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O liberalismo na transição do século XIX para o século XX |
Os liberais quiseram que o país fizesse figura no concerto das nações. Talvez que no século XVIII o império luso-brasileiro tivesse contribuído para tornar Portugal mais pobre, através da clássica “maldição dos recursos”. Mas para a elite portuguesa ficara a memória do estuário do Tejo, diante de Lisboa, cheio de navios, e sobretudo o interesse que a monarquia portuguesa inspirara às grandes potências europeias no tempo do Brasil. |
Em 1890, um diário de Lisboa explicava que todas as nações precisavam de um ideal colectivo, e que o português era “continuarmos, segundo a civilização moderna, a tradição das façanhas cavalheirosas que deram famoso renome aos nossos maiores”. |
Depois da separação do Brasil, em 1822, o ultramar reduzira-se à Índia e a alguns entrepostos de comércio de escravos em África, em decadência desde que o marquês de Sá da Bandeira proibiu o tráfico a 10 de Dezembro de 1836 (a escravatura seria proibida, já depois dos EUA, mas antes do Brasil). Durante décadas, essas possessões da costa de África para pouco mais serviram do que para deportar criminosos da metrópole. A maior parte morria de febres, numa costa de África que assim justificava o apodo de “mortífera”. Mas foram esses pequenos fortes e povoações que deram aos governos portugueses argumentos para reivindicarem um papel de civilizadores do “continente negro” quando as outras potências europeias se interessaram pela ocupação. Foi o que fizeram na Conferência de Berlim de 1884-1885 e depois em acordos bilaterais com a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha, de que resultou o reconhecimento internacional da soberania portuguesa sobre enormes territórios que nunca tinham visto um português. |
Poucos acreditaram que o Estado tivesse meios para os ocupar efectivamente, quanto mais para os dotar das infraestruturas de comunicação e transporte necessárias. Alguns, por isso, chegaram mesmo a pensar na sua venda. Mas, para os governos liberais, África era a possibilidade de provarem que podiam contribuir para espalhar no mundo uma “civilização” europeia de que, por vezes, se sentiam marginalizados no seu canto da Península Ibérica. Nem que essa “civilização” tivesse de assentar, como assentou desde o Código de Trabalho Rural de 1899, na sujeição da população nativa a um sistema de trabalho forçado administrado pelas autoridades coloniais. |
A partir da década de 1890, o Estado teve de pagar a factura dessa missão civilizadora com sucessivas campanhas de ocupação militar, custosas e incertas: a 25 de Setembro de 1904, no sul de Angola, depois de uma longa marcha no sertão, 18 oficiais e 277 soldados portugueses foram mortos num só dia por milhares de guerreiros Cuamatos. |
Mas foi assim que Portugal chegou ao século XX ao lado das grandes potências da Europa ocidental, com um novo “império” em África. A ignorância de uns e as conveniências de outros atribuíram-lhe depois uma idade de 500 anos, como se a navegação portuguesa do século XV tivesse ocupado os sertões. De facto, com a configuração territorial que correspondeu após 1974 aos novos países de língua portuguesa, o novo “império” foi mais uma invenção liberal. Angola, Moçambique ou a Guiné foram herança dos diplomatas e militares do século XIX, tanto ou mais do que dos navegadores dos séculos XV e XVI. |
A matriz liberal da sociedade portuguesa |
Em 1910, os liberais desapareceram enquanto classe política. Foi uma grande surpresa. Os liberais deixaram os republicanos derrubar a monarquia com a expectativa de que iriam continuar a governar o Estado sem o rei. Mas acabaram, também eles, por serem varridos do poder. Recolheram aos seus empregos e às suas quintas. Poucos continuaram interessados em política. Basicamente, começaram a deixar de ser uma classe política para passarem a ser apenas uma classe social. |
