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O que confere valor à música: a autoria ou o conteúdo musical? |
Vivemos no tempo das fake news, mas o fenómeno de forjar factos ou artefactos é tão velho como a humanidade. Até a música não lhe escapa. |
Porquê abordar o tema do fake na música? Porque no fim da newsletter da semana passada recomendei o filme Amadeus. Um clássico que deu a machadada fatal na reputação do compositor italiano Antonio Salieri, que sai deste filme com uma triste e irrecuperável fama, a juntar à intriga, forjada ainda no século XIX, de que teria sido responsável pela morte de Mozart, de quem teria infinitos ciúmes. |
O principal responsável por este hoax musical é, nada mais nada menos, do que Alexander Pushkin. O poeta russo escreveu em 1830 a peça de teatro Mozart e Salieri, que por sua vez passou a ópera em 1898 pela mão do também russo Nikolai Rimsky-Korsakov. A peça foi um sucesso, o mal ficou feito e não houve mais volta a dar. |
Ao recomendar o filme Amadeus, dei-me conta de que estava, na verdade, a sugerir que se deleitassem com uma fabricação. Toda a relação estabelecida entre os dois compositores é largamente ficcional, coisa que só nos dá mais prazer enquanto espectadores, pois configura uma história excelente e cheia de detalhes coloridos. Nisto, lembrei-me de um dos maiores hoaxes da música clássica, ocorrido em finais do século XX e envolvendo o compositor Franz Joseph Haydn. |
Em 1993 o mundo da musicologia celebrou aquilo que parecia ser a descoberta do século: o aparecimento de seis sonatas para piano compostas por Haydn, de cuja existência havia registo mas cujos manuscritos se tinham perdido para sempre desde finais do século XVIII. A demanda por obras de arte desaparecidas é um dos temas mais fascinantes e é transversal a todas as artes, da pintura à música, e por essa razão esta descoberta foi acolhida com júbilo e estupor. |
Eis que, em Dezembro desse ano de 1993, o musicólogo HC Robbins Landon, maior especialista no estudo da obra de Haydn, anuncia que foram localizados os manuscritos destas seis sonatas. Tinha recebido, enviadas de Viena, depois de muitas curvas e contracurvas na história, as fotocópias dos manuscritos. Prontamente estudadas, foram validadas pelo musicólogo como sendo não apenas autênticas obras de Haydn, mas verdadeiras obras-primas. |
No entanto, a comunidade académica exigia o estudo dos manuscritos originais, que também não tardou. E foi só quando Stephen Lowe, especialista em manuscritos na leiloeira Sotheby’s, deu o alarme, que a tinta estalou. O papel, levado a laboratório, provou datar pelo menos de 1805, sendo possível traçar o seu caminho através de inscrições autênticas espalhadas pelas páginas, levando-o a Itália e à biblioteca particular de um bispo. Até aqui, tudo coerente. A caligrafia parecia ser mais parecida com a forma de escrever do período barroco do que do período clássico, mas ainda assim, era possível que fosse apenas a mão démodé de um copista, visto que era comum Haydn ver as suas composições serem passadas a limpo por copistas. O verdadeiro trigger para o olhar atento de Lowe foi o facto de a escrita ter sido realizada não com uma pena, mas através de uma caneta com bico de aço, prática que só viria a implementar-se muitos anos mais tarde, quando Haydn já estava morto e enterrado. |
Assim, depois da surpresa, veio a decepção: as maravilhosas seis sonatas desaparecidas eram afinal um fake. Mas quem se daria a tamanho trabalho, ao ponto de encontrar papel de época, imitando uma caligrafia antiga e, mais do que tudo, escrevendo seis sonatas ao estilo de Haydn, não apenas convincentes, mas inspiradas ao ponto de fazerem Robbins Landon proclamá-las obras-primas e levando a que o aclamado pianista Paul Badura-Skoda se apressasse a gravá-las em disco? Como era possível que alguém tivesse não apenas o tempo livre e os meios para tal, mas também o génio para uma empresa semelhante? |
A resposta não tardou a chegar e só foi preciso rastrear a história das fotocópias. O pianista Badura-Skoda afirmou tê-las recebido de um flautista e compositor da cidade de Münster, que garantia ter encontrado aqueles papéis por entre a colecção de uma senhora octogenária que, claramente, não fazia ideia do que ali tinha. Este flautista chamava-se Winfried Michel e veio a revelar-se o autor das falsificações. Ou melhor, das invenções. |
A descoberta levantou questões fundamentais, corroboradas pelo próprio Robbins Landon após ser desmascarada a autoria das sonatas: afinal, se a música é boa, o que interessa se é de Haydn ou de Michel? Quem confere valor à música é a autoria ou o seu conteúdo musical? Temas como este são repetidamente levantados de cada vez que se desmascara uma falsificação, seja em que arte for. |
O mais provável é que Michel, para além do seu enorme talento para forjar música ao estilo de duzentos anos antes, tivesse agido encorajado por anos pontuados por descobertas sensacionais de manuscritos perdidos:
– Em Setembro de 1993 tinha surgido, em Devon, um caderno com manuscritos de Henry Purcell que continha música para instrumentos de tecla que nem se sabia que o compositor seiscentista alguma vez tinha escrito;
– Dois anos antes, no coro alto de uma igreja em Antuérpia, fora descoberto um cartapácio que continha nada mais nada menos do que a partitura manuscrita da Missa Solene de Hector Berlioz, que o próprio compositor afirmara ter destruído após a sua estreia, no final da década de 1820;
– Outra, ocorrida também uns anos antes, tinha feito surgir na Austrália (!) um conjunto de quartetos para cordas de Haydn, perdidos há mais de duzentos anos.
Todas estas descobertas eram autênticas e o seu valor de mercado extravagante. É fácil compreender o porquê de tanto trabalho. |
Dito isto, quem não se lembra das histórias recentes, como a de um Caravaggio que apareceu no radar em Espanha em 2021, que o governo espanhol declarou tesouro nacional ainda antes que este pudesse ser leiloado pelos seus donos atónitos e levado para fora do país? Ou, em 2019, quando um outro Caravaggio surgiu por debaixo de um velho colchão num sótão na cidade de Toulouse. De repente, toda a gente cujas avós têm sótãos poeirentos pensou duas vezes. E não foi sem razão: passados poucos meses, eis que a cozinha de uma nonagenária nos arredores de Paris produzia um Cimabue, pintura da década de 1280, objecto cuja importância e raridade escuso de comentar. O valor de martelo foi de 24 milhões de euros, num leilão irrepetível. |
Moral da história: razões não faltam para vasculharem melhor a papelada e os arquivos dos vossos avós, pois entre obras forjadas e obras perdidas, ainda há muito por encontrar. |
Sugestões |
Além de fazerem buscas domésticas à procura de manuscritos perdidos, sugiro que se deleitem com dois exemplos de música forjada, que só em tempos relativamente recentes viu revelada a sua verdadeira natureza: |
O famoso Adagio de Albinoni, obra favorita de muita gente, gravada e re-gravada pelas melhores orquestras do mundo. Na verdade, não é música do compositor barroco Tommaso Albinoni, mas sim de Remo Giazotto, musicólogo do século XX. |
O concerto para violino e orquestra Adélaïde de Mozart, forjado pelo punho do violinista francês do início do século XX, Marius Casadesus. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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