Assiste-se na opinião publicada, de uma forma generalizada, a um autêntico massacre de António Costa e do PS, proveniente de opinadores claramente situados na área da Direita política. Também o Observador não é exceção, faltando claramente opinião do espetro político da esquerda, facto estranho para uma publicação que defende no seu Estatuto Editorial valorizar “a controvérsia e a discussão franca e descomplexada” e que se orienta pela “pelos valores da democracia, da liberdade e do pluralismo”.

O usurpador”, “Ora, aí está ela: a «esquerda unida»!”, “Isto pode não acabar bem”, “O partido dos enganados”, “Costa no seu labirinto”, “O marciano”, “Este homem não é de confiança” e “Maioria de bloqueio” são apenas alguns dos textos de opinião no Observador, todos eles respeitáveis, mas que mostram o nervosismo da malta direitista sobre a solução política para o governo de Portugal que se parece desenhar entre PS, PCP e BE. No momento em que escrevo estas linhas, e até porque não tenho o dom de antever o futuro, não é ainda seguro que possa concretizar-se este entendimento entre os partidos de esquerda.

Mas, sem futurologia, é possível refletir sobre esta autêntica apoplexia nervosa da direita e dos seus (muitos) defensores com acesso ao espaço público dos órgãos de comunicação social. A bem do pluralismo de opinião.

A questão de legitimidade

Diz-nos a Constituição da República Portuguesa que o primeiro-ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais. Ora, precisamente tendo em conta os resultados eleitorais das últimas eleições legislativas, afigura-se como perfeitamente legítima uma solução governativa com o apoio da maioria dos deputados eleitos.

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Adjetivar um acordo entre PS, PCP/CDU e BE (e eventualmente Os Verdes e o PAN) como uma coligação negativa ou um golpe-de-estado constitucional é um excesso de estilo que carece de fundamentação racional. Efetivamente, nas eleições legislativas não se elege um governo ou um primeiro-ministro, mas sim a composição de um parlamento.

É portanto desse parlamento que terão de sair as soluções, encontradas pelos partidos políticos que aí têm assento – e cujos mandatos resultam dos voto dos cidadãos, recorde-se -para o futuro governo. Ora, os dados (disponíveis para os círculos de Portugal Continental e Regiões Autónomas) das eleições de 4 de outubro são claros:

  • PS, PCP/CDU e BE obtiveram 2.736.845 votos e com isso elegeram 121 deputados;
  • A coligação PSD/CDS obteve 2.062.513 votos e elegeu 104 deputados;
  • Os votos do conjunto dos partidos de esquerda é superior aos votos da coligação dos partidos da direita. Mais 674.332 votos;
  • O conjunto dos partidos de esquerda consegue aquilo que o conjunto dos partidos de direita não tem: uma maioria dos parlamentares.

E se o que se pretende – pelo menos foi vincada por todos os partidos políticos essa urgência durante a campanha eleitoral – é uma solução governativa estável e duradoura, os partidos da esquerda parlamentar são os únicos com possibilidade de a oferecer no atual quadro parlamentar. Mas, lá porque essa não é a solução que agrada aos “direitistas”, é por isso que a torna menos legítima?

Claramente que não. Até porque sejamos claros: a aliança pré-eleitoral PSD/CDS foi desenhada numa lógica clara de casamento de conveniência (e aí, o CDS fez, como sempre, um bom negócio!) e não de perspetiva futura de governo. Foram aliás vários os sinais, durante quatro anos de governação e até mesmo durante a última campanha eleitoral, de que um dos parceiros deste casamento a qualquer momento poderia pedir o divórcio para se dedicar a outras companhias.

E onde está dito que dois ou mais partidos políticos não podem entender-se no pós-eleições para corporizar aquela que foi a vontade dos eleitores? Ah, pois é, em lado nenhum!, mas agora importa agitar fantasmas e receios infundados, com o objetivo de retirar legitimidade política a um governo de posicionamento à esquerda. Puro preconceito ideológico!

Um governo saído de um acordo parlamentar, mesmo que não inclua o partido mais votado, tem toda a legitimidade para ser empossado e para governar. Agitar este argumento – como faz a direita – é um exercício perigoso e castrador da plenitude da nossa democracia.

