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É oficial: tirei o meu filho do colégio e matriculei-o no ensino público. Será que fiz bem? |
Calma, não é a hecatombe. Os dias felizes no “ninho” do privado podem continuar igualmente felizes na escola pública. Por vezes, até mais. Não é por largar uma pequena fortuna todos os anos numa instituição que ela tem de ser perfeita. Assim como o contrário também não é válido (se bem que, pensando melhor, também para o ensino público largamos uma pequena fortuna todos os anos, em impostos). Adiante. Agora que a decisão está tomada, é tempo de ir de férias de consciência tranquila. Esta newsletter pretende ter esse efeito apaziguador. Vamos ver se consigo |
Quando sugeri este tema ao coordenador das newsletters do Observador, ele riu-se. “Sempre andei em escolas públicas e as minhas filhas também. Nem percebo muito bem esta questão.” Pois é. Mas ela existe. Existe, em primeiro lugar, para quem sempre frequentou colégios. De repente, tirar um filho do privado equivale a um fracasso. “Os meus pais deram-me mais do que estou a dar aos meus filhos. Que espécie de falhada sou eu?” |
Ponto prévio: um colégio não tem de ser mais do que uma escola pública. Há ensino privado muito bom (que o há), mas também há muito colégio de renome do qual já só resta mesmo… o renome. |
Em segundo lugar, e voltando à incompreensão do editor, a questão prende-se também (e no caso de os pais não terem frequentado o privado) com esse movimento de “tirar” um filho dessa bolha protetora que os pais supõem que os colégios são. Por vezes são (e também não é líquido que isso seja uma vantagem para a vida); por vezes não são de todo, mas, como os pais estão a pagar, tendem a acreditar (com todas as suas forças) que sim, ali é que eles estão bem, a salvo de todos os gandulos, de todas as faltas de professores, de todas as agressões de pares, de toda a espécie de consumos, de todo o mal, amén. Nestas coisas, como em tantas outras, há uma ilusão de controlo, e todos sabemos o quanto o ser humano gosta de sentir que controla alguma coisa. Na maior parte das vezes, diria que é uma falácia. |
Sei bem do que falo, porque já fui essa mãe. No dia em que soube que o meu filho mais velho tinha entrado na escola pública, devo ter perdido uns dez anos. Bom, dez talvez seja exagero. Cinco, vá. Fiquei numa angústia tal que, retrospetivamente (agora que já passaram uns largos anos), parecia que o estava a mandar para a Kharkiv dos dias de hoje (podia tentar lembrar-me de um lugar no globo a ser esmagado na época, mas tinha de fazer umas contas e sou péssima a matemática). |
A verdade é que, de repente, senti-me má mãe. Por um lado, porque — lá está — quer eu, quer o pai andámos sempre em colégios e existia essa sensação de estar a dar menos do que o que nos foi dado. Ora, numa perspetiva darwinista, digamos que a nossa evolução não estava a ser grande coisa. Por outro, porque tinha do ensino público a visão do que salta para as parangonas dos jornais: professores não colocados, miúdos sem disciplinas meses a fio, insubordinação nas salas de aula, bullying da pior espécie, falta de auxiliares que controlem os recreios… enfim: um cenário dantesco, para o qual, em bom rigor, poucos pais teriam grande vontade de atirar os filhos. Não há-de ser por acaso que, ao longo dos anos, o número de alunos no ensino privado tem vindo a aumentar. |
Mas depois havia as boas histórias. E essas, geralmente, não passam para as notícias. Histórias de professores que fazem de tudo para não faltar, apesar de estarem a muitos quilómetros de casa; histórias de professores que fazem as vezes de pais quando estes são ausentes ou problemáticos; histórias de alunos que gostam genuinamente de aprender e dão o que têm e o que não têm para quebrar o ciclo de pobreza e disfuncionalidade que é o das suas vidas; e, por fim, histórias de escolas em que tudo corre normalmente, tal como vai correndo em muitos colégios do país. |
Talvez tenha tido sorte. Com os meus filhos, correu sempre tudo dentro dessa normalidade. Lembro-me em particular de uma frase, dita pelo mais velho quando passou do colégio para a escola pública, no 7.º ano, que diz muito sobre esta mudança: “Parece que me abriram uma janela. Agora respiro.” Não acontece naturalmente com todos os colégios, mas naquele em particular (e suponho que em outros), a sensação de “bolha”, ao invés de lhe estar a dar uma sensação de proteção, estava a sufocá-lo. |
Outra das ideias que tinha sobre as escolas públicas era a de que os miúdos eram mais ou menos largados “aos bichos”. Lembro-me de até pensar (não vale rir) que poderiam nem chegar a saber o seu nome, como se fosse um território de ninguém, uma espécie de salve-se quem puder do faroeste. |
Ao fim de um mês estava rendida, em qualquer um dos quatro casos. O diretor de turma do Manel começou a enviar emails com observações sobre o desempenho dele, levantando questões pertinentes (coisa que jamais, em tempo algum, tinha acontecido no colégio), marcou uma reunião para debater algumas questões, e subitamente senti-me mais acompanhada do que alguma vez havia sentido. |
Os meus filhos mais novos, a Madalena e o Mateus, tiveram educadoras no pré-escolar que foram verdadeiras preciosidades. Uma delas (vim a saber) chegou a usar a sua hora de almoço para ir ter com a terapeuta da fala de uma criança, só para receber algumas indicações que pudessem ser úteis e melhorar o seu desempenho em aula. E, depois da pré, coleciono bons exemplos de professores (alguns não tão bons assim, como de resto já acontecia no colégio) e, no geral, de um bom acompanhamento dos miúdos. |