Nalguns casos, as famílias chegaram a perder a noção da importância dos seus antepassados, e – para actual desespero dos historiadores – a negligenciar a papelada dos seus escritórios. É óbvio que com a revolução republicana em 1910 e depois a instauração do Estado Novo em 1933, a vida política em Portugal mudou completamente. Deixou de ser, como os liberais quiseram que ela fosse, uma discussão civilizada entre uma elite de cavalheiros à procura de consensos, para se tornar uma espécie de guerra civil, umas vezes mais quente e outras mais fria. Tanto os republicanos como os salazaristas criticaram e renegaram os liberais. No entanto, a maior parte das estruturas criadas pelos liberais permaneceram. |
A obra liberal fazia parte da cultura do país. Por entre mais e menos liberdade, as constituições da República e do Estado Novo continuaram a tratar formalmente os portugueses como indivíduos autónomos e iguais entre si. Mesmo a constituição de 1933, de um regime que se queria “corporativo”, assente em “corpos intermédios” (famílias, municípios, freguesias, sindicatos e associações de produtores, etc.) e não em indivíduos, fundou a ordem política nos mesmos princípios das constituições do liberalismo: a soberania era da nação, entendendo-se esta como “todos os cidadãos portugueses”; estes cidadãos eram individualmente titulares de “direitos e de garantias”; o seu voto elegia uma Assembleia Nacional, que fazia as leis. Nenhum regime dispensou a eleição regular de assembleias representativas, por mais condicionadas ou falsificadas que fossem as votações. |
Os códigos de direito dos liberais permaneceram em vigor: o Código Civil de 1867, por exemplo, só seria substituído em 1966, e o Código Penal de 1886 durou até 1982. Ninguém se atreveu a restaurar a pena de morte, abolida em 1867. Nos liceus, fundados pelos liberais, gerações de alunos continuaram no século XX, através de vários regimes políticos, a estudar Almeida Garrett e Alexandre Herculano, os dois principais escritores do liberalismo. Os grandes jornais fundados pelos liberais no século XIX permaneceram, até à divulgação da rádio e da televisão, a principal fonte de notícias e de anúncios: o Diário de Notícias (1864) e o Século (1881) ainda eram os mais importantes diários da manhã em Lisboa em meados da década de 1970, tal como o Comércio do Porto (1854), o Primeiro de Janeiro (1868) e o Jornal de Notícias (1888) no Porto. |
O Estado continuou, como sob regime liberal, a plantar árvores e a abrir estradas. As cidades mantiveram as estátuas e os nomes dos políticos da monarquia constitucional nas praças, ruas e avenidas. A toponímia lisboeta, por exemplo, é um “quem é quem” do regime liberal: praça D. Pedro IV, praça duque da Terceira, avenida Fontes Pereira de Melo, praça duque de Saldanha, avenida Joaquim António de Aguiar, avenida duque de Loulé, etc., para além das referências a acontecimentos (avenida 24 de Julho) e a valores (avenida da Liberdade) caros ao liberalismo. Nas assembleias de associações e empresas, sobreviveram os costumes parlamentares criados pelos liberais. Alguns clubes conservaram o ambiente do século XIX, como o Grémio Literário em Lisboa ou o Clube Portuense. |
O Estado Novo trouxe para a área do poder os inimigos filosóficos do liberalismo. Significativamente, nunca conseguiram convencer Salazar de que seria possível restaurar a monarquia absoluta ou a ortodoxia católica. Isto deveu-se menos ao impacto da revolução republicana de 1910 do que à aculturação liberal da sociedade portuguesa. Sem o liberalismo, nada em Portugal faz sentido. |
E já que se fala dos símbolos do liberalismo, pode ouvir o episódio do podcast da Rádio Observador E o Resto é História em que falámos do coração de D. Pedro IV. |
Na última edição do programa, conversei com o João Miguel Tavares sobre o centenário da descoberta do túmulo de Tuttahkhamon no Vale dos Reis, no Egipto. Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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