O experimentalismo

Portugal e os portugueses não podem ser um tubo de ensaio dos partidos de esquerda, defendem os respeitáveis anti-esquerda. E nisso estamos de acordo.

Mas mais uma vez, estas posições são sustentadas em falsos argumentos. Perguntem aos dinamarqueses, luxemburgueses, letões, belgas, finlandeses e suecos – apenas para citar alguns exemplos de países onde alianças de partidos garantiram governos estáveis, deixando de fora o partido mais votado nesse ato eleitoral – se se sentem como estando num tubo de ensaio? Nestes países, tal como em Portugal, é na composição parlamentar dos vários partidos políticos que são formados os governos.

E argumentar que em Portugal não há essa tradição, além de historicamente incorreto (se tivermos em conta os governos de iniciativa presidencial) é defender a cristalização do sistema político português, precisamente um dos males de que este padece e que faz com que os cidadãos cada vez menos se interessem, respeitem e envolvam na política. Por essa lógica de ideias, que defendem o imobilismo e o conservadorismo, as mulheres ainda hoje não votariam, a pena de morte ainda seria aceite e nunca nos teríamos livrado da ditadura.

Agitam-se agora os costumeiros fantasmas dos mercados, dos juros da dívida, da economia. A julgar pelos opinadores, caso venhamos a ter um governo de esquerda (com o PS sozinho ou coligado com PCP/CDU e BE) é melhor enchermos a dispensa de enlatados e bens não perecíveis: “vai ser o caos”, defendem!

Porque efetivamente estamos longe da Grécia e dos radicalismos iniciais do fenómeno Syriza, como as reuniões havidas entre António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins bem o demonstraram. Um futuro programa de governo de esquerda, no momento da sua apresentação, será garantia suficiente para acalmar nervosismos apocalíticos.

Isto porque parece já evidente que algumas das linhas vermelhas destes partidos políticos passaram a amarelas muito pálidas. A bem do que é verdadeiramente essencial da aliança que parece querer formar-se: uma política que não veja na austeridade o caminho único, que tenha sensibilidade social no momento da tomada de decisão e que não coloque em causa sistemáticos atropelos a alguns dos fundamentos da nossa sociedade, como a escola pública, o serviço público de saúde, a defesa do estado social, entre outros.

Com um governo de esquerda, Portugal não vai seguramente sair da NATO, não vai colocar em causa a moeda única, não vai renegar o pacto de estabilidade e não vai comer criancinhas ao pequeno-almoço. Vai, isso sim, dar sinais de uma enorme maioridade política, após mais de 40 anos de vida em democracia plena, e mostrar que afinal o voto dos cidadãos pode ser mesmo decisivo.

Os benefícios para o futuro da nossa democracia

A assunção de responsabilidades governativas, ou pelo menos de suporte a um governo, por parte dos ditos “partidos de protesto”, pode ser o ponto de viragem para uma democracia verdadeiramente conseguida. Essa idiotice da teoria dos partidos políticos do “arco da governação” cairá assim por terra, dado que a partir deste momento, com este novo mind set político-partidário, todo e qualquer partido político com assento parlamentar poderá vir a fazer parte da governação do país.

Por arrastamento, e porque os eleitores são cada vez mais informados e exigentes, os partidos políticos vão ser cada vez mais obrigados à apresentação de propostas responsáveis durante as campanhas eleitorais. Poderemos assim assistir a programas eleitorais mais realistas, porque terão de ser concretizáveis, algo que poderá contribuir para a credibilização da atividade política e dos políticos.

Caso viabilizem ou integrem um futuro governo, PCP/CDU e BE vão ser obrigados a uma maior responsabilização da forma como fazem política. Aqueles que temem radicalismos (em bom rigor, não tememos todos?) devem encontrar aqui uma oportunidade histórica para se enterrarem definitivamente excessos ideológicos que são completa e objetivamente desfasados da realidade.

Reconheça-se que, nesse particular, os partidos da direita parlamentar são menos dados a radicalismos ideológicos (embora neste caso concreto a aliança anti-esquerda quase que deita por terra esta minha afirmação). E isto acontece precisamente porque foram chamados com maior frequência para a assunção de responsabilidades governativas.

Assistiremos assim a uma moderação de excessos no combate político. E isto poderá contribuir para um serenar da crispação política com que todos os dias somos brindados.

