Um estudo do Parlamento Europeu, através da sua Direcção-Geral da Comunicação: Unidade de Acompanhamento da Opinião Pública, que visava estudar a abstenção e os comportamentos eleitorais nas eleições europeias de 2009, confirma-nos algo que se suspeitava: a abstenção na Europa é mais alta na faixa etária dos 18 aos 24 anos (70,9%) e mais baixa acima dos 54 (50%). O estudo indicava igualmente que os níveis mais altos de abstenção (60,1%) se encontram entre quem estudou entre os 16 e os 19 anos de idade e os mais baixos (48.1%) entre quem estudou mais de 20 anos. Parece haver, assim, uma ligação entre maiores percursos académicos e maior participação eleitoral. Este estudo europeu, de 2012, indica como maior razão para não votar (28%) a “falta de confiança com a política em geral“, com 17% referindo que “não se interessa com política“, assim como, com idêntica percentagem, que “o voto não tem consequência“. Consideravelmente depois temos a justificação “em férias/longe de casa“, com 10%, e o “muito ocupado/sem tempo/trabalho“.

No estudo “Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal” (de João Cancela & Marta Vicente), Carlos Carreiras (a Câmara Municipal de Cascais patrocinou este estudo) escreve na introdução que “o governo representativo está em crise. Com a erosão da participação eleitoral, os governos continuam a ser governos, mas representam cada vez menos cidadãos“.

Legitimidade

São as eleições que legitimam os regimes democráticos e se uma grande parte da população, sobretudo se esta parte for superior a metade da população com capacidade eleitoral, não votar então estaremos perante um problema de legitimação da governação e, de facto, quando a percentagem é muito alta estamos perante um sinal claro de que a maioria da população procura uma mudança no regime democrático.

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Os  altos  níveis de  participação nas eleições  fundadoras da democracia portuguesa foram, à época, e ainda hoje podem ser interpretados assim, um  sinal de clara adesão dos cidadãos ao novo regime. E, com efeito, estas eleições serviram para estabelecer em alicerces mais sólidos a democracia em Portugal, graças a uma fortíssima (e jamais superada) taxa de participação eleitoral: a muito baixa abstenção na eleição para a Assembleia Constituinte de 1975 indicou que o novo regime democrático colhia um amplo apoio por parte da população e serviu para legitimar o regime e repelir qualquer desvio autoritário que poderia ter surgido nesta fase da reimplantação da democracia no nosso país. Mas o oposto também é verdadeiro: as baixas taxas de participação eleitoral actuais estão a colocar em causa a legitimidade dos eleitos em governar e realizar, de forma eficiente, os seus programas de governo nacionais ou locais.

O efeito dos vencedores antecipados

A questão da utilidade ou economia do voto parece jogar também um papel importante nos níveis de abstenção: quando os eleitores – tidos enquanto uma entidade colectiva – percepcionam a vitória antecipada de uma lista ou candidato, a abstenção é mais alta e ocorre o oposto quando a maioria acredita que o resultado será marginal ou muito disputado. Isso é demonstrado nomeadamente na taxa de participação nas eleições presidenciais, onde as votações para o segundo mandato têm sido sempre vencidas pelo incumbente e que, por essa razão, as recandidaturas são sempre menos participadas. Pelo contrário, as eleições em que os presidentes não se recandidatam caracterizam-se por aumentos da participação eleitoral. Por exemplo, nas presidenciais de 2016, quase metade dos eleitores recenseados exerceram o direito de voto, naquela que foi a taxa mais baixa de sempre em que o incumbente estava impedido de se recandidatar e este fenómeno parece ser um produto directo da previsibilidade do desfecho eleitoral.

