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Da clássica à pop: quando a substituição era (é) mais rentável do que a longevidade |
Na sexta-feira passada, ao fim da tarde, apeei-me na estação do Oriente, em Lisboa, saído de um Alfa Pendular vindo de Aveiro. Estava um trânsito de tal forma compacto, com a chuva intensa a transformar a massa de automóveis num labirinto de faróis a perder de vista em todas as direcções, que decidi abrigar-me no Centro Comercial Vasco da Gama enquanto esperava que a hora do apocalipse passasse, para então fazer o meu regresso a casa com calma. |
Lá dentro, dei comigo a caminhar instintivamente rumo à única livraria, leia-se media store, do centro comercial, onde, entre as zonas dedicadas à tecnologia e ao entretenimento há uma parede que mostra aos visitantes quais os livros com vendas mais bem-sucedidas naquele momento. Para minha enorme surpresa, vi que os Evangelhos Apócrifos, na mais recente tradução de Frederico Lourenço, ocupavam o segundo lugar. |
O efeito provocado por este livro, que nos fita com uma imagem de Cristo na capa, não podia ser mais intrigante, relacionando-se com o ambiente à sua volta como se não pertencesse ali, num altar daquele templo da cultura de massas. |
Sei que Frederico Lourenço tem o toque de Midas e recentemente conseguiu proezas semelhantes ao catapultar para os primeiros lugares de vendas outros títulos da sua lavra, como o Latim do Zero ou a Nova Gramática do Latim. Ainda assim, o inesperado encontro com um livro que reúne textos dos primórdios da era cristã, aliado ao seu sucesso comercial, fizeram-me pensar que estes Evangelhos têm de ser considerados, sem sombra de dúvida, um clássico da literatura. De outra forma, não lhes teria sido possível sobreviver ao teste do tempo e estarem ali, hirtos e apetecíveis, oferecendo-se aos leitores em pleno 2022. |
Lembrei-me do Porquê Ler os Clássicos? de Italo Calvino, que abre com catorze premissas que explicam como é que um livro pode ser um clássico. Dou como exemplo a quarta premissa: “De um clássico, toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira”. |
É certamente verdade que estes Evangelhos se revelam a cada releitura. E é verdade também que se lhes aplicam na perfeição as outras treze condições definidas por Calvino, pelo que podemos chamar-lhes, sem risco de nos enganarmos, um conjunto de textos clássicos. |
Nesse momento, é claro, pensei na música clássica, a minha praia. É que esta música tem a palavra clássica no nome, o que em teoria faz dela um clássico à nascença, certo? Errado. |
Não escondo que o termo “música clássica” me dá urticária. Infelizmente, ainda não conheci nenhuma forma melhor para a nomear, mas tenho pela frente várias newsletters em que, aqui e ali, tentarei desmontar o porquê de achar que esta música não é assim tão clássica como a pintamos, ou não se chamasse o meu programa na RTP 2 precisamente Tudo Menos Clássica. |
A ideia de que esta música, tão cheia de história e, por isso, dita clássica, é indiscutivelmente boa e canónica só porque aguentou o teste do tempo é uma falácia. É certo que atravessar os séculos é incrível e a maior parte do ruído cultural e dos fenómenos de sucesso que temos à nossa volta, hate to say it, não irá sobreviver ao teste do tempo. Mas não devemos esquecer que existe má música do passado tal como existe má música no presente, e o simples facto de ser antiga não faz dela boa. |
Uma forma interessante de olhar para este tema é reflectindo no momento em que a música clássica começou a ser “clássica”. Ou melhor, quando os ouvintes começaram a sentir a necessidade de distinguir uma certa qualidade de música como sendo clássica, por oposição a outra, que seria de qualidade inferior. |
Esse acontecimento deu-se de forma gradual pelos meados do século XIX, quando os públicos mais educados, mas também mais conservadores, começaram a preferir a música escrita no passado à que se compunha nos seus dias. Aconteceu com autores que hoje consideramos canónicos, como Johannes Brahms, que criações suas a que damos um lugar no panteão da história da música fossem consideradas insuficientes em qualidade e destinadas ao esquecimento por quem as ouviu no momento da estreia. Na cidade alemã de Leipzig, onde a imprensa proclamou o fracasso de Brahms, os arquivos das igrejas permitem-nos constatar que a percentagem de música nova que aí se ouvia foi gradualmente baixando entre 1750 e 1850, chegando a um ponto em que quase já só tinha lugar a música escrita por compositores falecidos há décadas ou mesmo séculos. |
No momento em que se chegou a esse paradigma, pode dizer-se que estava perfeitamente formada a ideia de um repertório clássico, que com o andar dos tempos acabou por se tornar no género da música clássica tal como a conhecemos hoje, que é defendido por orquestras nascidas nesse mesmo período com a missão de defender e honrar o legado dos grandes criadores canónicos do passado, fazendo ocasionais excepções para artistas ainda vivos que tivessem potencial para se tornar clássicos, e que são a matriz de todas as grandes orquestras mundiais dos dias de hoje. |
A Orquestra Filarmónica de Viena, fundada em 1842 ou a Orquestra Filarmónica de Berlim, de 1882, são exemplos perfeitos desse fenómeno. O mesmo se pode dizer dos Conservatórios de Música que, também a partir do século XIX, formaram legiões de solistas treinados para serem guardiões do repertório do passado, dando-lhe a patine de ser revisitado, tocado e interpretado por incontáveis gerações de músicos. E assim se cumpre a quarta premissa de Italo Calvino. |
Porém, ao recuarmos a um tempo anterior, encontramos uma situação completamente diferente. É aqui que a história da música conta uma coisa, enquanto que a história da escuta conta algo completamente diferente. |
Olhemos para Veneza, que foi um dos mais importantes centros de produção cultural do mundo ocidental no passado. |
Ao longo do século XVII, esta cidade, que tem uma área de aproximadamente 11 km² (mais ou menos o tamanho do centro de Viseu), viu nascer mais de 15 teatros de ópera, tendo o primeiro deles todos surgido em 1637. |
Não há dúvida de que a ópera se tornou rapidamente num género formidavelmente popular, e muitos destes teatros pertenciam a nobres, que os construíam e depois alugavam – reservando, é claro, alguns camarotes para as suas famílias – por uma ou mais temporadas a alguém que gerisse o teatro. Os arrendatários tinham a designação de impresario e ocupavam-se de constituir uma equipa artística que incluía compositor, libretista, cantores (as prime donne e os primi uomini, geralmente castrati), músicos, bailarinos, cenógrafos e tudo o mais que fosse necessário para manter o teatro em pleno funcionamento todos os dias do ano excepto durante a Quaresma, período em que não era permitida a representação de quaisquer espectáculos. |
Estes teatros cobravam bilhetes ao público geral e eram projectos inteiramente destinados ao lucro, que tanto tinham enormes sucessos como retumbantes fracassos e facilmente levavam à fama ou à falência quem estava envolvido no negócio da ópera. |
No fundo, a abundância, a rapidez e a volatilidade que caracterizavam a produção de ópera em Veneza no século XVII não eram diferentes do funcionamento da música pop de hoje em dia, em que os artistas e as suas músicas se sucedem com uma cadência extraordinária, a maior parte estando destinada ao consumo imediato e subsequente esquecimento, não havendo sequer uma intenção de durabilidade, uma vez que a substituição é mais rentável do que a longevidade. |
Em suma, ontem como hoje. |
Perante isto, e de acordo com a história da escuta da música, podemos concluir que a maior parte da produção de ópera veneziana era um produto pop, para consumo no momento, em que cada novo título se parecia com o anterior na busca do sucesso comercial, sendo concebido de acordo com os padrões da moda no momento. Em cada temporada esperavam-se novidades e só em raríssimas ocasiões é que algum impresario ousava colocar em cena, na mesma cidade, uma ópera já conhecida do público de temporadas anteriores. |
No entanto, de acordo com a história da música canónica, estas óperas são um produto da música barroca e merecem por isso ser preservadas, estudadas e interpretadas reiteradas vezes. São clássicos, nada a fazer. Eis como alguns títulos de ópera ocupam o seu lugar no repertório dos teatros do mundo inteiro, temporada após temporada, num exercício previsível e rotineiro, conceito que faria desmaiar qualquer impresario do século XVII. |
No fundo, o primeiro passo fundamental para entender como é que a música clássica chega a ser clássica, é compreender o momento em que o público passa a preferir a música do passado em detrimento da música do presente. E esse é também o primeiro passo para compreender que esta música nem sempre foi assim tão clássica. |
Na próxima newsletter darei continuidade a este tema. Antes disso, ficam algumas sugestões para esta semana. |
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Na próxima sexta-feira dá-se um concerto com o seu quê de insólito mas que se inscreve numa longa tradição da música clássica: subirá ao palco do Grande Auditório a pianista russa Alexandra Dovgan, que tem a idade de quinze anos cumpridos este ano.
A virtuosa adolescente inscreve-se numa linhagem de crianças-prodígio (Mozart, Liszt, Chopin…) que mostram que, mais que não seja pela sua idade, esta música sempre tem qualquer coisa de jovem. O programa conclui-se com Brahms, o que também vem bem a propósito desta conversa. |
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Para contraste com este concerto, e a propósito da música dos nossos dias versus a música do passado, marquem na agenda o dia 31 de Outubro. Em Coimbra, a Orquestra Clássica do Centro dará a ouvir a estreia de obras de Ana Seara, Ana Roque e Ruben Dias num concerto dedicado ao tema dos refugiados e prestando tributo ao cônsul Aristides de Sousa Mendes. |
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Como sugestão literária e porque também é um excelente ponto de partida no jogo do novo-ou-velho, deixo a dica deste livro de Haruki Murakami, em que o autor conversa com o maestro veterano japonês Seiji Ozawa. É uma forma de entender como as coisas mudaram – ou não – nas últimas décadas no business da música clássica. Se estiverem cansados de me ler, saltem o prefácio, porque é da minha autoria. A tradução, como não podia deixar de ser, é da Maria João Lourenço.
(ed. Casa das Letras) |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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