Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Pode subscrever a newsletter aqui. Faça aqui a sua assinatura para assegurar que recebe também as próximas edições. | Ajudar os filhos, ajudar os pais: quando estamos a meio caminho | Quando se fala na crise dos 40, creio que algumas pessoas interpretam mal a coisa. Acham que depois de soprarem as velas (ou apagarem com a mão, nestes tempos pós-Covid) começam de imediato as crises: existencial, física, mental. Quase como uma metáfora: a luz das velas apaga-se e… pufff, apaga-se a luz da vida. O problema é que não. Não é logo. Ou melhor, não tem de ser logo. E, por isso, como vão ao engano, esperando hecatombes que tardam em chegar, principiam a contentar-se pensando: “Ah, olha, afinal isto não é assim tão mau. Os 40 são os novos 30, bem me diziam alguns!” (são os otimistas inveterados, cuidado com eles, não são de fiar). | Pois. Mas é esperar. A crise pode tardar, mas em princípio não falha. Com efeito, os 40 trazem consigo uma série de novos desafios que podem ser dos mais complexos da nossa vida. E nem sempre estamos preparados para tamanho embate, sobretudo se tivermos questões por resolver lá para trás. É que é quando os alicerces são frágeis, um abanão como o que os quarentas (e cinquentas, vá) proporcionam, pode mesmo deitar tudo abaixo. | Quando fiz 40, preparei-me. Caramba, passei a vida a ouvir falar dessa idade como uma espécie de fronteira entre a vida e uma espécie de antecâmara, não de morte (que, convenhamos, é cedo), mas de uma outra espécie de existência. Mais sofrida, cheia de questões, pequenos e grandes dramas. Avisei o meu marido de que qualquer tentativa de comprar um descapotável seria olhada com desconfiança (quando vejo um quarentão de descapotável penso logo “coitado, crise da meia-idade, onde andará a loira platinada para sentar no lugar do pendura?”), e temi o pior. | Mas sentia-me bem. Tive o meu quarto filho já com 41, corri uma maratona logo depois (claramente o meu sinónimo de “carro descapotável” – uma forma de gritar ao mundo: estou mais viva do que nunca), não arranjei um amante (calha que gosto mesmo deste que aqui tenho em casa), mas fiz uma abdominoplastia para corrigir excessos da vida e de quatro cesarianas que teimavam em não sumir mesmo com perda de peso, exercício desenfreado e orações confrangidas à Santa Six Pack dos aflitos. Por sorte, o meu marido não comprou um descapotável nem arranjou a loira espampanante para sentar ao lado. Em suma, tudo seguia o seu rumo e os 40 começaram a parecer-me apenas mais um número, como os outros. | Uns dois anos depois, um amigo de infância falhou um jantar importante por “questões de saúde”. Liguei-lhe: tinha um cancro no pâncreas. Estava otimista, combativo, mas eu desliguei a chamada e fiquei num canto. Como assim? A minha idade, uma vida inteira pela frente. Uma filha pré-adolescente. Como assim? | O Tiago morreu três ou quatro meses depois. Ver os meus amigos de infância carregarem o caixão com o outro amigo de sempre lá dentro destruiu qualquer coisa aqui. Afinal era mesmo verdade: os 40 traziam consigo algo de ruim. Mal sabia eu o que ainda aí vinha. | Um ano depois, o meu grande amigo e padrinho profissional e padrinho de casamento, Pedro Rolo Duarte, falhou a minha festa de aniversário. A explicação veio por mensagem, com o tom despreocupado que costumava pôr mesmo nas situações mais sérias: “Vou estar a convalescer aqui de um exame aos pulmões e não devo estar capaz.” Fiquei de coração nas mãos. | Os meses que se seguiram foram os piores da minha vida. O Pedro tinha um cancro de pulmão em estadio IV, com metástases. Acompanhar todo o processo de perto fez-me literalmente soçobrar. Fui-me abaixo como não sabia que era possível, eu que sempre cantei aos quatro ventos que resolvia muito bem os meus problemas, e que “não tinha tempo para neuras e depressões”. Há que dar um desconto… se fosse esperta estava para aí na NASA ou assim. | O certo é que, ao ver que eu não saía da cama e que não fazia mais do que chorar, uma boa amiga me encaminhou para a psicoterapia. E foi graças a esse acompanhamento que consegui encontrar um caminho, por entre o total nevoeiro em que me encontrava. Lembro-me de sentir que a vida não tinha sentido, que a partir daquela fase tudo era doença e morte, envelhecimento e partida dos filhos para as suas vidas, cansaços e maleitas, e que talvez não valesse muito a pena acordar de