Sabemos que nunca foi pacífico um governo central europeu. A história europeia está velha de mostrar que os impérios se sucedem uns aos outros desde a Antiguidade até aos dias de hoje. Os reinos deste mundo caem. E nós sabemo-lo por experiência própria.

Precisamente porque é formada por povos distintos e porque sempre foi permeável a povos vindos de outros continentes, a Europa viveu apogeus e declínios significativos. Houve tempos em que as culturas e as religiões souberam conviver neste espaço e épocas em que essa coabitação se revelou impossível. Mas é verdade que a convivência com o diferente foi sempre motivo de maior riqueza social, cultural e mesmo económica.

Não é de hoje, portanto, a confusão de povos e culturas num mesmo Continente. Mas é de hoje a gritante falta de horizonte e de influência europeia no tabuleiro estratégico mundial. O Papa Francisco, no Parlamento Europeu, embora de um modo educado e simpático, constatou a verdade: “A uma União mais alargada, mais influente, parece contrapor-se a imagem duma Europa um pouco envelhecida e empachada, que tende a sentir-se menos protagonista num contexto que frequentemente a olha com indiferença, desconfiança e, por vezes, com suspeita.”

Esta Europa que conhecemos está a morrer e ninguém quer aceitar. E não aceitar a realidade é a melhor receita para não alterar nada. Mas a questão premente põe-se: é possível alteramos radicalmente as políticas de integração multicultural e étnica reaprendendo a convivência entre os diferentes povos num mesmo palco geográfico, encontrando alguma harmonia?

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O contributo da fé cristã

O que pode oferecer o cristianismo à situação atual que se vive na Europa e no mundo, especialmente na geografia mediterrânica?

A Igreja é praticamente a única instituição que atravessou toda a história dos últimos dois mil anos e manteve a sua identidade. Fê-lo, é verdade, a um preço alto. Perdeu muitas vezes o Norte, deixou-se influenciar pelo poder do mundo, fez cedências que não devia, errou e cometeu pecados.

Mas este alto custo permitiu que a cultura europeia se construísse. Proporcionou a ponte única entre a Antiguidade e a Idade Moderna através dessa superficialmente chamada “Idade das Trevas” que foi a Idade Média. Os escritos, as bibliotecas, as escolas, as universidades, a arte, os hospitais… sim, tudo isso a que a nossa geração iluminada chama obscurantismo foi o rio de águas, mesmo que turvas, por onde navegou a nossa cultura e constitui o que hoje somos.

Esta ponte entre Idades e Geografias foi mais do que estrada; foi autêntica construção de Comunidade. A Cristandade foi surgindo como o resultado da cultura bíblica do Médio-Oriente, que soube integrar as culturas helénica e romana e dialogar com os povos bárbaros, construindo uma “cultura europeia” que sempre foi referência na amálgama dos diferentes povos que constituem o Continente e o Mundo.

Num globo que mais parece um barril de pólvora, temos hoje uma Europa que deixou de ser referência e que parece estar a implodir. Revela-se incapaz de acolher os milhares de pessoas que desesperadamente sucumbem no Mare Nostrum e nem sequer apresenta o mínimo de competência para integrar os que já cá estão que, sem serem autóctones, constituem já parte da nossa comunidade. O problema grego apenas veio mostrar os sinais de desintegração que a Europa respira por todos os poros.

Hipocritamente, já nem se usa a palavra imigrante. Porque esta obrigava a sublinhar outra: refugiado (também diluída no vocabulário dos impasses políticos). Quando uma família foge de um conflito armado, perdendo tudo o que tem e pede asilo, os seus membros não são imigrantes; são refugiados. A busca de uma solução de acolhimento não tem a ver com políticas de imigração, mas com o estatuto de refugiado. Deixou de haver imigrantes. E refugiados. Agora são todos “migrantes”. E, assim, continuamos a assistir ao drama das famílias que migram encurraladas entre a morte às mãos do Estado Islâmico ou verem as suas vidas engolidas pelo Mediterrâneo.

Era pós-cristã ou pós-laica?

Ao fechar-se ao Transcendente, com a França Laica à cabeça, a Europa desbaratou o que a unia, perdeu o horizonte e desencontrou-se.

Promovermos, e bem, a laicidade do Estado, mas caímos, e mal, na insistência do laicismo da sociedade. Em nome de uma qualquer liberdade e suposta neutralidade, derrubamos as estátuas dos papas com as suas cruzes ou impedimos as muçulmanas de usarem saias “demasiado” compridas.

Como se o laicismo fosse neutro! A neutralidade é pura ilusão. O laicismo é uma posição ideológica como qualquer outra, que recusa o valor social e cultural da religião e a empurra para a esfera privada promovendo a horizontalidade exclusiva da sociedade humana. O resultado é o panorama atual. Um vazio absoluto que nos fecha num cepticismo estéril. Tudo tem o mesmo valor, o que equivale a afirmar o sem-valor de tudo. Deixamos de ter uma direção, um futuro, um sentido.

A Europa pensa que ainda vive na era pós-cristã. Mas essa época passou. Vivemos o pós-laicismo e ainda não percebemos. O Estado Islâmico, à sua bárbara maneira, já o intuiu. À falta de uma oferta de um valor absoluto por parte da sociedade ocidental, estes fundamentalistas oferecem uma “razão” pela qual vale a pena viver, morrer… e matar! E o mundo vai assistindo, inerte e impotente à barbárie.

A Europa não pode não reassumir a sua identidade. É no diálogo com o diferente, mas sem negar, antes afirmando, a sua matriz cristã, que o caminho urge ser percorrido. S. Bento soube ver que a união em torno ao evangelho de Cristo era possível, apesar das diferenças culturais. A União Europeia iludiu-se pensando que o euro poderia substituir Cristo como o alicerce seguro dessa união. Ora et labora, porque contemplar e acolher humildemente o Mistério e trabalhar para construir o futuro é dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. A fundação e expansão de uma Ordem pela Europa deu-lhe uma coesão que desesperadamente hoje nos falta.

Sacerdote católico, jesuíta