|
|
Saúde mental infantil – tanto por fazer |
“Nuno (nome fictício) tem 8 anos. Está em casa. Ouve gritos, pancadas, insultos, coisas a cair no chão. São sons que conhece bem. O pai está outra vez a bater na mãe. Surge à porta e isto é o que vê: a mãe a correr, o pai correr atrás. A faca na mão dele. O momento em a alcança. A faca a subir à altura do pescoço dela. |
Nuno não sabe o que significa ‘degolar’. Mas sabe que o pai está a tentar matar a mãe. Reúne todas as forças e grita ‘Cuidado!’ Mais tarde, sentado em frente à psicóloga Andreia Neves – que conta esta história – levanta os olhos do chão quando ela lhe pergunta se sabe por que está ali. ‘Sei. Porque o meu pai tentou assassinar a minha mãe.’” |
Começa assim a reportagem sobre o projeto experimental RAP – Resposta de Apoio Psicológico a Crianças e Jovens Vítimas de Violência Doméstica e este é apenas o primeiro murro no estômago. A cada novo parágrafo do artigo assinado pela jornalista Sofia Teixeira, com fotografias do Tomás Silva, há novas revelações, novos dados, novas frases marcantes que nos deixam a pensar. |
“Nuno” foi uma das 9388 crianças acompanhadas em 2022 pelas 31 RAP espalhadas pelo país. A maioria tem entre 4 e 15 anos, mas há quase uma centena com menos de 3 anos que já estão a ter apoio. Talvez o número possa impressionar, mas se pensarmos que nesse mesmo ano foram registadas cerca de trinta mil queixas por violência doméstica junto da PSP e da GNR, é fácil concluir que há muitos, muitos milhares de crianças em Portugal expostas a agressões dentro de casa. |
Crianças que precisarão de acompanhamento. De ajuda. De quem as ouça. De quem possa trabalhar com elas para prevenir uma série de situações que lhes poderão marcar ainda mais a vida. “Sabemos que um menino que viu o pai agredir a mãe tem mais probabilidade de ser um agressor quando for adulto”, diz a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), Renata Benavente. “Há uma relação documentada.” |
Mas há mais relações. Mais consequências. “Não é preciso ser psicólogo para perceber que um menino que tem medo de chegar a casa e encontrar a mãe morta não pode estar disponível para aprender história nem geografia.” As palavras são de Marta Silva, chefe da Equipa Multidisciplinar do Núcleo de Violência Doméstica e Violência de Género, da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, que criou as RAP em parceria com a OPP. |
Não é preciso ser psicólogo, de facto. Mas se for e trabalhar com crianças que crescem em ambientes de violência doméstica, é possível encontrar casos como o de “Nuno”, que “dantes queria ser polícia para ajudar as pessoas”, diz a psicóloga. “Agora quer ser polícia para prender o pai.” Ou o de “Catarina”, de 14 anos, que era agredida e insultada pela mãe. Ou de tantas outras crianças e adolescentes que todos os dias, por todo o país, às vezes na casa ao lado da nossa, são confrontadas com uma realidade a que qualquer menor deveria ser poupado. |
|
Podemos sempre ver o lado positivo ou negativo de cada reportagem. O tal copo meio cheio ou meio vazio, sejamos nós mais otimistas e sem querer olhar para o que é mau ou pessimistas atentos sobretudo ao que está mal. No Mental, a secção do Observador totalmente dedicada à saúde mental, gostamos de olhar para os dois lados. Ou para os três. Ou quatro. Para todos os que forem necessários atrás de uma boa história que merece destaque. Reportamos o extraordinário trabalho que os profissionais do projeto RAP fazem. Mas não esquecemos que até há três anos não havia quem desse atenção, a nível nacional, a estas crianças. |
Não nos esquecemos que há uma falta gritante de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde e nas escolas, onde há apenas um por cada 744 alunos (ler devagar: um-psicólogo-para-cada-setecentgos-e-quarenta-e-quatro-alunos). Mas gostamos de publicar artigos como este sobre a professora Dulce Gonçalves, de uma escola de Loures, e os quase três mil alunos que, graças a ela, já beneficiaram do projeto que os ajuda a lidar com a ansiedade. |
