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Um país independente chamado Brasil. E o Portugal que daí resultou |
Ao contrário do que diz a lenda, os governos da antiga monarquia tinham a ilustração suficiente para perceber a necessidade de reformas. D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi provavelmente o mais lúcido e culto ministro que alguma vez passou pelo governo de Portugal nos últimos duzentos anos. Foi também um dos mais radicais, decidido a fazer assentar a monarquia portuguesa numa economia aberta, integrada no mercado internacional. |
Não é verdade que o “Antigo Regime”, como depois se lhe chamou, fosse necessariamente imobilista, nem que tivesse sido indispensável uma revolução para modernizar o reino de Portugal. Mas depois de 1808 a via reformista oficial estava comprometida. O poder ficou deslocado e dividido pela ausência do rei no Brasil e pela intervenção da Inglaterra na governação em Portugal. |
Acima de tudo, as guerras criaram um instrumento de mudança. As necessidades de defesa impuseram a formação e manutenção de um exército enorme, com uma nova organização, sob o comando do general britânico Beresford. Os seus oficiais adoptaram entusiasticamente a moda da maçonaria, trazida pelos oficiais estrangeiros de serviço em Portugal. As campanhas da guerra peninsular fizeram-nos ver-se a si próprios como heróis. Daqui foi um passo para os comandantes militares se sentirem “pais da pátria”. |
Em 1818, o exército ainda contava com 50 mil homens, absorvendo cerca de 80% da despesa do Estado. Era, em relação à população, um dos maiores da Europa, quatro vezes o tamanho dos exércitos da Grã-Bretanha em 1816 e da França em 1787. Não era possível manter uma força tamanha, sem essa força se tornar um poder político, como viria a acontecer durante a I Guerra Mundial (1914-1918) e as guerras em África na década de 1960. |
No caldo de patriotismo deixado pelas invasões francesas, a direcção do exército por oficiais ingleses e a política brasileira da corte tornaram-se motivos de debate e, como não podia deixar de ser, de conspiração. Em 1817 correu o rumor de que o governo do Rio de Janeiro se preparava para trocar Portugal pelo Uruguai, o que serviu para incendiar ainda mais o patriotismo. |
Em Maio desse ano, Beresford prendeu umas dezenas de pessoas, sobretudo militares, entre os quais o tenente-general Gomes Freire de Andrade. Foram acusados de preparar um golpe de Estado. Gomes Freire era Grão-Mestre de uma federação de lojas maçónicas, o que os governadores do reino aproveitaram para proibir as sociedades secretas. No entanto, se Gomes Freire era maçon, os que o denunciaram também. A cultura maçónica terá criado heterodoxia e cimentado solidariedades conspiratórias, mas a organização maçónica nunca constituiu o comando central das revoluções. |
Um novo país |
Depois da execução de Gomes Freire, magistrados e militares continuaram a afligir-se com o destino da Pátria. Rumores sobre a ruína do Tesouro público, sobre os abusos do general Beresford ou ainda sobre uma possível guerra com a Espanha, provocada pela política do governo do Rio de Janeiro de expansão no Rio da Prata, nunca cessaram de inspirar apreensão e desgosto. O próprio governo em Lisboa parecia desmoralizado. |
Tudo finalmente se precipitou no ano de 1820. Em Janeiro, o exército em Espanha “pronunciou-se” e forçou o rei a repor a constituição de 1812. Os revolucionários espanhóis enviaram logo emissários a encorajar os descontentes portugueses. A 24 de Agosto de 1820, foi a vez do “pronunciamento” português. Aconteceu no Porto. As tropas saíram à rua, para ouvir os coronéis ler proclamações apocalípticas, em que o reino era dado como perdido, e uma constituição escrita vista como salvação. Depois houve uma reunião na câmara municipal para eleger uma junta de governo provisório. A partir daí, nos meses seguintes, as grandes guarnições militares da monarquia, na Europa e na América, imitaram o pronunciamento do Porto. Em Setembro, foi a vez de Lisboa; por fim, já em Fevereiro de 1821, do Rio de Janeiro. |
