Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Se ainda não é nosso assinante, vai receber apenas as primeiras edições de forma gratuita. Pode subscrever a newsletter aqui. Faça aqui a sua assinatura para assegurar que recebe também as próximas edições. | A vitória dos Fratelli d’Italia nas eleições de sábado passado suscitaram muitas reacções desencontradas e a habitual acusação de “fascismo” dirigida não só a quem foi escolhida pelos eleitores, como a todos os que, como eu, procuram perceber porque é que as ideias radicais de Giorgia Meloni entusiasmaram tantos italianos. É sobre isso, mas também sobre um livro (e uma fotografia) que retratam um período do nosso salazarismo, assim como sobre um pequeno tesouro de origem italiana que descobri este sábado, que falo nesta newsletter. | | Não tenho muito por hábito ler as caixas de comentários dos jornais ou das redes sociais – evito-o por uma questão de sanidade mental e porque o tempo é um bem precioso. Mesmo assim de vez em quando tropeço nalguns insultos e um dos mais frequentes é que sou “um fascista e um alimentador de fascistas”. E não é preciso muito para isso acontecer pois foi exactamente assim que alguém que se identifica como “socialista, republicano e laico” me tratou quando, no auge da pandemia, notei que estavam 39 ambulâncias paradas à porta do Hospital de Santa Maria. Como tenho idade suficiente para ter tido problemas com a polícia antes do 25 de Abril, o que me deu direito a ter ficha na PIDE (uma ficha magrinha, já a consultei), o insulto não me incomoda, antes me instrói, pois revela que para uma parte significativa da nossa esquerda tudo se resolve acusando de ser “um fascista” quem se distingue apenas por ter ideias diferentes. | Foi também por isso que não fiquei surpreendido, pelo contrário, quando vi a generalidade dos comentadores e a quase totalidade dos títulos dos jornais inquietarem-se com a vitória de uma “quase fascista” em Itália. Falo naturalmente de Giorgia Meloni, a líder dos Fratelli d’Italia, o partido que ganhou folgadamente as eleições do passado domingo. De certa forma previ que isso ia acontecer no Contra-Corrente gravado na véspera do sufrágio – Itália reabraça fascismo? Não, é só Giorgia Meloni –, um diagnóstico que não se afasta muito do realizado por Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, também na Rádio Observador mas agora no último Conversas à Quinta – Como o furacão Giorgia Meloni varreu a Itália. | E porque é que isso acontece? Porque aqui em Portugal, como em Itália, como noutros países sobretudo do sul da Europa, ainda se acredita que gritar “vêm aí os fascistas” é o melhor remédio eleitoral para afastar soluções de direita, ou mesmo de centro-direita, do poder. Em Portugal sabemos como Sá Carneiro foi acusado de ser fascista, como Freitas do Amaral foi tratado como fascista (até se escreveu nos jornais que tinham sido avistados pides nos comícios dele…), e já nem falo de Cavaco Silva ou mesmo mais recentemente de Passos Coelho e das “grandoladas”. E se não forem fascistas serão de extrema-direita, ou acusados de serem de extrema-direita (o Rui Ramos escreveu de forma elucidativa sobre isto mesmo esta semana). Mais: até os que tentam explicar que já não basta gritar que vem aí o fascismo acabam por cair no mesmo pecado, acabam por confundir deliberadamente ideias de que não gostam com uma doutrina política que porventura nem conhecem bem. | Para além de que estão a olhar para o lado errado, como sublinhava este sábado Timothy Garton-Ash num interessante artigo do Financial Times, For a fascist revival look to Moscow, not Rome. Como ele sublinhava, Meloni pode ser reaccionária e nacionalista mas nada na sua prática e na retórica remete para a glorificação da violência marcial ou do sacrifício heróico, duas pedras angulares do fascismo mussoliniano e, nos dias que correm, duas pedras angulares do putinismo. Por isso este historiador, que sempre teve relutância em fazer referências, ou comparações, contemporâneas ao fascismo, até pelo uso imoderado e demagógico que a extrema-esquerda sempre fez dessa acusação, não hesita agora em falar de um “fascismo russo” que, mesmo sendo diferente do seu antepassado italiano, recupera boa parte da sua retórica e sobretudo recorre aos mesmos métodos. | Voltando a Itália, esta análise de Timothy Garton Ash está em linha com o que escreve Yascha Mounk na The Atlantic (Italians Didn’t Exactly Vote for Fascism), Alberto Mingardi e Nicola Rossi no Wall Street Journal (Giorgia Meloni Is No Fascist, but Can She Revive Italy’s Economy?), Mattia Ferraresi no New York Times (Giorgia Meloni Is Extreme, but She’s No Tyrant), Tony Barber no Financial Times (Likely victory for Italian right portends risks but no lurch into extremism) ou ainda a The Economist no seu editorial da semana passada (How afraid should Europe be of Giorgia Meloni?). | Em contrapartida, têm razão João Marques de Almeida e João Miguel Tavares quando sublinham que não basta assustar com o fascismo para conjurar o extremismo — pior, que agitar o espantalho do fascismo até tem ajudado o avanço das direitas radicais. É um ponto onde de resto coincidem com a The Economist (Demonising nationalist parties has not stemmed their rise in Europe) que, na prestigiada coluna Charlemagne, analisa em conjunto os resultados das eleições em Itália e na Suécia, já que na Suécia um partido parecido, os Democratas Suecos, uma formação política com raízes no extremismo neonazi, se transformou nas recentes eleições no segundo partido mais votado e vai seguramente ajudar a direita moderada a formar uma maioria de governo. Aí se recorda como, um pouco por toda a Europa, a estratégia das “cercas sanitárias” não só não tem impedido a subida de partidos extremistas, como os tem ajudado, em alguns casos, a polarizarem descontentamentos que, sendo normais em democracia, deviam ser assumidos pelas forças políticas moderadas. | Muito disto acontece porque a esquerda abandonou as suas velhas causas e perdeu as suas raízes populares, tendo-se entretanto entrincheirado em elites mais educadas, mas endinheiradas e muitas vezes também mais radicais. Isso começou a acontecer em França quando a base eleitoral daquele que fora um dos mais poderosos partidos comunistas da Europa Ocidental se transferiu para o partido da senhora Le Pen, isso aconteceu nos Estados Unidos onde a antiga “cintura da ferrugem”, o “rust belt”, as áreas industriais em acentuada decadência se passaram de armas e bagagens do voto democrata para o voto em Trump, disso há até sinais em Portugal quando vemos como o eleitorado do Chega tende a ser humilde e “suburbano”. | William Galston, um interessante politólogo norte-americano, escreveu precisamente sobre como essas transferências estão a acontecer na Europa e podem vir a acontecer nos Estados Unidos – Right-Wing Populism May Rise in the U.S., no Wall Street Journal. O que ele explica é que a adopção de um discurso mais radical por parte dos democratas, um discurso woke em termos morais, um discurso irrealista em termos políticos (pensemos no slogan “defund the police”, pensemos nas hesitações sobre a política de imigração) está a alienar os eleitores da classe trabalhadora. | Por outras palavras: há um mal-estar nas nossas sociedades que não está a ser devidamente lido por elites que desconhecem a vida das pessoas comuns, elites que ao mesmo tempo também pretendem impor agendas culturais e morais vanguardistas que pouco ou nada têm a ver com as reais angústias da maioria da população. | Querem um exemplo? Eu dou: mesmo alguém que não se identifique, bem pelo contrário, com a máxima dos Fratelli d’Italia “Deus, pátria e família” – é o meu caso – não pode deixar de considerar que é um abuso transformar a interrupção voluntária da gravidez – com que eu concordo – num “direito humano” irrefutável, algo que fez, por exemplo, a primeira-ministra francesa. | Haja pois sensatez. A Itália tem uma longa história, possui instituições que, mesmo não gerando governos estáveis, garantem o equilíbrio de poderes, tem um presidente moderado e centrista e está numa situação económica que impõe realismo. Tudo isto distancia irremediavelmente a Itália de 2022 da Itália de 1922 (o ano em que Mussolini ascendeu ao poder) – e tudo isto colocará Giorgia Meloni à prova. Ora tem sido precisamente no momento da verdade, no momento em que são chamados a governar e são postos à prova, que os partidos radicais ou se moderam… ou implodem. | Veremos o que acontece em Itália, esse eterno laboratório político deste nosso velho continente. | A diplomacia de Salazar, agora no tempo das guerras coloniais, e a recordação de um outro “olha que é fascista” | | No dia 28 de Dezembro de 2012, está quase a fazer dez anos, Pedro Passos Coelho foi a Coimbra ao Museu Nacional Machado de Castro e, quando terminou a visita e se sentou no carro oficial, um fotógrafo dos jornal “As Beiras”, Luís Carregã, tirou uma fotografia que faria furor nos dias seguintes nas redes sociais. É que, por baixo do apoio para os braços, via-se a lombada de um livro onde sobressaía, em letras garrafais, o nome de Salazar. Escusado será recordar o teor alucinado do que então se escreveu em blogues e no Facebook, a maior parte das vezes por pessoas que nem sequer tinham identificado o livro em causa. Tratava-se de A Diplomacia de Salazar, de Bernardo Futscher Pereira, um diplomata que na altura era embaixador de Portugal em Dublin e que, poucos anos depois, trabalharia como assessor diplomático de António Costa nos primeiros anos da geringonça (hoje é o nosso homem em Rabat). O livro compreende o período entre 1932, quando Salazar se torna presidente do Conselho, e 1949, altura da adesão de Portugal à NATO, e devo dizer que é uma leitura bem interessante. Muito baseado na consulta dos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, faz-nos nomeadamente um retrato detalhado do equilibrismo a que o regime foi obrigado nos anos da II Guerra. Devo dizer que também o li por essa altura, quando saiu, mas falhei o segundo volume da trilogia de Bernardo Futscher Pereira, O Crepúsculo do Colonialismo, que cobre o período de 1949 a 1961, tendo agora na minha mesinha de cabeceira o terceiro