A distância e a simultaneidade dos actos eleitorais

Outro factor que parece ter um grande contributo para a taxa de abstenção pode ser localizado na distância física (local das assembleias e sedes físicas da representação política) entre eleitores e eleitos. Isso explica porque é que as autárquicas são sempre as eleições mais participadas e as europeias as menos. De sublinhar que este fenómeno ocorre em escala europeia sendo estas eleições percepcionadas pela maioria dos cidadãos europeus como de “segunda ordem” (com excepção da Bélgica, onde o voto é obrigatório, e da Suécia, onde o índice de participação tem vindo a subir). A explicação para este fenómeno encontra as suas raízes no distanciamento físico mas também operacional, com a observação da dificuldade de contacto com as instituições europeias, com a inacessibilidade de alguns eurodeputados, os formalismos vazios e ineficientes das petições ao Parlamento Europeu e a quase impossível acessibilidade (em números de assinaturas) de mecanismos como as Iniciativas de Cidadania Europeias. Mas as Europeias expõem também outro fenómeno: nas primeiras eleições realizadas em Portugal para o Parlamento Europeu, em 1987, a taxa de participação foi de 72%. É certo que o valor tem caído desde então, mas este valor pode indicar uma de três coisas: ou um alheamento actual por parte dos cidadãos em relação ao processo de integração europeia (em Portugal nunca houve um referendo ao processo de integração), ou a percepção de um excessivo distanciamento entre as instituições e a vida quotidiana. Mas pode também indicar que uma das formas de reduzir a abstenção pode ser concentrar mais do que uma eleição no mesmo dia. Com efeito, em 1987, as eleições para o Parlamento Europeu foram realizadas em simultâneo com as eleições para a Assembleia da República.

João Cancela, um dos autores do estudo já citado para o Portugal Talks, regista que até nas eleições mais participadas de todas – as autárquicas – se têm registado desde a década de 1970 descidas nos níveis de participação em quase todos os países europeus e que Portugal, neste quadro, não é excepcional. Mas este estudo confirma o que escrevemos mais acima: pelo menos neste tipo de sufrágio, o aumento português da abstenção realiza-se dentro dos padrões europeus (com excepção de Espanha, onde a participação é tradicionalmente muito elevada e da ordem dos 80%).

A abstenção técnica

Por “abstenção técnica” entendem alguns autores (como André Freire) a parcela da abstenção que está a ser exagerada como efeito da presença de inscrições espúrias no recenseamento eleitoral. A abstenção “não-técnica” ou “real” seria assim a que está associada não àqueles que não podiam votar mas aos que, podendo, optaram por não o fazer. Uma forma clássica de identificar o valor da abstenção técnica passa por ligar a taxa de participação à taxa de população em idade de voto. Com este mecanismo, André  Freire e Pedro Magalhães estimaram em 2002 que este tipo de abstenção tinha alcançado os números mais altos em meados da década de 1990 (nesta altura o número de recenseados era superior em cerca de 20% à população em idade de voto).

A actualização dos cadernos eleitorais em 1997 e a criação de um ficheiro central informatizado reduziu essa taxa através da eliminação dos cadernos de muitos falecidos e de inscrições duplas, mas não resolveu totalmente o problema. Foi só a partir de 2008 que, com a interoperabilidade entre o Sistema de Informação e Gestão do Recenseamento Eleitoral (SIGRE) e a plataforma de serviços do Cartão de Cidadão, com a consequente inscrição automática dos eleitores e a actualização imediata dos dados de recenseamento, que a taxa de abstenção técnica caiu significativamente. Isso, contudo, levou também à inscrição automática de indivíduos não recenseados, o que terá provocado um aumento no número de novas inscrições e, logo, da abstenção real.

Apesar destes progressos o problema da abstenção técnica não desapareceu. Pelo contrário: um estudo de 2013, da autoria conjunta de Luís Humberto Teixeira e José António Bourdain, declarava que as Legislativas de 2011 teriam um milhão de inscrições a mais nos cadernos eleitorais e os dados do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA) apontavam na mesma direcção: comparando a população em idade de voto para as legislativas de 2015, o IDEA chegou a uma taxa de participação eleitoral “real” de 61,8%, ou seja, de cinco pontos acima dos 55,8% da taxa oficial.

