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Bullying: como é que isto aconteceu durante tanto tempo e eu não reparei? |
Podia não ter acontecido. Geralmente, quando vejo nódoas negras num dos meus filhos, e não havendo outros sinais de alerta, tendo a achar que estão a ter uma infância saudável: jogam à bola, brincam uns com os outros, empoleiram-se em muros e árvores, caem, enfim, tudo o que prefiro que façam em vez de simplesmente estarem alapados a olhar para um ecrã, correndo porventura maiores riscos (sem querer parecer uma velha do Restelo, porém já parecendo). |
Podia não ter acontecido, mas naquela noite, aquela perna chamou-me a atenção. Não soou de imediato nenhum alarme, mas levou-me a exclamar um: “Eh lá, isto tudo é de quê?” (até porque o rapaz não é propriamente um craque da bola, o que justificaria sem margem para dúvidas a profusão de “medalhas” nas canelas). A resposta do meu filho mais novo deixou-me inquieta. “Ah, isso deve ser de fugir da B. Ou então é dos pontapés que ela me dá.” |
Como assim? E foi então que ele começou a desfiar o novelo. Devagarinho, primeiro; depois com avidez, como se tivesse pressa de se ver livre dos nós daquela meada. |
Na verdade, ele já me tinha falado da B. no início do ano letivo, essa miúda dois anos mais velha, que o perseguia, a ele e a mais dois amigos. Mas o ano estava a começar, ele contou o episódio com leveza e a rir, e eu não liguei muito. Minto. Não liguei nada. Afinal, a escola é o território por excelência dos jogos de poder, da busca por um sentimento de pertença (umas vezes mais fácil, outras vezes mais árduo), da aprendizagem dessa hierarquia entre uns e outros, mais velhos, mais novos, mais desenrascados, mais tímidos, mais fortes, mais fracos. É tramado, mas é a vida. Um espelho da nossa sociedade. No fundo, uma espécie de ensaio infantil sobre o que aí vem. |
É (também) por isso que prefiro a escola ao homeschooling. Acho que se aprende muito nos recreios e não só nas salas de aula. São matérias diferentes, mas, sem dúvida, importantes, apesar de não serem transmitidas pelos professores (é apenas a minha opinião, homeschooling lovers, vale o que vale – um dia talvez volte a este assunto, para investigar mais e, sobretudo, para trazer o contraditório, que é sempre o que mais nos enriquece). |
Voltando ao tema de hoje: pelo relato, o meu mais novo andava então, há um ano letivo inteirinho, a apanhar de uma miúda mais velha e suas compinchas, sem que nunca nada me tenha sido relatado pela escola, ou pelo próprio. Quando questionei os outros pais, todos foram apanhados de surpresa, mesmo os das outras “vítimas”, mas quando começaram a perguntar aos seus filhos, todos sabiam da história. “Sim, sim, esses miúdos andam sempre a apanhar ou a fugir”. |
Geralmente, a primeira coisa que acontece a uma mãe (só posso falar pela mãe pela contingência anatómica de não me ser possível ser um pai) é sentir culpa. Como é que eu não vi? Como me escapou isto? Porque é que ele não me contou? O que raio falhou aqui? |
Em primeiro lugar, poderá efetivamente ter havido uma falha minha, no sentido em que, de tanto fugir de ser a mãe histérica, que vê gravidade e drama em todos as queixas do seu filho-cristal (tema sobre o qual já escrevi aqui), de tanto fugir de ser essa mãe extremosa e extremada, pode bem acontecer-me o mergulho no extremo oposto. Não me definiria como negligente, mas reconheço que tendo a dar um desconto nas queixas dos miúdos, pelo menos até elas serem suficientemente repetidas, ou inequivocamente dramáticas. |
De resto, também acho fundamental separar o trigo do joio, quando enchemos a boca para falar de bullying. O que sinto é que, hoje, tudo é bullying. A ideia que dá é que, às tantas, e salvo o exagero, se um miúdo chama “parvo” a outro no recreio corre o risco de ter a CPCJ à porta. Por vezes, acho que podem mesmo ser só “coisas de miúdos”. Esboços de relações de poder, em que é importante que uns e outros saibam enquadrar-se e defender-se, desde que – obviamente – não se ultrapassem certas linhas (de que a violência, seja de que tipo for, será a pedra basilar). |
