Fiz 60 anos.

Costumo brincar com os amigos – alguns mais adiantados que eu, outros quase lá – que ninguém gosta de ser sexagenário. É aquela idade em que, se formos atropelados, os jornais escreverão “sexagenário atropelado”. Nunca escrevem “septuagenário” ou “octogenário”, mas há esta fatalidade de ser sexagenário, uma idade em que antes já se era “velho” mas hoje ainda se é “novo”, ou pelo menos assim se pensa.

Não sei por isso se foi um aniversário feliz. Nunca tive problemas por ser mais velho, ou mais novo, mas aos 60 anos há algo que é para mim cada vez mais evidente: a minha geração não deixou, não está a deixar, aos seus filhos (quando os tiveram) e aos seus netos (os que já os têm) o país que eles mereciam.

Nestas alturas apetece olhar para trás, pensar um pouco no que vivi e no que este país viveu — e escolheu.

O país em que nasci não tem nada a ver com o Portugal de hoje. Nada mesmo. Não era só o país a preto e branco de um tempo bisonho sem liberdade – era também um país onde a pobreza era uma constante, o atraso uma fatalidade e o atavismo uma condição natural. É bom recordá-lo, até para não para nos deixarmos deslumbrar pelo imenso caminho percorrido.

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O tempo que vivi foi excepcional. Tinha 12 anos quando o homem pousou na Lua, 17 acabadinhos de fazer quando aconteceu o 25 de Abril, 32 quando o Muro de Berlim caiu. Optimismo tecnológico, optimismo histórico. E muitas oportunidades para viver a História naqueles momentos em que ela se escreve com H grande, quando o tempo parece que acelera e o destino está a nosso favor.

Ben Bradlee, que era director do Washington Post no tempo do Watergate, escreveu umas memórias dos seus muitos anos como jornalista a que chamou “A Good Life”, e eu também posso dizer, mantidas as devidas distâncias, que a minha profissão me proporcionou uma vida cheia, vivida com a felicidade de quem faz aquilo de que gosta. Não me queixo, nunca me queixei, pelo contrário.

Contudo…

Contudo a verdade é que olho à minha volta e não gosto de demasiadas coisas que vejo. Sobretudo não gosto desta sensação de que a minha geração teve oportunidades que as próximas gerações não terão – porque não lhas deixamos.

Eu sei – sei muito bem – que neste meu país os mais velhos trabalharam muito, esforçaram-se imenso, e que para a maioria a recompensa é bem escassa: em 2013, último ano nas estatísticas (Pordata), 78,6% das pensões do regime geral da Segurança Social eram inferiores ao ordenado mínimo. Quase inacreditável de miserável, mesmo sabendo que muitos pensionistas acumulam mais de uma pensão.

Mas isso não me impede de reconhecer que, ao mesmo tempo, este país se foi gradualmente tornando cada vez mais complicado para os mais novos. E que isso não era inevitável.

A riqueza por habitante nos dias da minha vida foi multiplicada por cinco, ou mais exactamente por 4,8, se considerar os PIB per capita em 1960 e em 2015 (Pordata). O problema é que este número, que podia mostrar uma história de sucesso, esconde uma de insucesso: todo esse aumento da riqueza aconteceu até 2001, ano em que a riqueza por habitante era só marginalmente inferior à de 2015. De então para cá temos estado estagnados. Não foram apenas quatro anos de crise — foi uma década e meia de anemia aguda.

Este falhanço tem imensas implicações para o futuro dos meus filhos e dos meus netos — de todos os que têm menos de 35, 40 anos. Em 2001, o tal ano em que éramos mais ou menos tão ricos como somos hoje, as despesas da segurança social consumiam 10,2 do PIB. Em 2014 consumiram 21,7%. O que é absolutamente natural: quando eu nasci não existia em Portugal Estado Providência; enquanto eu cresci esse Estado Providência foi sendo alargado e, a cada ano que passa, abarca mais gente por uma boa razão (vivemos muito mais anos) e por uma má razão (garante demasiado os “direitos adquiridos” de uma fracção dos mais velhos e desprotege em demasia os direitos futuros dos mais novos). Mas sendo natural, é assustador: o rolo compressor das despesas sociais pesará cada vez mais sobre a tal economia que não cresce e uma população activa cada vez mais pequena.

