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A fatura da Primeira Guerra mundial e o os últimos anos da I República |
Os custos humanos da Primeira Guerra Mundial foram baixos para Portugal, comparados com os de outros beligerantes. Os custos financeiros, pelo contrário, foram dos mais altos: entre Novembro de 1920 e Março de 1921, registou-se em Portugal a maior taxa de inflação de sempre. Fizeram-se muitos negócios, mas não houve convergência económica com a Europa, os capitais fugiram do país e centenas de milhares de pessoas emigraram. As limitações do republicanismo tornaram-se notórias. |
A instrução primária e o serviço militar, com que se contava para republicanizar o país, não chegaram a abarcar sequer metade das novas gerações. O maior movimento de massas no país era católico, à volta do culto mariano em Fátima. O monarquismo, tal como em França, substituiu um republicanismo passado de moda como a nova tendência ideológica dos jovens intelectuais. |
A direcção do Partido Republicano Português (PRP) percebeu que precisava de mudar: aconselhou Afonso Costa a não voltar do exílio, aceitou a revisão sidonista da Lei de Separação, e admitiu assentar o regime, não no simples domínio do PRP, mas na alternância com um partido de direita (o Partido Liberal, em que se fundiram Evolucionistas e Unionistas). |
Em 1919, o PRP ajudou a eleger António José de Almeida como presidente da república, agora com o poder de dissolver o parlamento. Mas nada correu bem. A restauração da monarquia no norte, em Janeiro de 1919 levou os governos a deixar desenvolver-se uma espécie de guarda pretoriana, centrada na Guarda Nacional Republicana e na marinha de guerra. Os activistas radicais predominavam nesse meio, cada vez mais desconfiados da direcção agora aparentemente moderada do PRP e pouco dispostos a colaborar na transformação da república numa rotação de dois partidos. |
O primeiro governo de direita nomeado pelo presidente António José de Almeida, a 15 de Janeiro de 1920, nem sequer chegou a tomar posse: militantes radicais atacaram os ministros no Terreiro do Paço e a GNR recusou-se a defendê-los. No Verão de 1921, o presidente insistiu: nomeou outro governo do Partido Liberal e deixou-o organizar as eleições de 10 de Julho – as únicas que o PRP, tendo concorrido, perdeu. Ia a república ser governada pela direita republicana? Os radicais da GNR, da marinha de guerra e dos grupos de civis armados tinham outras ideias. A 19 de Outubro, revoltaram-se, derrubaram o governo e resolveram liquidar a direita republicana. Foi a “noite sangrenta”: o líder do Partido Liberal, António Granjo, e os fundadores da república, Machado Santos e José Carlos da Maia, acusados de ter colaborado com Sidónio, foram linchados. O cadáver de Granjo foi trespassado à espada no meio de uma multidão no Arsenal da Marinha. |
Alguns dirigentes do PRP decidiram então fazer o que a direita republicana não conseguira. O líder desse grupo foi António Maria da Silva, vice-Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano, que se tornou chefe do governo no princípio de 1922. A 18 de Fevereiro, mandou o exército cercar Lisboa, desarmou a GNR e dispersou-a pela província. O objectivo não era renunciar ao poder, mas criar consensos para que o seu exercício fosse menos destrutivo. |
Entre Fevereiro de 1922 e Novembro de 1923, António Maria da Silva protagonizou o mais longo período de governação na república. Tentou equilibrar as finanças e combateu o terrorismo anarquista da Legião Vermelha, mas também se propôs aplacar a Igreja Católica, o que chocou uma parte do PRP. Esta evolução não é um caso único no radicalismo europeu: em Espanha, na década de 1930, o líder radical Alejandro Lerroux também se convenceu, como escreveu o historiador Roberto Villa Garcia, de que o “Estado não devia ser o instrumento de um partido para modelar a seu capricho a sociedade”, por isso ser incompatível com as “liberdades públicas”. Procurou, em aliança com a direita católica, fazer da república espanhola “um regime inclusivo e tolerante”. Não teve mais sorte que Silva em Portugal. |
Esta república conservadora de um partido radical tinha dois problemas. O primeiro estava nos políticos da direita republicana: a orientação de António Maria da Silva correspondia a algumas das suas ideias, mas não lhes dava a alternância que esperavam. Nunca se conformaram. O segundo problema esteve nos outros dirigentes do PRP que consideraram a política de António Maria da Silva e dos seus adeptos (os “bonzos”) um desvio perigoso. Entre 1923 e 1925, as duas facções do PRP impediram-se uma à outra de governar. Houve nove governos em dois anos. |
Os esquerdistas do PRP – os “canhotos” – não eram simples guardiães do laicismo. Tal como António Maria da Silva, também estavam a evoluir – mas noutra direcção. Em 1924, entusiasmaram-se com o “Cartel das Esquerdas” em França e com o seu imposto sobre o capital (“iremos buscar dinheiro onde o houver”). O seu chefe, José Domingues dos Santos, propôs-se reconhecer a Rússia soviética e pôr a república ao lado dos “explorados” contra os “exploradores”. Em 1925, abandonou o PRP para fundar o Partido Republicano da Esquerda Democrática, e logo procurou entender-se com o recente Partido Comunista. O PRP, o partido que até aí estruturara e dominara o regime, dividira-se. |
O radicalismo unira as esquerdas enquanto foi possível imaginar que a ameaça à república estava no “clericalismo”. Agora que a questão para José Domingues dos Santos era o “capitalismo” e para António Maria da Silva, o “bolchevismo”, o radicalismo já não unia. |
Na década de 1920, a ala esquerdista do PRP resistiu à ideia de estabilizar o regime através da renúncia ao uso arbitrário e violento do poder do Estado para mudar a sociedade. Para os “canhotos”, a república devia ser permanentemente um regime revolucionário: tinha-o sido para combater o “clericalismo”, devia sê-lo para aniquilar o “capitalismo”. E dispunham de força para que assim fosse, com os seus militantes nas forças armadas e nos grupos de civis armados. Os esquerdistas atiraram deste modo a antiga “direita republicana” e a parte do PRP que seguiu António Maria da Silva para o lado das direitas no que viria a ser o salazarismo. |
Em 28 de Maio de 1926, e muito significativamente, o PRP não resistiu ao movimento militar; e quando os esquerdistas tentaram reagir, em 1927, ficaram isolados, e a sua máquina de poder nos quartéis e na rua foi destruída. A Ditadura Militar (1926-1933) e depois o Estado Novo não acolheram apenas os católicos e os monárquicos, mas também muitos republicanos moderados. Para estes, o salazarismo apareceu como a consumação de um ciclo histórico. |
Os republicanos guiavam-se muito pela crónica da revolução francesa de 1789. Era, para eles, o guião pré-estabelecido da história contemporânea. Desde 1910 que os críticos do “jacobinismo” do PRP previam que, como em França em 1794, tudo desembocaria fatalmente num “9 do Termidor”, seguido de um “18 de Brumário” e da respectiva ditadura militar. Depois de 1926, sentiram que tinha sido isso que acontecera. |
Mas como recompensou Salazar a colaboração ou a simples apatia da “direita republicana” e do PRP moderado? Como é que os ajudou a resistir à chantagem dos esquerdistas e de outros inconformados, que denunciaram o salazarismo como uma “traição à república”? Precisamente garantindo que a dinastia não seria restaurada, respeitando o princípio da separação da Igreja e do Estado, mantendo o hino e a bandeira escolhidos pelo PRP em 1910, e comemorando o 5 de Outubro, em concorrência com a esquerda anti-salazarista. A república tinha sido um grande equívoco: uma democracia que era, na verdade, a autocracia de um partido. Depois de 1926, o equívoco continuou, quando uma ditadura conservadora manteve os símbolos da república radical. |
A propósito da “noite sangrenta” de 19 de Outubro de 1921, pode ouvir aqui o episódio do podcast E o Resto é História em que falámos do centenário desse linchamento. Na última edição do programa, conversei com o João Miguel Tavares sobre a Roménia e o Qatar. Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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