Não se trata de desvalorizar uma situação de tamanha gravidade. Na verdade, é o contrário disso. Porque generalizar pode conduzir a uma vulgarização, e todos sabemos que o que é vulgar não tem muito lugar na discussão pública, nem é alvo de análises e intervenções incisivas, como o verdadeiro bullying deve ser. |
A fronteira entre o que é e o que não é poderá ser ténue, mas no caso concreto do meu caçula, julgo que um ano de empurrões, pontapés e perseguições será suficiente para o enquadrar na terminologia. |
Depois de alertada a escola, a criança foi chamada para uma conversa com os agredidos, mediada pelas professoras de cada lado, terá pedido desculpa, e agora é esperar que tudo termine bem. Quero acreditar que sim. Mas penso sempre no que leva uma criança a agredir outra. O que a levou até ali? Que vida é a sua? O que esconde essa sua violência? Por muito que a B. não me tenha, numa primeira instância, inspirado assim muita simpatia, nem uma grande vontade de a convidar para chá e bolinhos, foi inevitável, num segundo momento, refletir sobre o eventual nível de sofrimento a que pudesse estar sujeita para se tornar uma pequena tirana. |
Outra questão que sempre se me levanta, quando me deparo com relatos de bullying é: e os pais destes miúdos? Quando postos perante o problema, o que fazem? Reconhecem que podem ter ali um agressor e vão tentar entender as causas, ou negam a pés juntos, porque – lá está – o seu filho-de-perfeito-cristal jamais seria capaz de tamanha crueldade? |
No outro dia, uma mãe de um colega de outro dos meus filhos desabafou no grupo de Whatsapp (ah, os grupos de pais no Whatsapp, que belo tema para um destes dias) que o seu filho tinha – de novo – sido vítima de colegas. Dessa vez tinham-lhe posto a mochila na retrete e puxado o autoclismo. A primeira coisa que pensei foi “que horror, coitado deste miúdo”. A segunda: “E se foi a minha filha?”. |
Agora que escrevo sobre isto, dou por mim a pensar que sou mais rápida a temer que os meus filhos possam fazer bullying do que a suspeitar que possam ser vítimas. Não fico confortável com a constatação, confesso, e cumpre-me esclarecer (para repor qualquer equívoco), que nenhum deles me deu razões para esta inquietação. Creio que o que está subjacente a isto é apenas e só o medo de poder ser mãe de um agressor, e de todas as questões que se hão-de levantar perante essa constatação: onde é que falhei? O que podia ter feito? Como é que o ponho na ordem agora? Ainda há solução ou está perdido para sempre? |
Acontece-me muito quando vejo notícias de massacres em escolas. Solidarizo-me – é claro – com as vítimas, com os pais que perdem filhos, os familiares de professores e funcionários que são brutalmente assassinados, mas, no instante seguinte, a minha angústia dirige-se inevitavelmente para os pais do homicida. Seriam atentos? Uma família estruturada? Haveria amor? Valores? No fundo, todas estas questões desaguam na arrepiante pergunta: podíamos ser nós? |
Para os que possam fazer a si próprios estas mesmas questões, há uma TED Talk que não podem perder: o de Sue Klebold, mãe de um dos atiradores do massacre de Columbine, em 1999, que matou 12 estudantes e um professor e de seguida cometeu suicídio. Antes de verem, fica o aviso: não nos tranquiliza minimamente. Ver aquela mãe que parece tão diferenciada, articulada, cuidadosa, “normal”, deixa-nos ainda mais inseguros quanto ao que pode passar-se na cabeça dos nossos filhos, e que nós nem sequer imaginamos. |