O nosso regime parlamentar e a prática dos partidos políticos portugueses podem sair fortalecidos com todo este processo pós-eleitoral. Querer, a todo o custo, inviabilizar esta mudança de mentalidades, é na realidade contribuir para o enfraquecimento da qualidade da nossa democracia.

A tentativa de assassínio de caráter de António Costa

Autarca modelo, ministro que desempenhou com eficácia várias pastas governativas, homem capaz de construir consensos e pontes com outros partidos políticos. Muitos dos que atribuíam estas qualidades a António Costa, acusam-no agora de um autêntico assalto à mão armada do regime democrático.

Uma vez mais, estes excessos imagéticos, provenientes da direita, revelam na realidade o desagrado para com a mestria com que António Costa percebeu que era da sua atuação e do PS que depende a constituição do futuro Governo. No calor da noite eleitoral, muitos ficaram a olhar para a árvore e ignoraram a floresta.

Por sua vez, António Costa manteve uma visão de longo prazo, algo que falta à esmagadora maioria dos políticos. Entendeu que a vontade dos eleitores exige a necessidade da queda de muros bacocos entre os partidos políticos da esquerda e arregaçou as mangas, tornando possível um diálogo – político e técnico – que até aqui não havia nunca sido possível.

Ao não apresentar a sua demissão na noite eleitoral, desiludiu todos aqueles que esperavam ver sangue a jorrar descontroladamente logo ali no Hotel Altis. Mas ganhou a confiança, ou pelo menos o benefício da dúvida, da maioria dos eleitores que deixaram nas urnas uma mensagem clara e que não pode ser ignorada: é preciso governar Portugal de forma diferente dos últimos quatro anos.

É disso que são feitos os grandes políticos: nervos de aço, foco em propósitos maiores do que os do seu próprio partido político e capacidade de mobilizar vontades nem sempre consonantes em função de objetivos comuns. E, até ao momento, António Costa revelou ser capaz de fazer isso mesmo.

Mais um mandato da coligação PSD/CDS? Ninguém merece!

“A democracia muitas vezes significa o poder nas mãos de uma maioria incompetente”, disse George Bernard Shaw. E parece ter sido esta a avaliação dos eleitores portugueses, pois na realidade a coligação que diz que “Portugal agora pode” não conseguiu obter os mandatos parlamentares suficientes para mais quatro anos de maioria governativa.

Durante o mandato ainda em vigor, PSD e CDS tiveram uma postura de governação que fez aso da imposição das suas políticas, com desrespeito pelas Instituições, pela Constituição e pela necessidade de consensos. Após os resultados eleitorais, veio a coligação vestir à pressa a pele de cordeiro, com um discurso mansinho, procurando agora fazer crer que fará do diálogo a sua pedra de toque no relacionamento parlamentar e governativo.

Mas esta postura – que na realidade durou poucos dias, vejam-se as declarações de Pedro Passos Coelho em que vem praticamente colocar um ponto-final nas “negociações” com o PS – não é autêntica. Não havendo uma segunda oportunidade de criar uma primeira impressão, muitos portugueses não esquecem a forma como objetivamente os partidos políticos da coligação contrariam, com a sua governação, aquelas que foram algumas das suas promessas eleitorais de 2011, casos dos cortes salariais, das pensões e dos benefícios e apoios sociais.

Aquilo com que os portugueses se deparam é ter um governo que fará nos próximos anos aquilo que fez nos anteriores: uma vez empossado, fará tábua rasa das suas promessas e continuará a achar que os cidadãos são piegas, que o desemprego é uma oportunidade e que é necessário que saiam da sua zona de conforto (preferencialmente, indo para o estrangeiro!). Ou, em alternativa, dar o benefício da dúvida a uma solução governativa que é nova e acreditar que é nos momentos decisivos, como este que vivemos, que o nosso futuro coletivo pode ser alterado para melhor.

Qualquer que seja a solução que o futuro nos reserva, são tempos excitantes estes. E esta autêntica apoplexia nervosa da direita não vem mais do que revelar algumas das características do seu ADN: um profundo conservadorismo e desprezo por todas as ideologias que lhe sejam diferentes.

Militante do Partido Socialista, Presidente da Concelhia de Sobral de Monte Agraço, Vereador na Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço