O principal resultado da política externa da Rússia em 2004 consiste em que os seus dirigentes se envolveram num conflito não só desnecessário, mas também arriscado do ponto de vista do futuro desse país e do mundo.

Segundo alguns observadores em Moscovo, a decisão de Vladimir Putin de ocupar a Crimeia teria sido emocional e com base nas informações dos seus conselheiros de que a Rússia tinha meios para responder a qualquer tipo de reacção do Ocidente caso este decidisse avançar com sanções.

Os resultados estão à vista: o Ocidente não se conformou com ocupação da Crimeia e, sobretudo, com a desestabilização no Leste da Ucrânia por separatistas pró-russos, ao contrário do que fizera em 2008, quando as tropas russas ocuparam parte do território da Geórgia. Isso bastou para se verificar que o poderio económico russo está longe de corresponder às pretensões geopolíticas desse imenso país.

Além disso, não eram segredo para ninguém os pontos fracos do Kremlin, principalmente a quase total dependência da economia russa em relação à exportação de hidrocarbonetos. Assim, a queda do preço do petróleo e as sanções financeiras para com a Rússia provocaram fortes estragos na economia russa mais cedo do que muitos imaginavam. A queda brusca do rublo é a face mais evidente desses prejuízos.

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Vladimir Putin desdramatiza a situação, prometendo superar a crise do seu país em dois anos, mas a questão é saber como o fará se não o fez durante os 14 anos em que já está no poder, anos em que beneficiou de um preço do barril do petróleo a mais de 100 dólares, quando agora o barril está a 60 dólares e o prazo é cinco vezes mais curto.

Quando o actual dirigente russo chegou ao poder muitos acreditaram, e continuam a acreditar por muito paradoxal que pareça, que ele iria estabilizar a situação política interna, pôr na linha os oligarcas e dar início à modernização e diversificação da economia russa. É certo que normalizou a situação à sua maneira, com a criação da chamada “vertical do poder”, ou seja, com a concentração de praticamente todos os poderes na sua mão, mas não acabou com os oligarcas, nem alterou a estrutura económica. Alguns oligarcas conseguiram sobreviver (Abramovitch, Derepaska, Patanin, etc.) ao sujeitarem-se às novas regras de jogo, e apareceu um novo grupo de sedentos oligarcas ligados por laços de amizade ao dono do país (irmãos Rotemberg, Timchenko, Usmanov, etc.). Quanto à modernização,a política neste campo não passou da utilização do pouco que restou da União Soviética, facto muito evidente na exploração do Espaço e no sector militar.

E aqui convém voltar à Crimeia, pois esta península parece ter algo de misterioso, para o bem e para o mal, na história da Rússia. Em 1856, Moscovo saiu derrotado e humilhado da Guerra da Crimeia. Alexandre II, o czar que então governava o Império Russo, não se limitou a lamentar a derrota, mas deu início a um extenso programa de reformas que, se fosse realizado até ao fim, poderia ter mudado o rumo da história: pôs fim à servidão dos camponeses, começou a dotar o país de uma vasta rede de caminhos de ferro, reformou o sistema judicial e incentivou o poder local (zemstvo), modernizou as forças armadas russas.

Alexandre tinha em mente a criação de uma Duma (Parlamento), o que transformaria a Rússia de monarquia absoluta em constitucional, mas o processo reformador terminou com o assassinato do czar pelos “narodniki” (populistas), precursores do terrorismo moderno, em Março de 1881. Mesmo incompletas, essas reformas fizeram da Rússia um dos países mais fortes da Europa e do mundo de então.

Vladimir Putin considerou o fim da União Soviética “a maior catástrofe geopolítica” do século XX mas, no lugar de tomar medidas para sarar as feridas provocadas no tecido económico, político, social e nacional da Rússia, lançou-se em aventuras que poderão provocar catástrofes ainda maiores. De que valem as palavras se o país não conseguiu manter a aviação civil, se continua a não ter pelo menos uma auto-estrada que ligue Moscovo a São Petersburgo, se está entre os países mais corruptos do mundo, se não consegue garantir à maioria da população assistência médica digna?

A Rússia necessita de crescimento intensivo, e não extensivo, pois este último apenas a enfraquece. Por isso, primeiro é necessário pôr a casa em ordem e só depois ter anseios geopolíticos globais. Mas, pelos vistos, os dirigentes russos têm outra opinião.