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Como é que se faz para ganhar um lugar numa orquestra? Há entrevista de emprego? Não. Chama-se audição |
As audições de orquestra são um tema fascinante para muitos analistas de áreas profissionais que não têm nada que ver com a música clássica. Que o digam um estudo da Universidade de Princeton, outro da Universidade de Harvard, um artigo no The Guardian ou outro no New York Times. Todos são unânimes: as “audições às cegas”, vulgo audições de orquestra, garantem maior representatividade no corpo de músicos, nomeadamente na percentagem de mulheres que tocam em cada orquestra. Logo, as audições orquestrais são um processo de recrutamento melhor do que a boa velha entrevista de emprego em formato olhos nos olhos. |
Vamos lá então saber como se processa uma audição, para perceber o que há de bom mas o que há (também) de perverso neste formato. |
Imagine que é violinista. Terminou os seus estudos superiores em violino, participou em cursos de aperfeiçoamento, escolas de verão, masterclasses dentro e fora do país. Toca em orquestras juvenis desde os tempos do conservatório e recentemente tem actuado como reforço em algumas orquestras profissionais, para além de outros projectos como músico freelancer aqui e ali. |
Estou a descrever uma situação típica, como conheço muitas dezenas, de músicos entre os 25 e os 30 anos. Pois imagine que, a dada altura, cansado do vai-e-vem do quotidiano, feito de projectos diferentes e finanças incertas — pois quando não há trabalho, também não ganha — toma conhecimento de que certa orquestra irá abrir uma posição para violino tutti. |
Isto quer dizer que poderá vir a ser um/a violinista entre todos os outros, que se dividem entre os naipes de primeiros e segundos violinos. É isto que quer dizer violino tutti. |
Para isso acontecer, só tem de ganhar a audição. E é aqui que é preciso respirar fundo e pensar se quer mesmo passar por essa experiência. |
Para obter um lugar enquanto músico de orquestra, todos os candidatos passam por um processo de selecção em absoluta paridade de circunstâncias, e isto é a primeira coisa boa das orquestras. Normalmente não se pedem conhecimentos linguísticos (pelo menos um inglês funcional, vá), pelo que músicos do mundo inteiro podem concorrer a posições em orquestras em qualquer parte do planeta. Isto faz das orquestras um dos ambientes de trabalho mais internacionais que conheço. |
No domingo passado tive o meu concerto de apresentação enquanto maestro titular da Orquestra Clássica do Sul, que nos seus trinta e picos músicos efectivos conta com treze nacionalidades diferentes lá representadas. Esta é a segunda coisa boa das audições: ajuda a criar lugares de um multiculturalismo verdadeiramente raro, onde toda a gente está unida pela mesma paixão. |
Pois bem, apresentam-se então os candidatos. São centenas. Todos enviam os seus CV e gravações recentes a tocar violino. Os mais sortudos são chamados para a audição presencial. Será isto o mais próximo que terão de uma entrevista de emprego. |
No dia da audição, todos os candidatos terão de ter prontos, na ponta dos dedos, uma selecção de excertos da maior dificuldade, retirados de todo o repertório sinfónico, abarcando música que pode ir do século XVIII ao século XXI. Terão também de tocar um primeiro andamento de um concerto para violino e orquestra, mas sem o acompanhamento de orquestra. |
Fá-lo-ão a seco. No momento da inscrição, é-lhes entregue um número e serão chamados por esse número. O número anula a identidade dos candidatos, omitindo ao júri, que os escuta por detrás de uma tela, o quem é quem. Os jurados não têm maneira de saber a idade, o género, a etnia, a cor do cabelo ou o estilo de roupa de quem estão a ouvir. Apenas podem ouvir e mais nada. Toda e qualquer decisão será tomada com base na música e, quem tocar melhor, ganha o lugar. Em teoria parece incrivelmente simples, não é? Meritocracia pura: tocar música e nada mais. O júri, esse, é composto pela direcção musical e alguns músicos cuja hierarquia na orquestra justifica a sua participação no painel de selecção. |
O problema começa na atmosfera de competição opressiva, não só entre candidatos mas também instigada, muitas vezes, pela própria orquestra para a qual os músicos prestam provas. As listas de excertos pedidas são de enorme exigência, por vezes até desfasadas do âmbito da orquestra em questão. Por exemplo, não é incomum orquestras de câmara, que se dedicam a certo repertório, exigirem excertos que pertencem a obras escritas para orquestra sinfónica. Ou seja, pede-se aos candidatos que demonstrem a sua aptidão para tocar música que dificilmente algum dia tocarão naquela orquestra. |
Para além disso, o formato é inclemente. Há apenas uma oportunidade para tocar. Não importa quanto tempo os candidatos se prepararam. Não importa se estão doentes, com menstruação, jetlag, alergias ou simplesmente num dia menos bom. Entram, tocam o que lhes é mandado tocar, numa ordem aleatória e sem saberem se terão de tocar tudo até ao fim. São mandados parar quando o júri acha que ouviu o suficiente e da mesma forma são mandados embora da sala de audições. “Obrigado, está bom assim.” |