O problema por detrás da abstenção técnica parece actualmente localizar-se em torno da emigração e da forma como a administração lida com esses eleitores. Com efeito, a saída definitiva do território nacional não implica uma alteração da residência associada à base de dados de identificação civil, o que permite que pessoas que tivessem emigrado tenham ainda a sua inscrição no recenseamento eleitoral mesmo que não estejam já em condições de participarem nos sufrágios.

Também há abstenção “lá fora” mas…

É comum ouvir-se dizer que a abstenção é um fenómeno corrente nas democracias consolidadas e que a sua força pode até reflectir uma certa aceitação por parte dos cidadãos sobre a natureza do regime. Com uma democracia consolidada desde 1975 Portugal poderia encaixar nesta explicação. O problema é que o estudo do Portugal Talks desmente esta interpretação. Aqui se exibem gráficos que revelam uma nítida queda da participação eleitoral dos portugueses desde 1980 quando comparamos com a participação em eleições legislativas e presidenciais noutros países, num movimento que se acentua nas Legislativas desde 1980, nas Presidenciais desde 1986 e nas Europeias desde 1987. Actualmente, Portugal está abaixo da mediana europeia em todos os tipos de eleições. Isto significa que o aumento da abstenção é um fenómeno global, sim, mas que existem factores em Portugal que acentuam a sua intensidade e isto embora o nosso país não seja o caso mais grave na União Europeia já que países como a Roménia e a Eslovénia exibem quedas da participação eleitoral ainda maiores.

Em jeito de conclusão e alerta à democracia

O facto de a abstenção ter alcançado uma percentagem consistente de metade do eleitorado deve merecer a reflexão e acção urgente por parte de todos. Contudo, não existem os mecanismos de estímulo que poderiam levar os dois partidos que, juntos, têm o poder de reunir dois terços dos deputados a alterar as leis eleitorais, que poderiam reverter a situação e, consequentemente, não é de esperar que algo seja feito neste sentido nos próximos tempos.

A abstenção é, contudo, um fenómeno complexo e a sua solução não se pode limitar a uma revisão (por mais ampla que seja) da Lei Eleitoral: quem opta por não participar nos sufrágios escolhe essa opção por várias razões e, por vezes, até acumula motivações de várias ordens e nem todas convergentes. Alguns abstencionistas sê-lo-ão sob qualquer quadro legal e em todas as circunstâncias. Outros deixarão de o ser se o acesso ao voto (o “custo” de votar) descer abaixo de um dado valor (por exemplo com o voto electrónico e remoto) ou se surgir uma nova opção eleitoral (um novo partido ou novos candidatos) que sejam mais compatíveis com a sua própria inclinação política.

