Lá longe, num tempo remoto como poucos, nascia uma criança, distinta de qualquer outra coisa ou ser que hoje conhecemos. A sua história cruzou caminhos com a história de todos nós. Assegurou, até, a capacidade de vos contar esta breve história.

Desde cedo se fez notar a sua diferença, desenhava e pintava como nenhuma outra criança. Os campos verdes cintilantes, o azul dos oceanos imensos, os tórridos tons de um pôr-do-sol veranil. De paisagem em paisagem, todas mudavam e se moldavam ao toque subtil e vivo do seu pincel.

Os seus dons artísticos traziam-lhe um consolo e uma satisfação incessantes, rapidamente desenhou e coloriu novas formas, formas nunca antes vistas. Com o passar do tempo, as suas obras foram ganhando notoriedade, percorriam todos os lugares que hoje conhecemos, todos sentiam uma ligação inelutável à sua arte – olhando-a e sentindo-a com profunda admiração.

Pese embora os seus talentos fossem de tal virtude que aqui não disponha de palavras para uma justa descrição, a verdade é que a sua popularidade crescente se tornou um martírio para esta jovem artista. Adiva de seu nome, cresceu órfã de pai e de mãe. Embora tal assunto não se entranhasse nos seus pensamentos frequentemente, acalentava os pensamentos dos seus admiradores. A curiosidade em torno da artista, da sua proveniência e das origens do seu talento sui generis tornou-se tão ou mais importante que a arte em si mesma.

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Algo que nunca sequer tinha sido uma questão para si, era agora alvo de especulação por toda a parte, ocupava as bocas dos que se diziam devotos seguidores da sua arte, corria nas ruas e nas praças descontroladamente, ateando discussões e legando dúvidas nas mentes de todos. Grupos das mais diversas sortes desenvolviam todo o tipo de buscas e teorias, munindo-se de todos os recursos e empolando os mais ínfimos vestígios em prol da defesa da sua verdade. Uns batiam-se fervorosamente pela divindade das suas origens, chegavam até a dançar aos céus em sua homenagem, outros advogavam que tal dom mais não podia ser senão oriundo de um qualquer fenómeno científico, ainda que os contornos do mesmo fossem turvos e vagos.

Estas divergências e todas guerras originadas em seu redor eram absolutamente contrárias ao espírito da sua arte, por conseguinte, cada vez pintava menos, entristecia-se, sofria de fortes enxaquecas que a incapacitavam totalmente, acabava por sacudir os seus quadros para o chão em acessos de raiva, quebrando-os muitas das vezes. Os choros tornaram-se também mais frequentes, por vezes vindo em abundância e encharcando algumas das suas melhores obras de arte.

Tudo aquilo que outrora se afigurava simples gerava agora discórdia infindável.

Não se vislumbrava uma solução para todas estas disputas. Porque não podiam eles tão-só apreciar a arte? Essa arte de que eles próprios se revestiam!

As obras de Adiva, que no passado pareciam em si mesmas comportar a eternidade, começaram lentamente a perder vigor. Os seus campos lentamente se tornavam menos verdes, os oceanos menos azuis, pouco a pouco as flores iam murchando, as caras robustas e vivas dos seus seguidores empalideciam, mirravam a cada dia até fenecerem. A criança prodigiosa e enérgica de outros tempos perdia força, observando a impotência da arte face ao ódio e à ignorância dos Homens.

Eram incessantes as guerras, as gotas de sangue despenhavam-se em plena sincronia com as lágrimas de Adiva, as lágrimas de incompreensão, as lágrimas de mágoa e vergonha, as lágrimas de uma culpa que não tinha. Abatia-se sobre si uma névoa de problemas dos quais sentia ser responsável, agravavam-se as enxaquecas e os choros infindáveis. Por fim percebera, não lhe era mais possível nutrir das forças necessárias todos os Homens e criaturas em que o seu pincel tocara. Estava obrigada a aceitar a finitude das suas obras, restava-lhe apreciar pacificamente a sua beleza até que o tempo por inteiro as consumisse.

Ainda que de quando em vez carpisse lágrimas e as fendas em alguns quadros fossem surgindo em laivos de frustração, certo é que Adiva alcançou a serenidade. Entrara num estado de quietude que o tempo já a havia feito esquecer. O alheamento do seu mundo, ainda que forçoso e momentâneo, motivou uma introspecção profunda, passou a ver e a sentir a finitude como parte integrante e até indispensável de si.

Volvidos anos numa urgência própria dos segundos, percebeu que tudo não passava de um mísero reflexo. Avistava hoje, no revés do seu rosto espelhado, a sua identidade natural. Após uma vida do avesso, Adiva sabia, de agora em diante, que era a Vida. E o fim apenas a última parte da sua obra.