Aquilo a que entre nós se chama «opinião pública» decidiu instaurar duas novas verdades insofismáveis. A primeira é que os estrangeiros descaracterizam os centros das cidades (Lisboa e Porto). A segunda é que o país vive uma grave crise de habitação.

Eu sou de uma geração que, além de ter aberto os braços ao multiculturalismo e ao mundo global, passou anos a ouvir falar da sua importância. E talvez por isso não veja com especial agrado este novo tipo bondoso de xenofobia. Sobretudo se considerarmos que, ao lado desta espécie de «centros das cidades de Portugal aos Portugueses» genericamente aceite, coexiste a prática de crime de ódio se alguém se atrever a dizer que os estrangeiros descaracterizam os subúrbios.

Também passámos a vida a ouvir dizer que o país estava demasiado concentrado em Lisboa e no Porto, que era preciso combater a desertificação, e agora surge-nos o «direito fundamental a viver no Chiado» de forma quase inexplicável.

E ainda andámos outro tanto tempo a ouvir dizer que o país precisava de capital estrangeiro, que tinha de se dedicar mais ao turismo, e agora, afinal, parece que temos estrangeiros ricos e turismo a mais.

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Por outro lado, desconhecem-se ao certo quais são os problemas da habitação em Portugal. Ou melhor, que existem problemas de habitação, existem. Mas não estou certo de que esses problemas estejam a ser tratados com objectividade, mas através de narrativas mediáticas reproduzidas por parte da burguesia lisboeta, que nos últimos anos se viu rodeada de gente que tem mais dinheiro que ela.

Uma coisa parece certa: o problema de fundo na habitação portuguesa é essencialmente de qualidade e quantidade, por um lado, e de baixos rendimentos, por outro, num país que vive hoje inserido num mercado onde as pessoas e o dinheiro circulam livremente. Mas como a pobreza é uma inevitabilidade reconhecida e até elogiada, o remédio parece voltar a ser o de sempre: não passará por gerar mais riqueza e mais salário, mas por assumir que os salários serão sempre baixos e, portanto, de uma forma ou de outra, os preços devem ser administrativamente baixos.

É exemplificativo o facto de se trazerem à colação os casos das cidades europeias com rendas controladas como solução, quando se ignora o facto de um português médio, se fosse viver para uma cidade dessas a ganhar o que ganha em Portugal, ser igualmente incapaz de pagar uma renda. É outra especialidade das «elites» portuguesas: olhar para o estrangeiro, ver que resultados têm em determinado sector, e sugerir aplicar em Portugal o que eles lá têm como resultado sem querer fazer o caminho que eles fizeram para lá chegar. Adiante.

Não poder viver no centro de Lisboa e ser empurrado para os subúrbios ou mesmo para fora da área metropolitana só passou a ser um problema mediático e político muito recentemente, de resto. Nas últimas décadas, quando as classes médias e baixas foram empurradas para as selvas de betão, quase todas geridas por executivos de esquerda, sem ordenamento e planeamento urbanístico, sem espaços verdes, sem transportes, sem acessos, com casas de péssima construção, onde se morre de frio e de calor, não se gerou metade do alarme que por agora se vê.

Depois de uma infância, uma adolescência e um início de idade adulta, 25 anos ao todo, vividos entre o bairro da Jamaica e a Quinta da Princesa, no Seixal, em escolas de pré-fabricados, esgotos a céu aberto e tiroteios à porta de casa, num concelho gerido pelo PCP, não me recordo de, naqueles 25 anos, ter visto tanta gente preocupada com a qualidade da minha habitação e da minha cidade, ou com o meu alegado direito a viver no bairro da Lapa.

O que suspeito é que há entre nós uma certa simpatia pela pobreza ou pela mediania. As «elites» nunca se importaram com ela: há um tipo que gosta muito dos pobrezinhos, como macacos no zoológico, e outro tipo que os quer para sempre, o que justifica um discurso político válido eternamente. Suspeito, pois, que estas mesmas «elites lisboetas» se façam, afinal, valer de uma certa argumentação que parece apontar para uma alegada preocupação com os mais pobres, mas que é afinal uma preocupação consigo própria e os seus interesses.

Isso, de resto, não é uma novidade: já aconteceu antes, quando quem tinha boas reformas incendiava os ânimos nas televisões criando a ideia generalizada de que todos os reformados estavam a ser vítimas de cortes desumanos; quando a burguesia da capital enche a boca para pedir apoios ao pagamento dos créditos à habitação, escudando-se na narrativa dos mais pobres que, segundo explicou o governador do Banco de Portugal, não representam especial parcela dos créditos; quando toda uma classe de privilegiados (e neste caso não só em Portugal) incendiou as televisões, criando uma narrativa de medo e pânico generalizado a propósito de uma doença, forçando governos a decretar encerramentos totais de economias, cujas vítimas são agora, imaginem, os mais pobres; quando o fim de PPP na saúde só começa a indignar a bolsa de privilegiados de Lisboa quando os problemas lhes batem à porta (porque relatórios do Tribunal de Contas, por exemplo, não eram suficientes); quando uma escola pública em decadência só anima os espíritos-que-têm-os-filhinhos-no-colégio quando os professores saem à rua, já saturados de tudo o que se sabe.

Talvez o nosso maior problema não seja a pobreza do país, mas a existência de uma «elite» que precisa desesperadamente que essa pobreza se mantenha.