manhã. | Foi preciso encontrar outras causas para a derrocada, que apesar de ter sido espoletada por aquelas duas perdas, tinha outras origens mais profundas. Jean Paul-Sartre disse uma das frases que maior ressonância teve em mim: “Nós não somos o que fizeram de nós, somos o que fazemos com o que fizeram de nós”. E é, geralmente, nos momentos de crise, que temos de dar a volta e por vezes apenas reinterpretar o que fizeram de nós, para fazermos coisas melhores a partir desse passado, a partir dessa construção primeva. Há quem consiga sozinho. Há quem precise de ajuda, e não tem mal nenhum. | Dois dias depois da perda do Pedro, uma amiga ligou-me em pranto: o marido, um querido amigo, tinha exatamente a mesma doença: cancro de pulmão. O mesmo estadio. Tinha 44 anos, cinco filhos, a mais nova com dois meses. Morreu menos de dois anos depois. E dois meses após a sua morte, foi a vez de o cancro (desta vez de mama) bater à porta da minha mãe. Lembro-me de olhar para cima (para Deus, para o Universo, para algures) e perguntar: “Mais alguma coisa?” | Nessa altura, tive um convite profissional interessante, que declinei porque quis acompanhar a minha mãe em todos os tratamentos. E assim foi. Dias inteiros passados no Hospital de Santa Maria, horas nas salas de espera, horas a ver aquele líquido cor-de-laranja fluorescente a entrar-lhe para as veias (e a queimar algumas). Quando o cabelo começou a cair, fui eu que lho fui rapar com uma lâmina, dizendo parvoíces para a fazer rir, mas sentindo as pernas fraquejar da emoção de tudo aquilo. Também fomos juntas comprar uma peruca, uma que lhe ficasse mesmo bem e que a fizesse sentir-se menos deprimida pela ausência de cabelo. | Entretanto, a minha mãe ficou mesmo doente. Achámos que era efeito da quimioterapia. Deixou de conseguir comer. Comprei-lhe Fortimel, que ia obrigá-la a tomar. Como vive sozinha, era preciso estar permanentemente alerta. Estava tão fraca que empurrar os lençóis quando tinha calor ou puxá-los quando sentia frio era como correr uma maratona. Zanguei-me com ela muitas vezes, para a forçar a comer e, pela primeira vez, senti que os papeis se tinham invertido: ali estava eu, filha, a cuidar daquela que sempre cuidou de mim. Obrigada, quarentas. | No dia em que fomos à consulta para saber o resultado dos exames que mostrariam se havia ou não metástases no corpo, toda eu tremia. Mas sempre a disfarçar e a usar o humor como arma. Comprei uma camisola com um “Fuck Cancer” bordado que fez as delícias de todos naquele andar, porque todos estavam na mesma luta. No consultório, o médico disse as palavras mágicas “Não há metástases” (que me fez dar um gritinho de alegria perante o olhar sem reacção da minha débil mãe), seguido de um “Mas vamos ter de a internar porque tem uma pneumonite, uma condição que pode surgir como efeito da quimioterapia, e está em absoluto défice de oxigénio”. Nunca tinha passado da alegria ao desespero em tão pouco tempo. Foi mais ou menos como chegar ao pico depois de uma escalada, ver a vista sublime, e despencar dali abaixo aos trambolhões. | Em menos de nada, a minha mãe estava numa maca, com uma máscara de oxigénio a cobrir nariz e boca, e uma enfermeira entregava-me “os pertences” dela dentro de um saco de plástico. Fiquei a ver a maca afastar-se pelo corredor, não sem antes ouvir da parte dela o pedido (sempre pragmática, a minha querida mãe): “Quando deixares as coisas lá em casa, põe a peruca direitinha para não se estragar”. Tudo aquilo foi dolorosamente cinematográfico. E culminou comigo, sozinha na casa dela, a colocar a peruca num abat-jour que permitia que mantivesse a forma redonda e, metaforicamente, era como se permitisse que a luz dela se mantivesse acesa. | Felizmente, a mãe safou-se. Esteve 15 dias internada, e mal, sem visitas (tinham permitido acompanhá-la nos tratamentos mas em internamento era expressamente proibido porque estávamos em plena pandemia), e foi tudo bastante pesado, ainda mais depois de ter passado por três mortes recentes, todas por culpa do cancro | Toda esta sucessão de acontecimentos deu-se ao mesmo tempo que a vida seguia o seu rumo. Havia filhos para acompanhar, afazeres profissionais, pagamentos, chatices, alegrias, família, amigos. Foi desafiante tentar que a perspetiva negra que comecei a ter da vida não contaminasse tudo e, principalmente, que não contagiasse os miúdos. Ainda assim, e porque não suporto viver uma existência