volume, Orgulhosamente Sós — A Diplomacia em Guerra (1962-1974). Como o próprio título torna claro, este volume trata dos anos finais do anterior regime, terminando precisamente com o 25 de Abril, e cobre um período de grandes tensões aportando interessantes contribuições para o retrato de personalidades complexas como Franco Nogueira, uma das figuras centrais deste relato. Isto para além de muitos detalhes sobre os bastidores de como o regime lidou com crises tão diferentes como os choques entre Venâncio Deslandes, então governador em Angola, e um jovem ministro chamado Adriano Moreira, ou o massacre de Wiriamu. | O que uma árvore nos pode revelar sobre o clima | | Esta semana voltámos a discutir em Portugal a situação de seca severa que atravessamos, até por causa da partilha de água com Espanha, e, no Contra-corrente que dediquei a esta discussão, referi que era possível reconstituir com algum grau de certeza o clima dos últimos séculos, em particular saber se tínhamos tido anos secos ou anos húmidos, estudando os anéis de crescimento das árvores. Esta ciência, denominada dendocronologia, permite-nos verdadeiras viagens ao passado e recentemente tropecei numa ao ler o New York Times. Em This 500-Year-Old Tree in California Has a Story to Tell o autor fala-nos sobre o que revela uma pseudotsuga (uma espécie de grande porte, aparentada com o pinheiro e que encontramos em grande quantidade nos Açores), fazendo um close up aos anéis de crescimento até ao ponto de distinguirmos as paredes das células, exercício que nos permite ver que, na Califórnia do Sul, houve anos de chuvas generosas (1549, 1550, por exemplo) e outros em que quase não deve ter chovido (foi o que terá acontecido em 1571). Uma das conclusões destes estudos é que sempre houve secas severas naquela região, mas que as secas de hoje, por as temperaturas do ar serem mais elevadas, têm um efeito mais devastador: | A recent study published in Nature Climate Change analyzed the rings of thousands of living trees and architectural wooden beams from around the Southwest to reconstruct a 12-centuries-long timeline of climate extremes. The authors concluded that there was probably not a drought as severe as today’s in the past 1,200 years. Our planet produced decades-long megadroughts well before humans had a discernible impact on the climate. Tree rings and weather records make it possible to see how and why today’s megadrought is so different from those that came before: Rising temperatures over the past two decades, clearly attributable to the burning of fossil fuels, have greatly increased the severity of the Southwestern drought. | Uma descoberta inesperada | | Há coisas assim, pequenos tesouros que estão mesmo à mão, aqui mesmo ao lado, e que podemos passar eternidades sem os conhecer – e um dia, de repente, tropeçamos neles. Aconteceu-me este sábado, durante uma das minhas caminhadas, esta um pouco “fora de área” pois levou-me com uns amigos até São Miguel de Odrinhas, uma pequena aldeia que fica na estrada entre Sintra e a Ericeira. Sem que tivesse planeado, entrei no museu arqueológico que ali existe, um museu de cuja existência sabia há muito mas que nunca me fizera parar para um visita. Erro meu. Para além de possuir um espaço interessante, bem tratado e numerosas peças bem expostas (pena que a sala mais importante esteja em obras…), o museu possui também três maravilhosos túmulos etruscos que eu nem sabia existirem em Portugal. Os sarcófagos, do século IV e III a.C., foram adquiridos por Sir Francis Cook, o inglês que construiu o Palácio de Monserrate, hoje uma das joias dos Parques de Sintra – Monte da Lua. Serviam para decorar os jardins, foram maltratados pelos visitantes e pelas intempéries, uma das tampas com estátua jacente até desapareceu na noite da terrível tempestade de 1983 (estive nessa altura bem perto de Monserrate, vi como as águas tinham literalmente arrastado com elas uma pedaço da velha estrada de Sintra), mas hoje estão ali em Odrinhas, para mais muito bem expostas. Diria mesmo exemplarmente expostas.
Não sei quantos dos que vão até Roma se apercebem da riqueza da cultura etrusca que floresceu um pouco a norte da cidade, quantos visitaram a necrópole de Cerveteri, quantos apreciaram, no Museu Nacional de Villa Giulia, em Roma, o maravilhoso sarcófago etrusco que lá se conserva, mas eu que pude fazer isso tudo sempre tive um fascínio especial pela história desta civilização que precedeu a dos romanos, em boa parte pela extrema delicadeza dos seus monumentos funerários. Estava por isso longe de imaginar que encontraria três deles – os únicos existentes em Portugal – naquele pequeno museu que eu nunca visitara porque a visita ficava sempre para outro dia. Esse outro dia foi este sábado, e ainda bem. | Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para jmf@observador.pt ou siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957). Pode subscrever a newsletter “Macroscópio” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. | José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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