Sim, porque há também o problema da demografia. E sim, é verdade: foi na minha geração que os portugueses começaram a ter menos filhos do que os necessários para manter o equilíbrio demográfico. O primeiro ano em que isso aconteceu foi 1982, tinha eu 25 anos. A situação só tem piorado desde então. O que significa que, no futuro, haverá cada vez menos trabalhadores a sustentarem cada vez mais reformados – e provavelmente com os mais novos a terem ainda menos filhos, porque também têm menos oportunidades.

Ora sucede que as oportunidades que tivemos nestas décadas dificilmente se repetirão. Nasci no mesmo ano em que nasceu a União Europeia, pouco antes de, ao lado dela, ter nascido também a EFTA, ou Associação Europeia de Livre Comércio, a que Portugal aderiu, começando a abrir-se ao exterior e permitindo o período de mais rápido crescimento económico da nossa história, no final da década de 1960 e início da de 1970. Assisti, e vivi, a adesão à União Europeia, que proporcionou o segundo período de rápida expansão da economia. Não sei se mais alguma vez conseguiremos algo de semelhante. Mas sei que aquilo que conseguimos com esses dois choques externos que obrigaram a nossa economia a abrir-se nunca mais repetimos quando deixámos que a nossa economia se habituasse ao conforto da nossa pequenez, dos nossos amparos públicos, dos nossos “empenhos” e dos nossos subsídios.

O que mais me aflige foi ver como aqueles que melhor tiraram partido desses anos excepcionais foram os que trataram sobretudo de proteger os seus “direitos”, blindar as suas regalias e, sempre que as coisas corriam mal, gritarem “a culpa não foi minha”, essa frase tão portuguesa que Alexandre O’Neill um dia a escolheu para definir aquilo que somos: “Em Portugal nunca deixamos cair nada; são os objectos que se escapam das nossas mãos”. Desta vez escapou-se a possibilidade de sermos um país europeu, mesmo.

Dois bons exemplos de como tratámos de nós e pouco cuidámos dos que vêm a seguir é o que se passa na Segurança Social e no mercado de trabalho.

No sistema de pensões os dados variam conforme o optimismo ou o pessimismo dos diferentes cenários, mas se hoje um trabalhador se reforma com uma pensão que, em média, se aproxima de 60% do seu último salário (há profissões onde é bem melhor, nomeadamente na administração pública), em 2025 essa taxa de substituição deverá ter caído para 45% e lá para 2060 para apenas 30%. Isto para trabalhadores que terão de reformar-se bem mais tarde.

Quanto ao mercado de trabalho, este é tragicamente dual: uns têm muitos direitos e garantias, os outros quase nada. Em Portugal quase sempre dominou, e ainda domina, a cultura de que não há profissões, há posições. Como já notei em tempos, quem as ocupa chama-lhes suas, e barra o caminho aos competidores. A desigualdade é gritante. Todos conhecemos os números do desemprego, que penaliza sempre os mais novos – conhecemos menos os números que nos dizem como estes são penalizados no mercado de trabalho pela tal dualidade entre quem tem todos os direitos e garantias de um contrato sem termo e quem apenas tem um contrato a prazo. Em média, em 2015, 22% dos contratos de trabalho eram a prazo, uma das percentagens mais elevadas da Europa, uma realidade que é o contraponto de um dos mercados de trabalho mais rígidos, mesmo depois de todas as “reformas”. Mas entre os que tinham de 25 a 29 anos essa percentagem subia para 43%. Quase o dobro. E para 67% no intervalo dos 15 aos 24 anos (Livro Verde sobre as Relações Laborais 2016). Todos são iguais, mas uns, ao que parece, são mais iguais do que outros.

A forma como nos organizámos como sociedade, as escolhas políticas que referendámos, não se limitaram a criar essa desigualdade: também atiraram para o futuro com o pior dos legados, o da dívida. Sim, a dívida. E as dívidas públicas, como sabemos desde sempre, são impostos que escolhemos não pagar hoje e deixar para que outros paguem amanhã. Podíamos fazê-lo em nome de mais crescimento, mas fizemo-lo com menos crescimento. Fizemo-lo mesmo com nenhum crescimento. Para o futuro só ficou o encargo e os juros.