A experiência de preparação e execução de audições é muito cruel mas ainda assim o pior são as negas. É difícil ganhar uma audição à primeira. Mas também é difícil ter confiança para tocar bem numa audição após uma sequência de negas. O desgaste é de tal ordem que muitos músicos se afastam da profissão ainda antes de começarem. |
A popular página Humans of New York, na qual o fotógrafo Brandon Stanton regista pessoas no dia-a-dia pela cidade, teve em 2014 um post dedicado a um violoncelista de rua que afirmava ter concorrido a mais de 200 lugares em orquestras, num processo de mais de vinte anos. Tentou a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque por quatro vezes. |
O exemplo de persistência e perseverança deste músico é notável. Podemos imaginar qual seria o grau de empenho e compromisso que traria a qualquer orquestra onde o aceitassem. É aqui que, para mim, está o lado pior das audições: Ao olhar apenas às questões técnicas, avaliando quem toca melhor certa passagem, para mais fora do seu contexto (o que é, afinal de contas, tocar sozinho um excerto de 30 segundos de uma peça que dura dez minutos e é feita para ser tocada por meia centena de pessoas?), como se fosse um exercício acrobático, as audições são um processo de automatização do ser humano que está por detrás do instrumento. Reduz-se um músico, uma pessoa e as suas emoções, à simples expressão da destreza técnica. |
Não me entendam mal. É claro que é preciso tocar incrivelmente bem para entrar numa orquestra. Mas uma vez lá entrado, cada músico terá de se relacionar com os seus colegas, num campo em que as características humanas rapidamente emergem e se revela quem é a pessoa seleccionada. |
Após garantir a entrada na orquestra, cada músico está sujeito a um período de trial, que geralmente pode ir de três meses a um ou dois anos, antes que o seu lugar se torne efectivo e mereça contrato com tudo o que isso representa enquanto vínculo laboral. Durante esse trial, serão uma vez mais a direcção artística e os chefes de naipe quem irá decidir sobre a sua permanência na orquestra. E não são raras as vezes em que a pessoa certa não era aquela, por isso recomeçando o processo todo outra vez. Abrem-se de novo audições, ouvem-se mais umas dezenas de candidatos e lá vai outro tiro no escuro. |
No fim de contas, o que temos? Orquestras mais representativas, é certo. Ao escolher candidatos unicamente com base no mérito técnico, não se colocam quaisquer entraves a que músicos de todas as características ocupem as suas cadeiras. No entanto, o processo poderia ser optimizado se houvesse uma fase, a última e onde iriam apenas dois ou três finalistas, em que estes músicos passassem por um teste mais humano, mesmo que revelando a sua identidade. Porque, no fim de contas, a identidade não deve ser tabu nem conhecê-la deve ser fonte de culpa para o júri. |
Na Orquestra Clássica do Sul irão abrir em breve audições para a posição de concertino. Trata-se do lugar mais importante de toda a orquestra, que é o/a violinista líder, que se senta na primeira cadeira ao lado do maestro. Este será portanto um dos meus primeiros desafios enquanto maestro titular desta orquestra, e uma excelente oportunidade para colocar em marcha o meu pensamento de longa data sobre as imperfeições do método de audição. |
Assim, a Orquestra Clássica do Sul será, tanto quanto sei, pioneira num novo procedimento em que os finalistas serão chamados a tocar um andamento de um quarteto ao lado de mais três músicos da orquestra, podendo ser observada ao vivo a interacção entre todos. Pretende-se assim avaliar a capacidade de liderança, o espírito de entrosamento e a aptidão para colaborar num processo construído por vários músicos. Terão sido audições às cegas até aí, mas chegado esse ponto, lá estarei, eu e os meus colegas, para observarmos de perto a atitude destes candidatos. Os restantes músicos que vierem a integrar o quarteto com eles também darão o seu parecer. |
No fundo, pretende-se introduzir um elemento humano num procedimento que é altamente mecanizado e cruel para os candidatos, que em 99% das vezes sentem que não chegaram a ter uma oportunidade para mostrar quem são enquanto músicos. |
A nossa audição vai acontecer lá para Abril, depois digo-vos se a ideia correu bem. Até lá, podem passar a mensagem pelos violinistas vossos conhecidos. |
Sugestões |
Porque tenho estado a falar da minha nova orquestra, recomendo ao público que estiver pelo Algarve que não perca o concerto no dia 9 de Fevereiro no lindíssimo Teatro Lethes em Faro. Incluirá música de Samuel Coleridge-Taylor, compositor negro da transição do século XIX para XX que deu cartas no Reino Unido, tendo vivido uma curta vida de apenas 37 anos. O seu talento é imenso mas a sua música ainda é praticamente desconhecida do público português. |
Por se tratar de um tema musical, não posso deixar de recomendar Tár, filme de Todd Field em que Cate Blanchett representa um intenso papel de maestrina. Depois podem juntar-se às muitas pessoas que me perguntam se já vi o filme e o que achei da actuação de Cate Blanchett no pódio. Chega às salas portuguesas a 9 de Fevereiro. |
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(a fotografia no topo desta newsletter é de Enric Vives-Rubio) |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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