Não é bem verdade que a desordem tenha começado em 2020. O que este ano nos deu foi um perceção mais aguda da desordem internacional. Podemos apontar para 2016. O ano em que Trump foi eleito e desfez o papel dos Estados Unidos como produtor de ordem e distribuidor de bens comuns. Além do retraimento estratégico que já perdurava desde Obama (a retirada de Washington de todos os compromissos que não fossem absolutamente vitais), Trump acrescentou o esvaziamento das organizações internacionais – que em boa verdade estão velhas porque foram construídas há 70 anos com outros propósitos e nem sempre foram capazes de se reformar a tempo de não perderem a relevância – o consequente desdém pelo multilateralismo e a novíssima negligência do tipo de regime como fator referencial nas relações internacionais. Não só Trump privou o mundo da hegemonia americana, privou o mundo livre do seu eixo central.

Ou podemos falar em 2012, o ano em que Xi Jinping se tornou o presidente da República Popular da China. Até aí dominava a prudência. Era certo que acreditava quem queria, mas os responsáveis de Pequim bradavam que só procuravam um desenvolvimento pacífico, sem colisão com outras potências. A ordem americana servia a Pequim; garantia-lhe crescimento económico e ainda boa vontade dos Estados Unidos, na esperança que a crescente classe média chinesa viesse a reclamar mais liberdade. Nada disso aconteceu. Xi chegou e abriu o jogo. A China quer reorganizar o mundo: quer ter zona de influência; não quer os Estados Unidos a rondar a sua vizinhança; quer ser o líder da globalização, por ausência americana; quer dominar as rotas terrestre e marítima da seda, porque é através do poder económico que pretende ir dominando o mundo; reorganizou e aumentou exponencialmente as suas forças armadas; desenvolveu a sua tecnologia; passou-lhe a vergonha de assumir o tipo de regime que conduz, com muito pouca liberdade e uma enorme dose de vigilância. Tentou, sem sucesso, dar ordem à desorganização internacional gerada pela pandemia. Mas ficou bem claro que não desistirá da sua intenção de se estabelecer como grande potência internacional.

Podemos ainda falar de 2014. O ano em que a Rússia invadiu e anexou a Crimeia sem que nenhum outro Estado a tentasse impedir ou reverter, de maneira consequente, a sua grosseira violação da integridade territorial ucraniana. Foi uma vitória para Moscovo. O direito internacional público, que sempre evocou para censurar investidas ocidentais, aplica-se a tudo, menos à sua própria esfera de influência. Mais: entrou pelo Médio Oriente adentro através da guerra civil da Síria (mais uma vez por ausência ocidental) e estabeleceu-se como uma potência regional. Baralhou ainda as contas ocidentais: através de métodos “híbridos” – e aproveitando as crises do Ocidente – dividiu, se não para reinar, pelo menos para enfraquecer o seu eterno adversário: a relação privilegiada entre a Europa e os Estados Unidos e a União entre os Europeus. Apoiou partidos antieuropeus, disseminou notícias falsas. Não se sabe, até hoje, a verdadeira repercussão dos atos de Moscovo – e provavelmente nunca se saberá –, mas é difícil acreditar que não tenha tido influência nenhuma na degradação das democracias ocidentais. Putin sabe que a Rússia não pode ser, nas atuais condições, uma grande potência. Mas sabe que no duelo, que também se tornou impossível de ignorar, entre os Estados Unidos e a China, pode ser uma espécie de pêndulo, o que lhe dá uma importância internacional acima das suas possibilidades.

E a Europa? Confusa. Apesar de ter tido um comportamento acertado na questão da recuperação económica, o abandono do seu aliado central mergulhou-a numa crise existencial que as outras crises mais prementes têm escondido, mas que está lá. Sabe-se que clama “autonomia estratégica”, mas ainda não é certo se é uma autonomia aliada à América de Biden, se é uma autonomia verdadeira, em que os Estados passarão verdadeiramente a cuidar de si no que verdadeiramente interessa: segurança, autonomia nas cadeias de distribuição de bens essenciais, autoridade para decidir o seu próprio destino nos anos turbulentos que se avizinham.

É que em ano de pandemia, aprendemos muito sobre o mundo. Aprendemos que há uma disputa de poder entre os Estados Unidos e a China, em que a Rússia quis ser o fiel da balança de um lado ou de outro, consoante as suas necessidades nacionais. Parece que Biden vem decidido a mudar a estratégia americana, reunindo as democracias à volta de um novo mundo livre contra as autocracias russa e chinesa (esta é a ordem do presidente eleito) ou quaisquer outras que se venham a insurgir. Sobre este tema, falaremos, decerto, muitas vezes para o ano. Deste fica uma lição: estamos numa transição de poder em que o declínio dos EUA e a ascensão da China os transformaram em adversários naturais. Que esta disputa tenderá a ser muito longa, até que haja algum tipo de entendimento ordenador entre os rivais, ou algum decaia sem regresso, e que outros atores internacionais – a Rússia, com certeza, a Índia, provavelmente, e a União Europeia, se fizer por isso – interferirão nesta contenda. Até lá, teremos um mundo incerto em que a nossa melhor alternativa é voltar às velhinhas regras do poder e voltar a acreditar que a nossa melhor garantia é a autoajuda. Se vierem alianças, melhor.

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