É quase inevitável que alimentemos a ideia que faremos da vida o que quisermos que ela seja. Na verdade – com queixas, ressentimentos, sofrimentos ou traumatismos, até – todos nós fomos, de alguma forma, mimados. E acabamos por transportar essa experiência para uma dimensão mais “macro”. Vendo com atenção, nem sequer admitimos que a vida não nos mime. No mínimo, à escala do mimo que recebemos à medida que fomos crescendo.

É claro que – se as pessoas da nossa vida estão, regra geral, mais ou menos no lugar – nem nos passa pela cabeça que as coisas mudem, de um dia para o outro. E, no entanto, passarem-nos coisas pela cabeça é o que há de mais próximo que existe em relação ao amor pela vida. E acontece-nos a todo o momento. Por mais que tenhamos sido educados para nos distrairmos disso. Dando mais vezes atenção a quem não a merece. Ou a conhecimentos esdrúxulos que não cabem na cabeça de quem insiste em pensar. Como acontece, muitas vezes, na vida. E, algumas, na escola. Dando mais valor aquilo que nos demonstram que é a verdade do que a tudo o que ela acaba por ser, quando a sentimos. Eu acho (mesmo!) que nós passamos a vida a não escutar, com a seriedade devida, aquilo que nos passa pela cabeça. E é por aí que a escola devia começar. A apanhar “no ar” aquilo que passa pela cabeça das crianças. Para as conhecer. E aprender com elas.

É verdade que só reconhecemos que a vida muda num segundo quando nos confrontamos com um desastre. Com uma tragédia. Como um vulto de morte a irromper, de supetão, vida adentro. E essa é nessas alturas que acabamos a considerar que há coisas que nos separam do entendimento dos outros. Coisas do diabo, portanto. Mas, vendo bem, a vida muda de segundo a segundo. Logo, se é só nas desventuras que nos damos conta que ela muda depressa, onde estará a nossa relação com a mudança, para a vivermos melhor? Quase todos nós perdemos de vista que, na sua raiz, símbolo é o contrário de diabo. Símbolo é tudo o que liga. Diabo aquilo que separa. Logo, a vida, na forma como nos proporciona a novidade em todos os segundos, é uma obra do diabo. Se (é só se) não formos capazes de pegar no novo que ela nos traz e de o ligar àquilo que sabemos e aos outros com quem a aprendemos. E, com isso, darmos origem àquilo que nos distingue de todos os outros animais: a linguagem simbólica. Que é, de certa forma, o degrau com que nos aproximamos mais de estar em comunhão com o outro. Que é, por sua vez, o degrau que fica antes do sagrado. Em linhas gerais, não falarmos do que sentimos quando conhecemos não é aprender. Será condescender. Que é quase perverso. É transformar aquilo que nos ligaria ao amor numa obra do diabo.

A escola, quando se esquece da forma como as crianças transformam aquilo que lhes passa pela cabeça numa história, vive num dilema complicado. Acho eu. Como é que pode ela educar para a vida e para a mudança e, ao mesmo tempo, educar para aquilo que nos liga e para os valores? Pode a escola encarnar a mudança  se é tão obsoleta na forma como, ainda, imagina as crianças, na forma como aprendem? É claro que podemos sempre perguntar como é que podemos encarar a mudança se o céu, nos dias de sol, continua sempre a ser azul. E se tudo o que nos é indispensável continua a estar mais ou menos no “seu” lugar. Mas enquanto tudo o que nos é indispensável parece no lugar, alimentamos, ao mesmo tempo, a ideia de que, hoje, o mundo está a mudar mais depressa do que nunca. Mas será que é ele que muda, de forma frenética e se transforma assim – estonteantemente – sem parar, ou somos nós que alimentamos essa ideia para nos continuarmos a distrair com ideias-feitas (que são a verdadeira força de bloqueio em relação aquilo que, a todo o instante, nos passa pela cabeça) e reagirmos à mudança com perplexidade e com medo e sem procurar os caminhos com que nos transformemos com ela? Nós somos verdadeiras incubadoras de ideias. Mas vivemos num mundo que se pretende um acelerador de partículas. A vida precisa de tempo para medrar. As mudanças não se tornam pujantes depressa. Na verdade, confundimos um mundo que gera bibliotecas sobre bibliotecas de informação com um mundo que produz conhecimento. Mas onde nem sempre mais informação é (melhor) conhecimento. Aliás, se enchemos a boca elogiando a mudança dos tempos que vivemos, porque havemos nós de ser tão pesadões e tão adversários das mudanças, a não ser daquelas em que se muda qualquer coisa para que tudo fique na mesma? E como pode a escola, num mundo assim, deixar de ser uma indústria e transformar-se em magia? E abrir as crianças para o espanto e para a surpresa, e para a novidade de pegar nos conhecimentos (que, espontaneamente, elas produzem) e ligar o que elas intuem à forma como as educamos a abstrair sobre isso, numa encruzilhada que liga o mundo dentro delas e o mundo fora delas, todos os dias? Esse é o desafio que a escola tem para tratar por tu o futuro.