Este salto para os (repetidos) massacres nos Estados Unidos poderá porventura ser excessivo. E será, na medida em que, felizmente, por cá não existe o livre acesso a armas como por lá. Mas só mesmo nessa medida. Porque o número de casos de bullying parece estar a aumentar, bem como o registo de casos de depressão entre os jovens. Segundo a Organização Mundial da Saúde, os casos de ansiedade e depressão aumentaram 25% em todo o mundo, sendo os jovens os mais afectados. De resto, em Portugal estima-se que um em cada dois jovens em idade escolar esteja em sofrimento psicológico. Ou seja, 50% de toda a comunidade escolar. Se isto não é preocupante, então não sei o que possa ser. |
Não sei se hoje há mais bullying ou se apenas falamos mais sobre o assunto. Acho que, se formos remexer nos baús da nossa memória, todos nos lembramos de alguém que foi achincalhado por ser menos social, por ter uma particularidade física qualquer (gordo, magro, por ter óculos, ser ruivo, ter sardas), ou por não ser bom nos desportos. É daquelas coisas que sempre existiu, só não tinha um nome. |
Por outro lado, hoje parece-me ser mais comum, mas também mais violento. Não só fisicamente mas também pela questão do cyberbullying, que gostava de deixar para outro dia, por ser tão particular (e potencialmente destrutivo) que merece uma newsletter inteirinha. A UNICEF também já sublinhou a sua preocupação, com base nos resultados de um estudo em que se lê que 46% dos jovens portugueses (entre os 13 e os 15 anos) afirmam ter sofrido ou ter estado envolvidos em situações de bullying no ano anterior. |
Em suma, e porque a prosa já vai longa, o meu filho mais novo não está sozinho. As canelas negras e aquele silêncio sofrido estão a acontecer, neste preciso momento, em milhares de outras casas portuguesas. Assim como a B. não está sozinha. O comportamento agressivo, a demonstração de poder sobre os mais fracos, é o prato do dia em muitas escolas de todo o país. Nada disto me serve de consolo. Pelo contrário. Acho que todas as reflexões que temos feito sobre o assunto são ainda poucas para compreendermos as causas e as consequências de um fenómeno que pode bem dizer muito sobre quem somos. E, sobretudo, sobre quem queremos ser. |
Vale a pena… |
Ler um livro sobre o tema desta semana: Diz Não ao Bullying |
É uma história infantil, da autorai de Luís Fernandes e Sónia Seixas, mas foi escrita também com o objetivo de alertar pais, professores e técnicos para este fenómeno e para as questões circundantes: gestão de conflitos, empatia, resiliência, comunicação. E, sobretudo, a denúncia que deve ser feita, porque o silêncio da vítima acaba sempre por ser a maior arma de quem agride.
(ed. Plátano) |
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Numa altura em que vivemos uma guerra na Europa, este livro sobre a Primeira Guerra Mundial, ilustrado por David Litchfield e escrito por David Almond, autor bestseller internacional de O Rapaz que Nadava com as Piranhas, vencedor da Carnegie Medal, faz ainda mais sentido. John é só uma criança, como pode estar em guerra? Mas o professor diz-lhe que sim, que as crianças alemãs são suas inimigas. E ele sabe que o pai luta nas trincheiras e a mãe trabalha na fábrica de munições. Um dia, John tem um encontro improvável com um rapaz alemão… e se desse encontro pudessem nascer as sementes da paz?
(ed. Presença) |
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Uma feira de sustentabilidade, com showcooking, uma grande conferência sobre o tema e sem esquecer o Veganário Kids, com um programa inteirinho para os mais pequenos: leitura, workshops, e atividades científicas, e divertidas. Tudo para nos alertar para a urgência de proteger o ambiente. Dias 1 e 2 de Outubro, no ISEL (Instituto Superior de Engenharia de Lisboa). A entrada é grátis |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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