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Do que podia ter sido ao que se tornou a República nos primeiros anos |
A 5 de Outubro de 1910, os republicanos não derrubaram simplesmente uma monarquia: derrubaram um regime que honrava os princípios do Estado de Direito e representativo – a concepção do Estado como comunidade de cidadãos iguais entre si, o império da lei, a separação e equilíbrio de poderes, etc. Mas o chefe de Estado era um rei, e esse rei não era uma mera figura decorativa. Pela constituição, o rei escolhia o chefe do governo e podia ajudá-lo a formar uma maioria parlamentar. O sistema dependia, portanto, de os políticos aceitarem o rei como árbitro. Foi o que fizeram cada vez menos. |
Depois de 1900, os chefes políticos multiplicaram-se. Eram agora muitos os que se consideravam com direito a ser preferidos. As escolhas do rei passaram a ser mais contestadas. Ora, esta contestação foi agravada pelo facto de os políticos que governavam a monarquia serem pouco dados à fidelidade dinástica. A monarquia aparecia aos liberais, não como um valor em si, mas como um expediente, descartável se provasse não servir. Foi o que aconteceu em 1910. Nenhum político confiava no jovem rei D. Manuel II, e quase todos o atacavam publicamente. |
A agitação encontrou um ambiente propício. Desde meados do século XIX, a economia portuguesa cresceu, mas menos do que as outras economias da Europa ocidental (ao contrário do que viria a suceder na segunda metade do século XX). Mesmo tendo prosperado em termos absolutos, os portugueses ficaram relativamente mais pobres. Dizia-se que esse atraso acabaria por comprometer a manutenção das colónias africanas, cuja ocupação efectiva exigira custosas campanhas militares desde a década de 1890. Foi fácil insinuar que a causa do atraso estava nos maus governos e que os maus governos eram responsabilidade do rei. |
Muita gente frustrada com a velha classe política dispôs-se a acreditar que através da proclamação da República se poderia chegar a um regime mais arejado e decente, e até mais capaz de preservar os valores cívicos que também tinham sido os da Monarquia Constitucional. Quando correu que a Inglaterra, à qual as outras potências europeias reconheciam a tutela de Portugal, não defenderia D. Manuel, ainda mais gente aceitou a extinção da monarquia. |
O problema estava no modo e no agente dessa extinção: o Partido Republicano Português (PRP). É essa a origem das metamorfoses que vamos examinar a seguir: de como a República se tornou o domínio de um partido, de como esse partido se tornou um partido radical, de como esse partido radical transformou a democracia numa autocracia, e de como essa autocracia redundou numa guerra civil permanente. |
De como a aceitação geral da República preocupou os republicanos |
Entre 3 e 5 de Outubro, alguns oficiais e sargentos de opinião republicana conseguiram indisciplinar a guarnição de Lisboa. Bastou para obrigar o rei sair para Inglaterra, porque quase ninguém, entre os políticos e os comandos militares, levantou um dedo para o proteger. A classe política liberal julgava que a revolução consistiria apenas em pôr um presidente da República no lugar de D. Manuel II. Depois, continuariam a governar o país, até porque concordavam com quase tudo o que estava associado a repúblicas, como o sufrágio universal e a liberdade de culto, para não falar daquelas coisas a que qualquer político prestava rotineira homenagem, como maior probidade e modéstia no poder. Os liberais tinham feito da monarquia constitucional “uma República com um rei”; julgaram que a República seria a “monarquia constitucional sem o rei”. Estavam enganados. |
