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A Europa ainda está a recuperar dos fortíssimos efeitos da onda de calor que se abateu sobre o continente europeu durante o mês de julho e que deixou vários recordes de temperatura para a história. Talvez o exemplo mais significativo tenha sido o do Reino Unido, onde, pela primeira vez desde que há registos, as temperaturas ultrapassaram a barreira dos 40ºC. Em França, foram declaradas temperaturas recorde em 64 municípios. Também em Portugal os termómetros superaram a barreira dos 40ºC em praticamente todo o território nacional durante vários dias consecutivos, o que provocou uma onda de incêndios florestais que se chegou a temer poder ser mais grave ainda do que os fogos de 2017 — embora o recorde de 47,3ºC da Amareleja em 2003 não tenha sido superado. |
A onda de calor fez sentir-se também noutros pontos do mundo, dos EUA à China, e com as altas temperaturas veio a fatura humana: as primeiras estimativas apontam para mais de 500 mortes em excesso em Portugal na semana em que se registou o pico da onda de calor, um valor que se cifra nos quatro dígitos quando se olha para todo o mês de julho e para o continente europeu na generalidade. |
A onda de calor em terra não passou, seguramente, despercebida por ninguém. Mas, de braços dados com as ondas de calor em terra, mais discretas e silenciosas, as ondas de calor no mar estão a mudar definitivamente o rosto do planeta Terra e são igualmente mortíferas, resultando numa reconfiguração da fauna e flora oceânicas, na destruição de espécies e na transformação total do próprio oceano. O exemplo mais claro é o mar Mediterrâneo, que atualmente já é comparável, em termos de temperaturas e de fauna, ao mar das Caraíbas. Como escreve a jornalista Vera Novais no artigo de destaque da newsletter de hoje, isso até pode soar bem, mas as consequências são devastadoras. |
Os oceanos não reagem ao aumento das temperaturas globais do mesmo modo que a atmosfera: demoram mais a aquecer, mas depois também demoram mais a arrefecer, o que significa que os efeitos de um aquecimento excessivo podem perdurar durante muito, muito tempo. Daí que a comunidade científica já fale em efeitos irreversíveis das alterações climáticas: muitos deles prendem-se com os oceanos, que, mesmo que parássemos hoje com todas as emissões poluentes e de gases com efeito de estufa, continuariam a aquecer e a subir ao longo do próximo século. As altas temperaturas do mar impedem a massa oceânica de funcionar como um sistema de arrefecimento da atmosfera, o que contribuirá ciclicamente para o aumento das temperaturas do planeta. |
Ao mesmo tempo, a própria realidade dos oceanos está em mutação devido ao aquecimento das águas. Há espécies que já não conseguem viver no mar que sempre foi a sua casa — e há outras a tomar o seu lugar, especialmente devido ao Canal do Suez, que permite a migração de espécies oriundas do Oceano Índico para o Mediterrâneo, onde encontram as condições ideais para a sua vida. É verdade que a atividade humana está a mudar radicalmente a face da Terra. Mas, embora de modo menos visível, é igualmente verdade que está a mudar as águas do mar — que são mais importantes para a humanidade do que poderíamos, à partida, pensar. |
Guerra na Ucrânia continua a perturbar setor da energia na Europa |
A dependência dos países europeus em relação ao gás natural importado da Rússia, que já foi o tema central desta newsletter em duas edições anteriores, continua a fazer manchetes e a marcar o debate público em Portugal — um debate que se intensificou esta semana depois de o presidente da Endesa Portugal, o antigo secretário de Estado da Energia Nuno Ribeiro da Silva, ter afirmado que o mecanismo ibérico para limitar o preço da eletricidade produzida a partir do gás natural resultará em surpresas desagradáveis para os consumidores num futuro próximo, incluindo possíveis aumentos substanciais da conta da luz. Em resposta às declarações “alarmistas”, o primeiro-ministro, António Costa, emitiu um despacho determinando que os serviços do Estado não poderiam pagar faturas da Endesa sem validação prévia do Governo. |
Afinal, o que está em causa? A melhor forma de perceber os contornos desta controvérsia é ouvir o episódio de ontem de A História do Dia, o podcast matinal da Rádio Observador, em que a jornalista Ana Suspiro explica os detalhes da polémica numa conversa com o subdiretor do Observador Ricardo Conceição. |
Toda esta situação já levantava grandes questões desde abril deste ano, quando Portugal e Espanha aprovaram em Bruxelas a criação de um mecanismo ibérico destinado a limitar o preço da eletricidade gerada a partir de centrais que usam o gás natural. O objetivo era impedir que o aumento do preço do gás, motivado em grande parte pela guerra da Rússia contra a Ucrânia e pelo uso do abastecimento de gás como arma de Moscovo contra os países europeus, contagiasse o preço da eletricidade para os consumidores — mas já na altura, como explicava a jornalista Ana Suspiro em dez perguntas e respostas sobre o assunto, havia dúvidas sobre como e por quem seriam pagas as compensações às centrais elétricas que tivessem de vender a energia com prejuízo devido ao teto imposto. |
Agora, o presidente da Endesa veio dizer que esta compensação poderá acabar por ter de pesar nas faturas da eletricidade dos clientes domésticos, que poderiam sofrer aumentos na ordem dos 40% já este mês. Entretanto, a ERSE, entidade reguladora do setor, já veio colocar água na fervura e dizer que são essencialmente as indústrias que vão pagar esta diferença e que, mesmo assim, vão ter ganhos no preço da eletricidade. A discussão ganhou contornos políticos quando o primeiro-ministro, António Costa, determinou que os serviços do Estado deixariam de pagar faturas da Endesa sem aprovação explícita do Governo (um despacho que levanta dúvidas legais) e ameaçou até que os serviços públicos poderiam ter de estudar alternativas ao fornecimento de eletricidade — um posicionamento que já levou o PSD e a Iniciativa Liberal a acusarem o primeiro-ministro de abuso de poder. |
Tudo isto acontece dias depois de, em Bruxelas, a União Europeia ter chegado a um acordo quase unânime (só a Hungria votou contra o entendimento) para reduzir em 15% o consumo de gás nos vários países do bloco europeu. O objetivo desta medida, que começa por ser facultativa e pode tornar-se obrigatória no caso de ser declarado o estado de alerta no abastecimento de gás, é responder às ameaças recentes por parte de Moscovo de que poderá cortar o abastecimento de gás à Europa em retaliação pelo apoio à Ucrânia — cortes que, aliás, já se começam a fazer sentir em vários países. |
O acordo alcançado na semana passada inclui um compromisso para que os países cortem em 15% o seu consumo de gás natural ao longo dos próximos oito meses, até agosto de 2023. As medidas concretas para alcançar o objetivo ficam ao critério de cada país, com uma certeza: se a Rússia fechar totalmente a torneira e a UE tiver de declarar o estado de alerta em relação à segurança de abastecimento do gás natural, então a meta facultativa passa a obrigatória. |
Contudo, como pode ler neste detalhado artigo, também da jornalista Ana Suspiro, há múltiplas exceções que se aplicam, incluindo a Portugal — sobretudo a necessidade de garantir o abastecimento elétrico num momento em que devido à seca a produção hidroelétrica caiu em cerca de 50% e o gás natural é um dos principais garantes da eletricidade no país. O problema de tudo isto é que a quantidade e a extensão das exceções admitidas por este acordo pode enfraquecer significativamente o compromisso dos países europeus. E a Comissão Europeia já admitiu: se o inverno for duro, poderá ser preciso ir mais longe nas medidas. |