Chegou a altura dos balanços e, tirando as normais exceções dos que ganham com as desgraças alheias, quase ninguém quer voltar a ouvir falar deste ano de 2020.

Foi mau demais. Desde as vidas que se perderam à crise económica global.

Relativamente ao vírus infame, que na primeira vaga “fingiu” ser inofensivo em algumas zonas do globo ao mesmo tempo que ceifava vidas noutras, acabou por equalizar todos mais ou menos pela mesma gravidade durante a segunda vaga. Veremos como corre a terceira. Um vírus que matou sobretudo idosos e pessoas com problemas de saúde e co-morbilidades, mas que foi mais além da morte pela sua ação natural. Trouxe com ele o medo e a incerteza sobre o que é verdadeiro ou o que é falso. O que é grave ou inofensivo. O que é estúpido e o que é sensato ou inteligente.

Num cenário ideal de pandemia (se é que existe), os próprios cidadãos tomariam as devidas precauções de distanciamento social, evitariam contactos (neste caso com os mais velhos e vulneráveis), evitariam sair de casa, higienizar-se-iam de forma constante, usariam máscaras quando não fosse possível manter a distância. Um comportamento de responsabilidade com a informação e recomendações permanentes das autoridades de saúde. Talvez soe ao “modelo” sueco, mas foi isto que aconteceu ao longo dos últimos anos.

Uma pandemia, traz, por si só, consequências ao nível da economia, pois menos gente está disposta a sair de casa e a viver normalmente quando existem riscos de saúde publica, especialmente para os familiares mais idosos.

Mas 2020 teve mais do que uma pandemia. Além da Covid-19, teve ainda a pandemia do medo e a pandemia da estupidez.

O medo terá sido a fórmula inicial encontrada para sensibilizar alguns cidadãos a tomarem decisões preventivas, especialmente em reação à Covid-19, com elevado grau de transmissibilidade. Contudo, rapidamente e ao longo do ano, se, por um lado, diminuía o medo relativamente ao vírus, por outro, ele manifestava-se face às medidas de contenção idealizadas e forçadas pelos governos e autoridades públicas em todo o mundo.

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Assistimos vezes de mais ao medo, não do contágio, mas das multas e da fiscalização apertada aos pequenos empresários, sobretudo da restauração e pequeno comércio.

A repressão passou a ser prática dominante em vez da sensibilização e educação. O medo acabou por divergir do vírus para as consequências de não cumprir as regras.

Se este medo evitou contágios e mortes? Talvez sim. Mas também pode ter causado perturbações ao nível psicológico em adultos, crianças e jovens, além de os ter encurralado entre a racionalidade e a arbitrariedade de algumas medidas.

O medo também, de falar, questionar e opinar.

E ainda que muitos cidadãos o façam desbragadamente (com todo o direito) e repetindo falsidades que, vindas de todos os quadrantes, inundam as redes sociais e os media, há muitos outros que têm medo de questionar quem aparenta ter mais autoridade sobre diversas matérias. Mesmo entre pares e até com mais conhecimento e experiência, existiu, ao longo de 2020, muito medo de “destoar” da maioria e da “narrativa” dominante.

O que nos transporta para a terceira pandemia, a da estupidez.

2020 deveria ter sido o ano ideal para a ação inteligente, mas, tal como uma moeda com duas faces, também houve casos em que foi a estupidez que reinou.

A tentativa de ignorar a existência do vírus terá sido a mais evidente. Mas a tentativa de controlar o vírus por decretos não ficou atrás.

Em resumo, durante o ano de 2020 observámos governos a decidir em cima dos acontecimentos, a agir sem contemporizar as consequências, movidos apenas pela popularidade e gestão de imagem nas redes sociais. Estratégias draconianas, não para debelar o vírus, mas perpetradas para manter o poder.

Vimos imensas medidas desconexas, incoerentes e ridículas, até, serem postas em prática criando desequilíbrios nas economias e gerando ainda mais vítimas além do vírus. Medidas desprovidas de explicações que transformaram a pandemia num circo com performances variadas desde os teóricos das conspirações, passando pelos fanáticos da higiene e terminando nas milícias de moralistas e vigilantes dos costumes e ações, policiando e denunciando vizinhos e promovendo cisões sociais das quais poderemos não vir a recuperar.

Ninguém sabe ainda toda a verdade nem é possível sabê-la. Mas sabemos que, por exemplo, na pandemia de 2009 (H1N1) ocorreram situações algo semelhantes às de 2020. Mais tarde, acabaram por surgir acusações aos responsáveis da Organização Mundial de Saúde pelo exagero e pânico criados. A OMS foi acusada de ter criado uma falsa pandemia para beneficiar a indústria farmacêutica.

Porque também nessa altura surgiram vacinas de emergência já num ambiente de desconfiança. Desta vez, aplaudimos a ciência e a indústria pela rapidez com que apareceram inúmeras vacinas experimentais, onde a responsabilidade pelas consequências do seu uso não está clarificada e cujos custos e financiamentos eram quase um dos “segredos” de Fátima.

A desconfiança não surge espontaneamente. Tem origem em ações políticas sem as devidas explicações e tem origem na falta de transparência.

Muitos governos estão a agir como se fosse possível eliminar o vírus trancando todos em casa e evitando o contacto humano. E daí, talvez esta fosse mesmo a melhor opção. Colocar imediatamente toda a gente de quarentena por dois meses, criando um serviço especial de entregas de bens essenciais como alimentos, medicamentos, etc. As viagens entre países seriam canceladas de imediato, bem como deslocações entre municípios. Todos os cidadãos teriam direito, neste período de tempo, a uma compensação financeira garantida, fixa e igual para todos. Quem não tivesse casa, os Estados garantiriam alojamento. Seriam suspensos todos os direitos à privacidade eletrónica e de saúde, obrigando a sua partilha numa aplicação eletrónica que funcionaria.

Esta “prisão sanitária temporária” excluiria os profissionais de segurança, saúde e outros considerados essenciais, que receberiam uma compensação de risco além das palmas na varanda. Uma reclusão de 60 dias para “aplanar a curva”, controlar a pandemia e regressar ao normal tão breve quanto possível.

No início de 2020 olhávamos com desconfiança e arrogância para a China. Muitos discriminaram cidadãos chineses. Chegaram mesmo a boicotar os seus produtos e negócios. Culpámos os chineses pela pandemia, assumindo sem complexos uma xenofobia absurda nos dias que correm. Depois, foi a vez dos nossos governantes passarem à ação. Os resultados estão à vista.

Na China, onde tudo começou, onde a liberdade é uma alegoria e onde a democracia vale um partido, o “novo normal” voltou a ser normal. Por cá, cancelamos as festas, o Natal, a família, os pequenos negócios e o futuro.

Cancelamos, finalmente, a liberdade por tempo indeterminado. E até nisto invejamos agora os chineses.