Os revolucionários republicanos estavam longe do marxismo que viria a predominar à esquerda anos depois: não eram colectivistas, respeitavam a “ortodoxia financeira”, e o seu aceso patriotismo recobria o que a esquerda deploraria mais tarde como “colonialismo”. Mas o igualitarismo, o anti-clericalismo, o maçonismo e o culto da Revolução Francesa não deixavam dúvidas sobre onde se situavam. Aliás, não eram menos, mas mais revolucionários do que os marxistas. É que antes da revolução bolchevista na Rússia, em 1917, o socialismo marxista não estava identificado com a subversão, mas com a organização dos operários e sua representação parlamentar. Era o que o maior partido marxista europeu, o Partido Social Democrata Alemão, ordeiramente fazia na Alemanha imperial. |
O PRP também elegia deputados nas eleições da monarquia, mas em 1910 dedicava-se sobretudo a conspirar, usando sistematicamente lojas maçónicas, para tomar o poder através de uma insurreição. Confiava na violência revolucionária para transformar a sociedade. Por isso, aliás, recusava os compromissos dos liberais. Os liberais tinham mantido a monarquia e uma Igreja oficial, porque acreditavam que, desde que saneadas e controladas, podiam enquadrar o avanço gradual da democracia e da liberdade de pensamento. O PRP não acreditava nisso. Queria democratizar e laicizar sem contemplações. |
Uma vez vitoriosos, a 5 de Outubro de 1910, os líderes do PRP aperceberam-se de que a festa podia ser efémera. Precisavam de eleger uma assembleia constituinte, e corriam o risco de ver os antigos políticos ganhar eleições, aparecerem como deputados, tomarem o poder. Essa era uma preocupação que já existia antes de 1910, quando o jornalista João Chagas explicava que, uma vez feita a República, era importante garantir que os republicanos continuariam a governá-la. Como? Havia apenas uma maneira: prolongar a situação revolucionária, de modo que o poder continuasse a pertencer aos revolucionários. |
A República tinha de ser o que, depois, se chamou uma “revolução permanente”. Foi com esse fim que se abriu uma guerra contra a Igreja Católica. Noutros países, os republicanos haviam separado o Estado e a Igreja. Acontecera nos EUA, no Brasil e em França. Em Portugal, porém, a impropriamente chamada “Lei de Separação da Igreja do Estado”, de 21 de Abril de 1911, não apontava para uma verdadeira separação (por exemplo, conservou o antigo “beneplácito” para bulas papais e pastorais dos bispos, como se a Igreja continuasse do Estado). O seu fim era outro: o controle do clero, do culto e das manifestações religiosas (muito restringidas) por um Estado hostil, empenhado, segundo uma indiscrição de Afonso Costa, o ministro que fez a lei, em extinguir o catolicismo no país em duas ou três gerações. Em vez da “Igreja livre num Estado livre”, como nos EUA, a fórmula portuguesa era a “Igreja suspeita num Estado vigilante”. |
Mais tarde, a Lei de Separação seria vista como um erro: num país rural e católico, teria feito do clero um inimigo e provocado a população nas suas crenças. Mas uma “guerra religiosa”, em 1910, tinha óbvias vantagens: permitia ao governo agir contra o clero, e dava à República um objectivo ideológico que apenas seria alcançado se no poder continuassem os revolucionários. Com a Lei da Separação, só o PRP podia governar a República. |
Daí que às primeiras eleições da República, em Maio de 1911, quase só se atrevessem a aparecer candidatos sancionados pelo PRP. Na maior parte dos círculos, houve apenas uma lista de candidatos, e em muitos casos o governo decidiu proclamá-los deputados imediatamente, dispensando a formalidade de uma votação. Assim surgiu a primeira assembleia “representativa” do regime: escolhida pelo partido, frequentemente sem a participação dos eleitores. |
Em 1911, quando a Constituição ficou pronta, esperou-se que houvesse eleições para a câmara dos deputados e para o senado. Não houve. Simplesmente, os constituintes nomearam-se a si próprios senadores e deputados, sem eleições. A República só fez pela primeira vez eleições legislativas gerais em 1915, cinco anos depois da revolução. Também não houve eleições municipais até 1913. Os revolucionários não confiavam no eleitorado, e não estavam dispostos a correr riscos. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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