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É estanho – desculpem! – mas não educamos os nosso filhos para a mudança. E, por inerência, para a diversidade. Para a novidade. A mudança – que faz parte do ADN da vida – é vivida por nós como um estranho. E sem querer dizer que não haja constância naquilo que são os nosso valores de todos os dias, há uma certa xenofobia que alimentamos. Quer quando tomamos a mudança como uma ameaça aos valores. Quer quando admitimos que acarinhar os valores inviabiliza a mudança. Que estranho que é isto tudo! Sobretudo quando, trazida esta clivagem para a política, o mundo parece separar-se entre os conservadores e os progressistas. E que estranho acaba por ser mais quando trazemos esta confusão para dentro da escola. Sobretudo quando ela devia ser, com uma orgulhosa convicção, a ponte entre o passado e o futuro.

É verdade que eu acho que não nascemos com quaisquer dons. Coisa nenhuma! O nosso equipamento de base é, sobretudo, plasticidade. E ligações. De uma ponta à outra. E, no entanto, nunca chegamos à escola a zeros. Aprendemos tantas coisas, entretanto, que entre nascermos e aprendermos (na escola) já transformámos toneladas de informação em inúmeros conhecimentos. Por mais que a escola insista em imaginar que aprendemos do zero. E, às vezes, não repare que imaginamos e que criamos. E que essa fantástica linguagem simbólica é arte antes de ser conhecimento. E que é a arte que cria o conhecimento! É aqui que a escola falha quase sempre. Como é que podemos saber à margem de sabermos quem somos? À margem da arte de transformar sentimentos – que são, desde logo, exploração e experimentação – em conhecimento?

Eu acho inacreditável a fantástica capacidade das crianças contarem histórias (que são o exemplo dos exemplos da arte de aprender com a vida). E acho incompreensível a forma como todos nós – a escola, mais do que ninguém – insistimos em não as ouvir. Já não falo, claro, de as escutar. De as perscrutar. Mas, mais simplesmente, de as compreender. Porque será que não somos capazes de compreender que as histórias inventadas por uma criança são histórias de encantar? E de entender que encantar é um aceno que se faz à comunhão? Um gesto, ao de leve, do género: “Queres vir até ao pé de mim?” A escola devia ser o lugar das histórias. E sê-lo-á, como devia?…

A impressão que dá é que sempre que uma criança se afasta daquilo que se espera duma curva normal – e é, simplesmente, singular – os alarmes se acendem. E que todos a imaginam como se, no limite, tivesse necessidades educativas especiais. Ora, há outra forma delas serem abertas ao mundo e à mudança que não seja sendo singulares?

Na verdade, não conheço ninguém que não tivesse tido problemas na escola. Aliás, nem isso será surpreendente. Porque a primeira função da escola será, mesmo, pôr problemas. A diferença é que, para muitas crianças, a escola é um problema. E, para algumas delas, será “O problema”. E aí a escola não tem a dose de humildade que seria de esperar de quem aprende. E, mal se depara com os problemas de uma criança, a escola – que passa a vida a esperar que as crianças sejam engenhosas a resolver os problemas que ela lhe põe – exclui-se da equação e conclui, com uma rapidez estranha, que crianças com problemas são um problema delas. E dos seus pais. Nunca da escola. Na sua relação com elas.

O sistema educativo está demasiado vocacionado para que os alunos tenham a resposta na ponta da língua. E muito pouco para as coisas que eles – todos! – têm debaixo da língua. Como é que podemos esperar que, com ideias obsoletas sobre aquilo que as crianças são e sobre a utilidade de conhecimentos que lhes são dados, em abstracto, (e que tardam em ser compreendidos como indispensáveis), a escola de hoje continue a ser útil, pelos conhecimentos e pelas competências que favorece, daqui a 10 anos? A vida é uma incubadora. A escola uma aceleradora. Como se liga tudo isso sem que a escola se transforme num nó? Como se preparam as crianças para crescerem para a mudança sem lhes darmos nem oportunidades nem tempo para aprenderem com ela? Podem-se acelerar e superficializar as aprendizagens e trazer a mudança para tudo o que se aprende? Será a escola outra coisa que não seja o sítio onde se apanha o jeito? E como se pode apanhar o jeito sem se ter tempo para errar?

É engraçado o modo como distinguimos noções como “ter inclinação” de “debruçarmo-nos”. Estamos todos muito viciados nas nossas inclinações. Como se elas fossem um equipamento de base. Quando, na verdade, a nossa verdadeira inclinação é para a mudança. Ora, só faremos da vida aquilo que quisermos se nos debruçarmos sobre ela. É isso que se espera da escola: que se debruce. Sobre as crianças. E sobre o mundo. Usando aquilo que passa pela cabeça das crianças. O que elas têm debaixo da língua. A sua capacidade de irem do simbólico ao conhecimento. E as histórias com que elas nos dão a pensar. Só assim a escola será o lugar onde se apanha o jeito. A mudança começa por sabermos quem somos  antes de aprendermos por onde vamos. E continua pelo “onde estamos” antes de descobrirmos por onde queremos ir. Como é que podemos encarar a mudança se o céu, nos dias de sol, continua sempre a ser azul? Percebendo que só as raízes nos fazem voar.