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Não foi por acaso que o Canadá ganhou o epíteto de “Grande Norte Branco”. Cerca de 65% do território continental canadiano está coberto de neve durante mais de metade do ano e, embora o manto de neve do país esteja a diminuir a cada ano, continua a ser seguro classificar o Canadá como um dos lugares do mundo com mais neve e menores temperaturas. Não é, por isso, de estranhar que os olhos do mundo se tenham voltado recentemente para a pequena vila canadiana de Lytton, na província da Columbia Britânica, onde os termómetros registaram na semana passada uns surpreendentes 49,6ºC. |
Esta foi a temperatura mais alta alguma vez registada no país — e ficou mais de quatro graus acima do último recorde (45ºC em 1937 na província de Saskatchewan). Na mesma semana, a vila de Lytton foi praticamente toda destruída por um violento incêndio. |
A destruição de Lytton tornou-se num ícone de um fenómeno extremo de enormes dimensões que, apesar de ter atingido o pico na última semana, se mantém em curso e deverá continuar durante as próximas semanas: uma fortíssima onda de calor que atingiu o noroeste do continente americano, afetando duramente a província canadiana da Columbia Britânica e os estados norte-americanos de Washington e Oregon. Em várias cidades da região foram batidos recordes de temperatura e a vaga de calor já causou um grande prejuízo em termos de vidas humanas: pelo menos 800 mortes, incluindo várias mortes súbitas, estão a ser investigadas por se suspeitar que possam ter sido provocadas pelo calor e pela desidratação. |
Na origem da onda de calor está um fenómeno climático raro, uma “cúpula de calor” — na prática, uma grande massa de ar quente, motivada por uma das maiores secas dos últimos anos, a ser empurrada para o solo pela forte pressão atmosférica, tornando-se cada vez mais densa e mais seca. |
Culpa das alterações climáticas? É difícil responder a esta pergunta com exatidão. Por um lado, não se pode atribuir às mudanças no clima a responsabilidade direta por esta vaga da calor, que, na verdade, foi causada pela conjugação simultânea de diferentes fenómenos atmosféricos pouco comuns naquela região — e não será impossível que momentos como este tenham ocorrido há vários séculos, antes de o aquecimento global provocado pela humanidade ter começado a sentir-se de modo mais contundente. Por outro lado, as alterações climáticas estão inequivocamente a aquecer o planeta e a torná-lo mais seco — ou seja, devido ao aquecimento global, as condições raras que conduzem a estes acontecimentos extremos estão a tornar-se menos raras. |
Na prática, resume o climatologista português Carlos da Câmara — com quem o Observador conversou para perceber como ler o fenómeno canadiano à luz do problema de fundo das alterações climáticas —, o que está a acontecer é uma alteração da distribuição normal dos acontecimentos climáticos extremos. O aquecimento global não causa cada uma das tragédias, mas cria condições para que elas aconteçam cada vez mais frequentemente. |
E Portugal não está imune a esta tendência. Vários cientistas portugueses têm estudado o modo como o clima está a mudar no país e as conclusões apontam no mesmo sentido: fenómenos extremos como os grandes incêndios de 2017, mas também tempestades como a causada pelo furacão Leslie em 2018, vão encontrar cada vez melhores condições para se disseminar mais frequentemente e com consequências mais graves. Continuarão a ser fenómenos raros — mas cada vez menos. |
Uma entrevista de emprego falsa e uma petrolífera sob fogo |
Entretanto, também nos Estados Unidos, um esquema montado pela polémica organização ambientalista Greenpeace instalou fez eclodir o escândalo climático mais recente, pôs em causa a transparência da maior petrolífera norte-americana, a ExxonMobil, e já está a ter repercussões políticas de alto nível. Tudo por causa de uma falsa entrevista de emprego. |
Aconteceu em maio: dois ativistas da Greenpeace, organização conhecida pelos controversos protestos em defesa do ambiente (recentemente, a invasão do França-Alemanha de paraquedas ou o roubo de 1.500 chaves para impedir a exportação de automóveis Volkswagen), fizeram-se passar por recrutadores em busca de um lobista para defender os interesses de uma grande empresa norte-americana em Washington — e marcaram entrevistas de emprego fictícias com dois dos principais lobistas da ExxonMobil, Keith McCoy e Dan Easley, através do Zoom. |
O objetivo? Obter deles informações sobre as verdadeiras prioridades ambientais da petrolífera para, depois, expor tudo num artigo divulgado no Unearthed, uma publicação digital da própria Greenpeace que alega ser um meio de comunicação social especializado em jornalismo de investigação. |
Keith McCoy foi o mais polémico. Achando estar a falar sob sigilo com vista a um possível novo emprego na capital dos EUA, o lobista afirmou que vários dos posicionamentos pró-ambiente da ExxonMobil eram, na verdade, apenas estratégias publicitárias — sobretudo o conhecido apoio da petrolífera à criação de um imposto específico sobre as emissões de dióxido de carbono. “Ninguém vai propor um imposto a todos os americanos e o meu lado cínico pensa: ‘Sim, na verdade nós sabemo-lo, mas isso dá-nos um bom argumento.’ Podemos dizer: ‘Então o que é que a ExxonMobil apoia? Bom, apoia um imposto sobre o carbono.'” |
O lobista foi mais longe e admitiu que, em alguns momentos, a petrolífera contribuiu para alimentar o negacionismo climático — mas que isso foi necessário para garantir a integridade dos investimentos. “Lutámos agressivamente contra alguma ciência? Sim. Escondemos a nossa ciência? Absolutamente não. Juntámo-nos a alguns desses ‘grupos sombra’ para trabalhar contra alguns dos primeiros esforços [de combate às alterações climáticas]? Sim, é verdade. Mas não há nada de ilegal nisso. Sabem, estávamos a cuidar dos nossos investimentos e dos nossos acionistas.” |
Depois desta citação, a Greenpeace remete para uma lista divulgada pela Union of Concerned Scientists, uma organização ambientalista norte-americana composta por cientistas preocupados com as alterações climáticas, que elenca as instituições, grupos de interesse e think-tanks conservadores ou negacionistas do clima que a ExxonMobil financiou nos últimos vinte anos — e a que entregou cerca de 30 milhões de dólares. Estes organismos têm contribuído decisivamente para uma mudança do discurso sobre o clima no interior do Partido Republicano. |
Atualmente, segundo revelou o próprio Keith McCoy, uma das grandes prioridades dos lobistas da ExxonMobil em Washington é o combate aos planos do novo Presidente, Joe Biden, para acelerar a transição energética e para favorecer o uso de carros elétricos. |
O escândalo foi de tal ordem que a própria ExxonMobil (que o The Washington Post classifica como “habitualmente sem remorsos”) se viu obrigada a pronunciar-se publicamente sobre o caso. Num comunicado assinado em nome próprio, o presidente da petrolífera, Darren Woods, diz que os comentários feitos pelos lobistas são “perturbadores e incorretos” e “inteiramente inconsistentes com o compromisso com o ambiente, com a transparência e com aquilo para que os nossos funcionários e gestores têm trabalhado”. Woods reitera que a ExxonMobil compreende a urgência das alterações climáticas, apoia o Acordo de Paris, tem trabalhado no sentido de reduzir as suas próprias emissões e respeita as instituições políticas do país. |
Mas as explicações não convenceram integralmente a esfera política norte-americana: o congressista democrata Ro Khanna, presidente da subcomissão de ambiente da Câmara dos Representantes, já anunciou quer chamar os presidentes executivos da ExxonMobil e de outras petrolíferas norte-americanas ao Congresso para os questionar sobre o papel da indústria do petróleo na disseminação de desinformação sobre o clima. |