de faz de conta nem que eles cresçam sem lidar com a realidade, por mais dura que seja, fui contando algumas coisas, até para que eles entendessem que, por vezes, o meu humor não estivesse tão luminoso. | Os quarenta podem trazer, de facto, novos desafios. Os nossos filhos ainda não são autónomos e, simultaneamente, os nossos pais começam a adoecer ou a envelhecer de forma muito visível. A precisarem de nós de um modo que traz ao de cima fragilidades antigas. De certa maneira, há um lado infantil que se parte quando começamos a ter de cuidar dos nossos pais. Julgo que alguns de nós só aí atinjam a efetiva maioridade. Quando desaparecem da nossa vida, deixam crateras na nossa edificação, que até podem ser disfarçadas com uma espécie de pladur, mas que nunca mais nos deixarão com a mesma solidez. | E depois há os amigos que morrem cedo demais. E o medo que sentimos por sermos os próximos na linha – como se nos estivessem a empurrar, devagarinho, para o precipício. Acho que quase todos acabamos a fazer um balanço do que já vivemos e do que ainda queremos viver. Do que julgávamos conquistar e do que realmente conquistámos. | E talvez seja isso que motiva tantas separações e despedimentos e novos voos – se o balanço não for positivo, muitas pessoas, dando-se conta da sua finitude, optam por mudar de vida (e bem). Por outro lado, as mulheres começam a ter os primeiros sinais da menopausa (tema que irei trazer a uma outra newsletter), o que também representa um desafio para elas e para toda a família. | Enfim. Digamos que há idades melhores (e piores também). Até ver, e feita a contabilidade toda, diria que os quarenta têm sido os anos mais interessantes do ponto de vista de autoconhecimento. Sempre tive esta ideia de que só na adversidade nos conhecemos verdadeiramente, e acho que têm sido tempos de profunda introspeção. | O balanço? Muito positivo, sem dúvida, apesar dos pesares. Por isso, se está longe desta idade e leu esta newsletter com um nó na garganta, saiba que é possível passar por tudo isto e ainda dizer que foi bom. A vida é um pouco como o parto – sofremos, ultrapassamos, e acabamos a querer mais. | Vale a pena… | | Não é de agora, de todo, mas é um livro de sempre, inesquecível, sobre a vida do médico Hector Abad Gómez, pai do autor do livro (o escritor e jornalista colombiano Hector Abad Faciolince), que dedicou a vida à defesa dos direitos humanos. Acabou, de resto, assassinado em Medellin por se meter em assuntos incómodos. É uma recordação belíssima de um pai amoroso, encantador, e de uma vida familiar com os seus altos e baixos. Uma história de amor do princípio ao fim.
(ed. Quetzal) | | Outro livro imperdível sobre o envelhecimento e a morte de um pai e de como todo o processo nos marca de forma indelével. Escrito por Philip Roth, relata a beleza da relação entre um filho e um pai, quando este descobre que tem um cancro, o acompanhamento, as decisões, a dor da antecipação, a dignidade, a dor da concretização, a felicidade do que se construiu, a emoção que se sente do princípio ao fim. Belíssimo.
(ed. D. Quixote) | Visitar a exposição Evilution, de Bordalo II | Vale mesmo a pena ver as obras deste artista urbano português, que cria com lixo e desperdício e, assim, nos alerta para a emergência climática a partir da beleza e da arte. Está patente ao público no Edu Hub, nos Olivais, em Lisboa, entre as 14h00 e as 20h00, até 11 de dezembro. A entrada é gratuita. | Ir ao concerto O Circo de Feras, dos Xutos & Pontapés | Se tem 40 ou 50 anos sabe como o disco Circo de Feras, editado em 1987, foi uma pedrada no charco e transformou os Xutos numa banda de dimensão nacional. Passaram 35 anos e agora podem ir sozinhos ou levar os vossos filhos a assistir a esta série de concertos (de 2 a 5 de Novembro) que vão reviver tempos idos e mostrar a vivacidade do grupo, tanto tempo depois (a mostrar que estão aí para as curvas, como, de resto, nós, os que vivem, já ultrapassaram ou ainda vão viver a tal crise da meia-idade). Além de Tim, João Cabeleira, Kalú e Gui, conta com a presença de Tó Trips como convidado especial. | Gostou desta newsletter? Tem sugestões e histórias que quer partilhar? Escreva-me para smsantos@observador.pt. Pode subscrever a newsletter “Coisas de Família” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. | Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. | |
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