que os dois se tornam um, quando Mahler entra no gabinete de Freud e se deita no famoso divã, tornando-se ele mesmo um utilizador da psicanálise. |
Eis dois génios com posições sociais parecidas e com origem na mesma periferia. Essa periferia foi a sua matriz identitária enquanto cidadãos de um grande império e era a marca que carregavam ao lidar com a sociedade vienense. A partir dessa posição na sociedade, é como se lhe tivessem feito uma biópsia, atravessando as várias camadas sociais de cima para baixo e trazendo à superfície, para análise, uma amostra daquilo que estava escondido nas profundezas. |
Trabalhando cada qual no seu ofício, estes dois homens ofereceram à sociedade um espelho em que esta se pudesse ver tal como era. E foi amarga a surpresa ao ver que a imagem reflectida era inquietante, chegando mesmo a ser grotesca. |
Com Freud, emergem novos e estranhos lugares da psique humana, dos mais libidinosos aos mais frágeis, reprimidos e escondidos nos labirintos da mente e da memória. |
Com Mahler, a sala de concerto, onde a orquestra actua para elevação espiritual das classes dominantes, vê-se invadida por música que traz o gosto das orquestras ligeiras que tocam nos cafés e dos músicos de rua que tocam por esmola. |
De um lado e doutro, eis algumas realidades concretas e palpáveis que existiam, só que estavam apartadas da superfície social, separadas por barreiras de negação psicológica, económica e cultural. |
Naturalmente, a alta sociedade vienense não gostou de saber que os seus filhos podiam sentir um reprimido complexo de Édipo, tal como não gostou de encontrar a imaculada tradição da música sinfónica manchada pelas influências pouco nobres da esfera mundana. No entanto, não há como negar que essas dimensões existiam, quer se preferisse ignorá-las ou não. E foi à custa de ignorar e varrer o pó para debaixo do tapete que, em última análise, o império acabou por ir pelos ares. |
Olhar para a sociedade de Viena na primeira década do século XX é como ver um corte longitudinal de um palácio onde no salão de baile se dança a valsa mas, na cave directamente por baixo, estão incontáveis barris de pólvora prontos a rebentar. Assim era Viena no tempo de Mahler e Freud. |
O interessante é que se eu perguntasse aos leitores — aqueles que sentiram que Pamart é superficial — se consideram que a música de Mahler é profunda, a maioria diria provavelmente que sim, que é profunda, bela, transcendente e todas essas coisas. E quem sou eu para dizer que não o é? É verdade que é profunda, sim, mas profunda nos significados e na experiência humana. Profunda de beleza mas também de fealdade e trauma. Profunda na forma subjectiva como já vimos que a profundidade pode ser. |
O modus operandi de Mahler era deliberadamente híbrido, misturando momentos de grande elevação com música pobre ou repulsiva, no intuito de criar um efeito grotesco a que o compositor chamava paródia. |
Para ilustrar este seu lado complexo, que talvez seja uma descoberta surpreendente para os meus leitores, as minhas sugestões desta semana serão a partir desta gravação do terceiro andamento da sua primeira sinfonia, em que Leonard Bernstein dirige a Filarmónica de Viena, orquestra que Mahler conheceu bem, e desta outra gravação, na mesma combinação maestro-orquestra, em que é interpretada a inacabada décima sinfonia de Mahler, que consiste num longo andamento só. |
No primeiro caso, irão notar que a música inicia de forma sombria, apenas com um dueto improvável entre os tímpanos e um contrabaixo a solo. |
É possível que esta melodia vos seja familiar. Se sim, é porque identificaram o motivo do Frère Jacques, só que em vez de soar como música para entreter crianças, soa de forma macabra, como se fosse uma marcha fúnebre. É isso mesmo: Mahler utiliza música infantil e torna-a em material de obituário, o que é gravíssimo. Brincar com a morte das crianças é de muito mau gosto. Imagine-se a reacção do público quando, em finais da década de 1880, se deparou com esta música vinda de um compositor que ainda nem tinha trinta anos. “Esta geração de jovens está perdida”, terão dito os mais velhos, encolhendo os ombros. |
De seguida, a partir do minuto 2:17, notarão que a marcha fúnebre dá lugar ao que parece ser uma polka de circo, feita de sonoridades estranhas e decididamente pouco nobres. Aqui, Mahler está a aproveitar-se da música da tradição klezmer, presente nas comunidades judaicas do leste europeu, um mundo que Mahler conhecia bem por nascença, pois apesar de se ter convertido ao catolicismo por motivos profissionais e de avanço na carreira, foi criado na província segundo a religião judaica. |
É só a partir do minuto 5:22 que finalmente sentimos que a música nos eleva, só que aqui já é tarde demais. O caldo já foi entornado com toda esta paródia. Mesmo este belíssimo trecho vai soar amargo depois daquilo por que passámos. |
Agora fazemos um fast forward da primeira sinfonia para a última, deixada incompleta devido à morte do compositor. Estamos em pleno 1911, ano em que Mahler está no pico da angústia, tensão e também desilusão com a vida no geral. |
Nesta música encontra-se um perfeito equivalente para O Grito de Edvard Munch, enquanto golpe musical de uma estridência e dissonância chocantes. Há um ponto nesta sinfonia que é como se Mahler gritasse por todos nós. É um verdadeiro uivo de solidão e angústia como não conheço outro igual e é por momentos assim que se diz que Mahler não precisou de viver para ver a Primeira Guerra Mundial a rebentar. Dentro dele, o mundo já se tinha estilhaçado. |
Ouçam a partir do minuto 18:22 e esperem pelo clímax, que chega aos 19:15. Vale bem a pena. E deixem-se ficar até pelo menos ao minuto 19:40, em que o compositor volta àquela imensa ternura de que é capaz quando quer. |
Mahler disse que desejava que a vida inteira coubesse nas suas sinfonias. É por isso que encontramos passagens como esta, em que um momento abjecto dá lugar a um momento de beleza. Há profundidade nisto tudo? Certamente. Mas vem de onde menos esperamos e não se esgota numa expressão apenas da profundidade. |
Sofiane Pamart, batatas fritas, Mahler e Freud. Eis um percurso improvável a propósito da profundidade, só possível por estarem desse lado e lerem, pensarem e responderem. É um privilégio ter leitores assim. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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