Há mais de seis anos, ainda não tinha chegado a troika, quando os Deolinda levantaram os Coliseus de Lisboa e do Porto com a sua canção sobre “a geração sem remuneração” escrevi, reconheci, que se a minha geração viveu e vive muito melhor do que a dos meus pais, que se eles já viveram melhor do que os pais deles, quando olhava para as gerações que vinham a seguir sentia, sabia, que já não iria ser assim.

Uma parte do que está a acontecer ultrapassa Portugal. A vida dos “millenials” não parece fácil em todo o mundo desenvolvido, muito porque as nossas economias avançadas deixaram de crescer ao ritmo de outros tempos. E, tal como nós, envelheceram. Os estados providência modernos contavam com ritmos de crescimento mais elevados e uma demografia mais favorável.

Mas outra parte deriva de escolhas que fizemos. Que a minha geração fez, por muito que isso custe a admitir. Por isso não me apanham a repetir “não fui eu, não tive culpa”. Afinal de contas nasci em 1957, o mesmo ano de José Sócrates. Ou de Marques Mendes. Ou de António Vitorino. Ou ainda de Rui Rio. (E Durão Barroso e Pedro Santana Lopes são de 1956).

Seria fácil culpá-los apenas a eles, aos “políticos”, até porque houve muita irresponsabilidade, até porque houve muito dolo e corrupção (ou se houve). Há mesmo figurões a que nunca perdoarei. Uns foram políticos, outros banqueiros, outros espertalhaços que souberam extrair da nossa economia riquezas e privilégios e, no fim, ainda se estão a rir. Mas enganar-me-ia se ficasse apenas por essa recriminação.

Quando olhamos para o mundo à nossa volta, vemos sociedades abertas, onde há oportunidades, risco, inovação e criação de riqueza. E vemos outras onde os poderes se empenham sobretudo em autoperpetuar-se, sociedades que em vez de serem criativas e competitivas, são “extractivas”. A diferença não está nos povos, estás nas instituições que estes souberam criar, como bem explicam Daron Acemoglu e James A. Robinson em Porque Falham as Nações – e foi aí que a minha geração teve a sua grande oportunidade e o seu grande falhanço.

A revolução criou a oportunidade de reconstruir o Estado, mas fizemo-lo no modo clientelar e seguindo regras estatistas e centralistas. A integração europeia permitiu abrir a economia, mas passámos o tempo a proteger os instalados até que o país rebentou e, de repente, vimos tudo (ou quase) ir parar a mãos estrangeiras. Demorámos a criar autoridades independentes, e quando finalmente o fizemos começámos logo a atacá-las e a miná-las (como hoje sucede com um descaramento nunca visto, falemos do Conselho de Finanças Públicas ou da Entidade Reguladora da Comunicação Social).

Querem um boa demonstração de como até parece que não sabemos viver de outra forma? Vou dar um exemplo pessoal, algo que me faz imensa impressão. Acontece sempre que alguém me bate nas costas e elogia o que considera ser a minha “coragem”. Coragem? Coragem por escrever o que penso, e sempre o ter feito, acertando e errando? Coragem? Afinal não vivemos num país livre? Coragem foi necessária noutros tempos, naqueles em que ainda cheguei a andar a fugir da polícia ou a esconder-me para distribuir propaganda ilegal. Hoje não é preciso ter coragem para se escrever o que se pensa – mesmo que às vezes se possa estar naquela posição de “minoria de um”, para usar uma expressão de George Orwell e, também, Margaret Thatcher (“a minority of one”) que aprecio de forma especial.

É verdade, não me esqueci que a última palavra dos Lusíadas é “inveja” e que muitos gostam de invocar essa marca da cultura nacional (que não iludo) como sendo a razão de mais uma vez termos falhado. Mas agora que já tenho 60 anos e tive a felicidade de uma vida cheia, devo dizer que acho bem pior aquele hábito de estar sempre a repetir “não tenho culpa”. Nisso o diagnóstico de Alexandre O’Neill é porventura bem mais actual e pertinente do que o de Camões.