Os temas ligados à saúde mental infantil e sofrimento emocional dos mais novos são particularmente relevantes de acompanhar. Nesta reportagem sobre a Capiti, conhecemos histórias de crianças e adolescentes que precisam de terapia regular de saúde mental que os pais não conseguem pagar. E a forma como a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Infantil, baseada num modelo de apadrinhamento por parte de mecenas, consegue garantir que ninguém fica para trás, permitindo a comparticipação de tratamentos que ajudam a lidar com o luto, a ansiedade, a depressão, a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção, a dislexia, a disortografia ou o autismo, entre outros diagnósticos. |
Nos artigos de opinião (que publicamos semanalmente), a pedopsiquiatra Margarida Crujo já escreveu sobre hiperatividade, o psicólogo João Nuno Faria sobre adição online e preocupações dos pais, o enfermeiro Francisco Sampaio, especialista em saúde mental, sobre a importância de ter mais profissionais destes nas escolas, Maria Ganhão Pereira sobre a necessidade de conversar com alguém e Florbela Barão da Silva sobre os desafios de crescer com uma mãe bipolar. |
Nesta entrevista com Pia Jeppesen, a jornalista Catarina Pires conversou com a pedopsiquiatra dinamarquesa sobre a estratégia daquele país do norte da Europa para prevenir a doença mental em crianças em idade escolar, e que passa por programas semelhantes aos das campanhas de saúde oral para prevenção de cáries. Parece estranho? Só enquanto continuarmos olhar para a saúde mental como um parente distante de todo o nosso bem estar, em vez de procurarmos uma abordagem holística, que engloba tudo – absolutamente tudo – o que pode influenciar a nossa saúde. |
A má notícia é que ainda há muito caminho para percorrer. A boa é que um pouco por todo o mundo há especialistas e investigadores empenhados em criar boas condições para acompanhar o tratamento (e prevenção) de patologias de saúde mental nos mais novos. Outro bom exemplo? Dos nossos antípodas chegou-nos esta entrevista com o psiquiatra Patrick McGorry, que em 2005 criou na Austrália uma rede de cerca de 150 centros de cuidados primários de saúde mental para jovens dos 12 ao 25 anos e que o fundador quer levar para outros países. |
Vale a pena ler a conversa toda com o professor universitário australiano, mas, e uma vez que comecei esta newsletter com o início de uma reportagem dura, termino-a com o final de uma entrevista que traz esperança: |
“Estive no ano passado em Portugal e penso que o país ainda é muito tradicional no seu sistema de cuidados de saúde mental, mas há gente a trabalhar com a intervenção precoce em psiquiatria e são excelentes profissionais. Portugal foi líder mundial na reforma dos cuidados e prevenção do abuso de substâncias, drogas e álcool, portanto não há razão para que não abrace a inovação e faça parte desta frente global em torno da saúde mental de adolescentes e jovens. Só é preciso que o primeiro-ministro, o Presidente, o ministro da saúde e os líderes na área da saúde mental em Portugal decidam abraçar a reforma e investir mais seriamente nesse processo. E os media podem ter um papel chave em mostrar que é possível, que há soluções que podem ser postas em prática e já estão a ser adotadas noutros países.” |
Nós, no Observador, estamos a fazer a nossa parte no Mental. Com a ajuda de psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, investigadores e outros especialistas, professores, doentes e familiares com quem conversamos habitualmente. Junte-se a nós: leia, comente, partilhe. |
Em breve teremos novas reportagens sobre saúde mental infantil. Entretanto, estes são os trabalhos mais recentes: |