Causas da abstenção

  1. A convicção de que “o voto não muda nada”, na linha do pensamento da anarquista Emma Goldman que escreveu que “se o voto mudasse alguma coisa, já o teriam tornado ilegal”. Esta será uma recusa em votar com base ideológica não só porque se acredita que o voto é uma forma ineficaz de acção política mas porque o acto de votar é encarado como uma forma de consentimento ou aceitação do regime político democrático liberal. Nesta linha de pensamento votar num candidato implica aceitar o governo do candidato vencedor, mesmo se discordarmos amplamente das suas políticas.
  2. Existe um sentimento de não-representação em nenhuma das opções de voto.
  3. Convicção de que, seja qual for o resultado das eleições, este implicará sempre o governo de um de dois partidos, PPD ou PS, e que nenhum destes resolverá os problemas da população (“rotativismo democrático”).
  4. Se as sondagens indicarem de forma consistente uma vitória folgada por parte do candidato favorito do eleitor isso constitui um factor de desmobilização do voto. Este fenómeno parece ter ocorrido nas Autárquicas de 2021 em Lisboa e ter tido um papel significativo nos resultados eleitorais.
  5. Crescente descredibilização da classe política devido à sucessão de escândalos relacionados com a política.
  6. Afastamento por parte dos partidos políticos das verdadeiras razões do descontentamento das populações e a distância entre eleitos e eleitores, sendo talvez por esta razão que a abstenção tende a ser mais baixa em autárquicas (as eleições em que existe mais proximidade entre eleitos e eleitores) do que nas outras eleições.
  7. O nível de satisfação com a qualidade da democracia e a confiança generalizada nas instituições (electivas e judiciais) está também relacionado com o nível de participação eleitoral. Isto explica porque é que os níveis de participação nos países escandinavos, por exemplo, tendem a serem superiores aos dos países do leste europeu e da Europa do sul uma vez que é aqui que os indicadores de boa governança tendem a ser mais elevados.
  8. O nível socioeconómico parece relacionar-se de forma muito próxima com a abstenção eleitoral: quanto mais alto este for, maior tenderá a ser a taxa de participação eleitoral.
  9. A abstenção é tradicionalmente maior nos escalões etários sub-30. Segundo o politólogo Mark Franklin (2004) este fenómeno, mais que passageiro, será duradouro e resulta da perda de competitividade das eleições realizadas nas décadas de 1980 e 1990. É, contudo, necessário não estigmatizar os mais jovens por estes baixos níveis de participação eleitoral: é preciso não estar presente nos meios do activismo para não reconhecer a presença, muito activa e participada, de muitos jovens e que, bom número deles não tem qualquer filiação partidária mas estão politizados. O mesmo se regista nas participações em manifestações, petições (físicas ou online) ou em debates políticos (não necessariamente partidarizados) em múltiplos fóruns online. Tudo se passa como se os jovens não reconhecessem o voto como a forma principal de participação política mas se empenhassem mais noutras formas, não convencionais, de participação, dando a entender que estão disponíveis para formas de participação “pós-eleitorais” ou para uma democracia mais participativa do que representativa “pós-partidos”. Este fenómeno explica também o declínio, um pouco por todo o mundo, das juventudes partidárias e da representatividade global dos partidos políticos.
  10. Alguns politólogos (como Mark Gray e Mili Caul em 2000) associaram o aumento da abstenção à perda de relevância social dos sindicatos e partidos políticos. Tidos desde o século XIX como principais agentes de representação dos interesses das classes trabalhadoras, o seu declínio em número de trabalhadores sindicalizados e militantes levou a uma erosão da sua capacidade de influência e, consequentemente, à sua força para mobilizar o eleitorado.
  11. Se no contexto familiar ou do círculo de amigos existirem baixos níveis de participação eleitoral isso tenderá a tornar esse cidadão num abstencionista.
  12. A qualidade das campanhas eleitorais: com recurso à violência verbal, argumentos de carácter, assim como debates com descontextualização, no domínio estritamente eleitoral tende a diminuir a participação. Sublinhe-se, contudo, que a competitividade eleitoral funciona como um factor que contribuiu – na maioria dos países europeus – para reduzir a abstenção. Sempre que existe uma percepção generalizada de que o resultado final será mais disputado, a abstenção cai.
  13. Abstenção de protesto de militantes descontentes com coligações pré-eleitorais ou com a forma como se constituem as listas de deputados ou com deputados específicos que as compõem. Isto foi particularmente visível em Lisboa, nas autárquicas de 2017 e na freguesia de Avenidas Novas no que respeita aos resultados eleitorais do PPD/PSD.
  14. Vários estudos europeus indicam que existe uma ligação entre os níveis de apreciação dos líderes e os níveis de abstenção. Isto é um subproduto da crescente “fulanização” da política partidária e parece imune a noções de política geral, ideologia ou mesmo aos programas que esses líderes levam às eleições.