Estes movimentos do exército levaram à eleição, em Portugal, de uma assembleia constituinte, cujos deputados reivindicaram a “soberania nacional”. O rei foi forçado a regressar do Brasil. Os deputados em Lisboa fizeram uma Constituição, pronta em 1822, e começaram a discutir um programa de reformas administrativas e eclesiásticas. |
Anos depois, tornou-se hábito menosprezar estes deputados “vintistas”, e atribuir-lhes a intenção de reviver em Lisboa cenas da república francesa de 1792, ou de reduzirem o Brasil novamente a colónia. É um equívoco. Os deputados, mais do que inovar, queriam pôr termo às inovações representadas pela deslocação da corte para o Brasil ou pelos planos comerciais de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Como todas as revoluções contemporâneas, a de 1820 teve também algo de reaccionário. |
De resto, os deputados pareceram sempre conscientes de que formavam o parlamento de uma monarquia intercontinental, e de que as potências europeias não tolerariam émulos de Robespierre. Por isso, mantiveram a monarquia e a dinastia de Bragança, o catolicismo como religião do Estado e reservaram … lugares na assembleia para os representantes do Brasil. Mas pretendiam sem dúvida, para obstar à deriva governativa desde 1808, fazer o governo depender do parlamento, e repor a sede do governo em Lisboa. |
No Brasil, muitos magistrados e militares locais não apreciaram o projecto. Até partilhavam as filosofias dos deputados lisboetas sobre a “soberania nacional”, mas sentiram que uma reorganização do “Reino Unido” no sentido de fixar a capital em Lisboa os iria menorizar. O príncipe real D. Pedro, que ficara no Brasil para o governar, sentiu o mesmo. Foi esse o motivo da separação do Brasil em 1822. Só depois, os “portugueses da América”, como então se dizia, começaram a cultivar uma identidade nacional diferente, enquanto “brasileiros”. Como resumiu o historiador Evaldo Cabral de Melo, “o Brasil não se tornou independente porque fosse nacionalista, mas fez-se nacionalista por haver-se tornado independente”. |
Em Portugal, depois da separação do Brasil, foi também preciso reinventar quase tudo. Uma monarquia intercontinental desagregara-se e estava agora reduzida na Europa a um pequeno reino. Esse reino europeu era, do ponto de vista da antiga monarquia luso-brasileira, um país tão novo como o Brasil. |
A evolução política do Portugal europeu é, aliás, muito similar à do Brasil. Tal como os brasileiros, muitos portugueses contestaram a Constituição e o poder das Cortes de Lisboa. Tal como no Brasil, os contestatários juntaram-se à volta de um dos filhos do rei: no Brasil, foi o príncipe real D. Pedro que comandou a revolta; em Portugal, foi o infante D. Miguel. É verdade que D. Pedro pretendia ser “constitucional” e D. Miguel “absolutista”, mas o que ambos fizeram, D. Pedro no Brasil em 1822 e D. Miguel em Portugal em 1823, foi pôr termo ao governo dos liberais de 1820. Em Portugal, o resultado foram vários anos de guerra civil. Tudo acabou, a partir de 1832, com a imposição à força do sistema constitucional e das reformas pelos chamados “liberais”. Os franceses tinham deixado Portugal, mas não como o tinham encontrado. |
Na próxima edição continuarei a viagem (que comecei na semana passada) por esse século liberal que ajudou a fundar o Portugal Moderno. |
E já que se fala da independência do Brasil, pode ouvir o episódio do podcast da Rádio Observador E o Resto é História em que abordámos esse momento: pode ver aqui em formato vídeo ou ouvir aqui em formato áudio. |
Na última edição do programa, conversei com o João Miguel Tavares sobre o Brasil. E tentei responder a três questões: porque é que o país nasceu império (e não reino); porque é que a independência foi feita por crioulos (e não indígenas); e quando é que o português dos dois países se afastou, dando origem ao sotaque que tão bem conhecemos? Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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