Parece uma data distante, não é verdade? É apenas dois anos mais longínqua do que 1974 para os nossos dias. E aqui estamos, uma semana depois de se terem iniciado as comemorações dos 50 anos da Revolução, a discutir se já vivemos mais anos em democracia do que em ditadura, a ligar os motores para um debate que promete aquecer nos próximos dois anos: a guerra de África, a descolonização, o processo revolucionário, o 25 de Abril, o 25 de Novembro, a Constituição, os novos fascismos. Os temas suceder-se-ão no debate público, enquanto o regime segue indiferente a tudo isso, obcecado com a «comemoração», cada vez mais indiferente à «análise», alheado do futuro.

Começou agora a procura de assuntos que assentem que nem luvas na forma sentimentalizada e entrincheirada com que se discute tudo por esta altura. Um deles é o 25 de Novembro, que o novo ministro da Cultura já fez saber que não deve ser celebrado porque é uma data «fracturante». Se o Partido Socialista se levasse a sério, se fosse justo com o seu legado e o honrasse, seria a primeira força a erguer a bandeira do 25 de Novembro: ela é, acima de tudo, sua e da liberdade. Mas parece que assim não é, porque Novembro divide.

É evidente que a data gera, como gerou em 1975, divisões: entre aqueles que defenderam uma democracia liberal, de tipo europeu e ocidental, um país de liberdades plenas, e aqueles que pretendiam implementar em Portugal uma ditadura de tipo comunista a que, ainda hoje, gostam de chamar, lírica ou cinicamente, «democracia». Esta posição continua a ser legítima, o direito a defender este tipo de excentricidades não deixou de existir. Tal como o 25 de Abril é uma data fracturante: dividiu aqueles que queriam o fim de uma ditadura e os que pretendiam que ela se mantivesse. E, imagine-se, ainda há quem coloque a data em causa – e o direito a essa excentricidade deve também ser reconhecido. Mas se começamos as comemorações do 50.º aniversário do 25 de Abril neste ponto, temo que já não haja muito a fazer: o regime passou a ter vergonha de si mesmo para não ofender partidos ou agremiações de democraticidade no mínimo duvidosa.

Temo, talvez erradamente, que a efeméride que se assinalará em 2024, fruto da forma como se resolveu formalizar a comissão para o efeito, venha a ser meramente digna de canapés distribuídos por uma clique que se frequenta mutuamente, por um lado, e puramente propagandística, no sentido da narrativa simples e indiscutível, por outro. Podemos estar em vias de perder uma oportunidade de ouro para apaziguar o passado.

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A história da nossa consolidação democrática é uma história de indiscutíveis sucessos, mas também de inúmeros fracassos (o maior deles, talvez, o facto de, 50 anos depois, continuarmos a ser um dos países mais pobres da Europa, ainda que indubitavelmente mais ricos do que em 1974), muitos silêncios, muitas dores individuais e de grupos concretos. Do mais de meio milhão de refugiados das ex-colónias, e da forma como foram recebidos, aos soldados negros que combateram na guerra pelo lado português, e que acabaram, uns, abandonados à tortura e à morte pelas forças africanas, ou outros, deixados à sua sorte pelas ruas de Portugal, sem apoios e até sem nacionalidade, passando por todo o contexto da violência e criminalidade de inspiração política exercidas já em consolidação democrática ou mesmo em integração europeia, sem justiça devida e sem dignidade, que o País acabou por esquecer, ou mesmo das vítimas do PREC, entre perseguidos, torturados, assassinados, alvos de violações de liberdades de expressão, de associação ou de circulação, há um mar de assuntos que o 50.º aniversário do 25 de Abril podia aproveitar para clarificar, para um momento de redenção, uma forma de ganhar balanço para os 50 anos seguintes.

A democracia portuguesa venceu e consolidou-se graças aos consensos alcançados entre os três grandes partidos democráticos: PS, PSD e CDS. O que estas três forças representavam não era a fórmula simplista do «arco da governação»: era a certeza de que havia representatividade, pluralidade e divergência, à esquerda e à direita, dentro de um chão comum de liberdades plenas, de progresso, de preocupações sociais, de recusa dos privilégios, de vocação europeísta, de aceitação do mundo ocidental em que nos inserimos, de recusa do derrotismo, de acentuação da liberdade de iniciativa, do poder da criação, de um sistema de ensino que dissipasse as diferenças sociais e que promovesse a ascensão social, de um sistema de saúde que oferecesse cuidados aos cidadãos.

Podemos achar que tivemos mais sucesso neste ou naquele aspecto. Podemos até pensar – e eu penso – que este amplo consenso se foi destruindo à medida que os partidos monopolizaram a sociedade civil, à medida que o próprio regime se foi isolando de forma a chegar a esta espécie de impasse em que parece encontrar-se, criando novos privilégios para os que nele habitam, por exemplo. Mas este chão comum foi o que permitiu a uma geração inteira que descendia de camponeses aceder a formação secundária ou superior e, globalmente, viver melhor – enfim, para ser sintético, subir alguma coisa na vida.

Era esse, não obstante todas as diferenças políticas, o desígnio de boa parte daqueles que fizeram o 25 de Abril e daqueles que saíram vencedores em Novembro. Não vejo outra utilidade nas comemorações que se iniciam agora e se encerrarão daqui a dois anos do que estas: por um lado, promover a análise fria do passado; por outro lado, lançar as bases de um novo grande consenso nacional. Este deveria ter como único ponto de partida o País que queremos ser em 25 de Abril de 2074. Temo, porém, padecer, por uma vez, de algum optimismo – isso não se fará com estes partidos, com este Governo, com este Parlamento, com este Presidente. Resta saber com quem se fará porque, não se fazendo, talvez não cheguemos aos canapés do 100.º aniversário do 25 de Abril.