Um amigo emprestou-me há dias um grosso volume de mil e tantas páginas intitulado ‘Indicador da Lavoura’ que encontrara esquecido no escritório da quinta.

Trata-se de um anuário agrícola de Portugal referente a 1968-69. Não só descreve detalhadamente as produções de cada concelho do país como menciona todos os serviços locais ligados à lavoura, tanto públicos como privados (veterinários, engenheiros agrónomos, regentes agrícolas, etc). E inclui ainda uma listagem nominal dos lavradores portugueses daquele tempo, indicando a respectiva morada, telefone e produtos principais.

Este curioso documento demonstra em primeiro lugar a existência de um Estado muitíssimo bem organizado e competente. Um Estado que se levava a sério e era levado a sério.

Mas revela também uma realidade social e cultural hoje praticamente extinta. A maior parte daquele tipo de lavradores, trabalhadores agrícolas e profissões associadas ao mundo rural já não existem. A agricultura é cada vez mais um simples negócio, baseado na sociedade anónima, na gestão empresarial e no trabalho imigrado do terceiro-mundo, tal como a construção civil e muitas outras actividades industriais.

No breve transcurso de uma geração (em 1968 eu já tinha 11 anos, que diabo!) pulverizou-se todo um modo de vida. Que fora durante séculos a base da existência da maior parte dos portugueses e da própria nação. Porque a agricultura não é apenas uma actividade empresarial, a parente pobre da economia industrial e de serviços. A agricultura é também uma forma de povoamento e ocupação do território, assim como de conservação da paisagem e identidade cultural de um povo. Neste sentido, a agricultura é um dos pilares da soberania. E até o expoente de um conceito de civilização baseado na harmonia entre o homem e o mundo natural – cuja necessidade se torna cada vez mais irrecusável e urgente.

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Claro que é preciso ter em conta também os factores de sucesso da moderna economia agrícola, indispensáveis ao investimento e portanto ao próprio repovoamento. Mas baseá-la na entrega sistemática das terras a fundos financeiros e gestores internacionais e na importação maçica de mão-de-obra não especializada e sazonal, asiática ou africana, não parece ser uma boa ideia.

Assim, a agricultura portuguesa necessita de um novo paradigma. Tendo por base o equilíbrio das necessidades fundamentais de ocupação do território, de soberania alimentar e de conservação do ambiente e património paisagístico, com a sustentabilidade e competitividade económica nas condições específicas do século XXI.

Esta é uma questão acima de tudo política e da maior magnitude. Pelo que o Ministério da Agricultura não deve insistir em considerar-se uma simples delegação ou oficina local da PAC. Poderá antes ser o motor de um Pacto de Regime orientado para aqueles objectivos fundamentais, negociado com todos os stakeholders e capaz de estruturar uma verdadeira política agrícola, de longo prazo e estratégica, para Portugal.

Repare-se como a Holanda está actualmente no topo dos paises europeus exportadores de produtos agrícolas e agro-alimentares, que representam 65% do seu superavit comercial. E como muitos outros países europeus evidenciam óptimas performances neste campo — a Irlanda, a França, a Bélgica, a Dinamarca, a Espanha ou a Itália. Portugal contudo está no fim da lista, com a Grécia.

Persiste por cá um entranhado preconceito pseudo-moderno contra a agricultura. Que, bem vistas as coisas, pode ser indício principalmente de um problema de cultura.