Vamos lá ver uma coisa: esta dicotomia público/privado não pode ser vista a preto-e-branco. E, sobretudo, a decisão não deve ser tomada com base em rankings, esse engodo miserável que serve apenas para salientar ainda mais a clivagem entre desfavorecidos e privilegiados — e, claro, para fazer com que os pais fiquem perfeitamente convictos de que o ensino público é algo que não querem para os seus filhos. Relembro que é impossível uma boa escola pública competir com colégios nas médias de notas, quando tem entre a sua massa de alunos miúdos com situações socioeconómicas que são incomparáveis às dos alunos dos privados. É comparar alhos com bugalhos, a estrada da Beira com a beira da estrada. É só não querer ver o óbvio. Uma escola com um mau lugar no ranking é uma má escola? Não necessariamente. Muitas vezes é mesmo uma excelente escola, a fazer o que pode por miúdos que não tiveram a sorte de nascer em famílias que viajam, vão ao teatro ou jantar fora, e têm coisas como computador e internet, e pais diferenciados que podem ajudar nos estudos, ou pagar explicações. |
A diabolização do ensino público versus o endeusamento do ensino privado é, muitas vezes, um logro. Conheço quem tenha tido filhos a sofrer de bullying durante meses em colégios sem que ninguém tenha dado conta (só para dar um exemplo de algo que os pais julgam não acontecer no privado); mas claro que também já houve alturas em que os meus filhos não tiveram aulas no público porque o professor titular meteu baixa e não havia ninguém para o substituir. E claro que há as escolas que não estão bem equipadas tecnologicamente, ou não têm os campos de futebol, basquete ou críquete que os colégios têm, já para não falar de piscinas olímpicas ou picadeiros. Ainda assim, se pensarmos que o programa curricular proposto pelo Ministério da Educação é igual para todos… talvez cheguemos à conclusão de que não é assim tão diferente ir por um caminho ou por outro. Como sublinhei acima, salvo raras exceções, acho que há por aí muito bom colégio que serve apenas para apaziguar a culpa que alguns pais sentem por não estarem tanto tempo com os miúdos como acham que deviam. E nestas exceções incluo colégios com projetos educativos muito inovadores e fora da caixa, onde, havendo essa folga financeira, compreendo perfeitamente que os pais os matriculem. O tema do ensino em Portugal, bafiento, igual há décadas, desmotivante, dá, de resto, outra newsletter inteirinha. |
Há, nesta escolha importante para a vida dos filhos, muito a levar em linha de conta. A decisão de tirar os filhos de um colégio pode ter muitas razões: financeiras, logísticas (a escola mais próxima de casa ou do trabalho ser pública), ou não-elitistas (no fundo, para lhes dar uma visão menos sectária da vida). Connosco, foi assim um “pijaminha” de razões, com maior enfoque na parte financeira e no pressuposto de que, para nós, a educação curricular é muito importante, mas não é a única que lhes queremos dar. Por outras palavras: se tivéssemos quatro filhos no privado, provavelmente não lhes teríamos proporcionado viagens que, temos a certeza, os enriqueceram muitíssimo. Se deixássemos 2 mil euros por mês em colégios (no mínimo dos mínimos), não teria sido possível terem as atividades extra-curriculares que tiveram (desportivas e artísticas), irem as vezes que foram ao cinema, a espetáculos, exposições, campos de férias, ou um mês para fora estudar inglês. Dar mundo é tão ou mais importante do que dar currículo – para nós, é claro. |
Em suma, se está com um nó na garganta porque o seu filho entrou no público e já o matriculou… vá de férias em paz e sossego. Com a devida atenção a casos que possam acontecer, com acompanhamento e os valores certos… o seu filho vai chegar tão longe como chegaria se frequentasse um colégio XPTO. Seja lá isso do “longe” o que for. |
Coisas que descobri |
Uma experiência divertida para um sábado ou um domingo |
Alugámos uma Dolly Bike, numa loja de bicicletas (Rise Bike Shop) no Parque das Nações, em Lisboa. É uma daquelas bicicletas que vemos por todo o lado em Amesterdão: duas rodas e um caixote à frente para transportar crianças ou até animais de estimação. O motor eléctrico faz com que ande depressa e tenha força para subidas mais íngremes. Os meus filhos mais novos deliraram com a experiência de serem transportados numa caixa, especialmente porque no início houve algumas atrapalhações da mãe a lidar com a novidade, o que deu azo a muita gargalhada. Valor por um dia: 50 euros. |
Um romance imperdível: Shuggie Bain, de Douglas Stuart (ed. Alfaguara) |
É o romance de estreia de Douglas Stuart, e… que estreia! É a história de uma família disfuncional de Glasgow, nos anos 1980 (entre várias outras famílias disfuncionais). A forma como o autor nos leva pelos meandros do alcoolismo, de uma forma dura mas, simultaneamente, bela, torna este livro uma preciosidade. Acompanhamos o crescimento de Shuggie que, apesar dos sucessivos abandonos e maus-tratos maternos, nunca deixou de a amar profunda e incondicionalmente. Shuggie Bain nunca mais me sairá da memória. |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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