Talvez a solidariedade seja a forma de alargarmos a todos os outros a necessidade com que os pais dizem aos filhos que têm de ser amigos. O que, quando se vive cercado por ideais de um individualismo glutão, parece ir-se transformando mais numa intenção do que, propriamente, numa espécie de arte de sermos atenciosos uns para os outros; que, ao que parece, vai caindo em desuso. “Termos de ser” amigos não é solidariedade. “Termos de ser” amigos é uma frágil intenção. Solidariedade é mais que isso: é o “desaforo” de sermos, gostosamente, atenciosos uns para os outros.

É claro que sermos atenciosos não significa sermos subservientes, falsamente amistosos ou, simplesmente, adequados. Supõe que estimamos quem não conhecemos. E que esperamos dum gesto atencioso uma retribuição mais ou menos idêntica. Um sinal, digamos assim, que do atencioso nos leve ao simpático (ao amistoso), e do simpático ao empático. Contribuindo assim para que sintamos que não estamos sozinhos. E que temos com quem fazer pontes entre diferenças que, quando dialogam umas com as outras, nos trazem, a todos, a claridade da mudança. Sempre que somos atenciosos começa a mudança.

Mas, vendo bem, os nossos filhos vivem num tempo em que parece ter-se tornado jurássico o desejo de mudar o mundo. Parecem demasiado apegados à ideia de que o mundo deve adaptar-se mais aos seus desejos, que é, de certa forma, uma maneira de o querer transformado só para si. Sem que as grandes mudanças que ele lhes possa vir a trazer sejam transversais a mais pessoas que contribuam para que ele mude mais, ainda. Um mundo que se adapte aos seus desejos e um mundo que muda são duas ordens de grandeza diferentes. Mudar o mundo nunca é um exercício solitário. Será um rasgo de paixão, que se divide e se comunga. O que lhe dá furor e torna o desejo solidário. Adaptá-lo a nós é um esconsa conveniência que não precisa dos outros. Antes os dispensa.

Ao mesmo tempo que parecem ser muito pouco atenciosos, escuto muitos adolescentes a falar da ambição de serem diferentes; de serem bons, no sentido de estarem entre os melhores. Por mais que mudar o mundo lhes mereça um esgar de algum desprezo, como se isso fosse uma veleidade da juventude dos pais que eles classificam entre a tontice e a insensatez. Eles talvez ainda não tenham percebido que mudar o mundo é — “só” — um estado de espírito. Mas porque é que eles, tão depressa,  terão deixado para trás o desejo de mudar o mundo a ponto disso não entrar na agenda da esmagadora maioria dos adolescentes? Como é que podemos esperar que os nossos filhos sejam amigos da esperança se, ao mesmo tempo, parecemos deixar que baixe sobre eles o nevoeiro dos resignados? Porque é que eles passam a vida a querer fazer a diferença se não lhes dizemos que a diferença se constrói com as pontes que fazemos entre aquilo que somos e os outros de quem nos sentimos diferentes? Como se pode mudar o mundo se os descobrimentos que a vida lhes traz são, quando muito, espreitadelas  para o mundo dos outros, e pouco mais?

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O que se passa é que de tanto os querermos a fazer história só com aquilo que a escola lhes traz, lhes resta muito pouco tempo para que, na medida do que eles vivem, reúnam as histórias com que se chega às clareiras de onde se vêem outras maneiras de mudar o mundo. Sermos todos insubstituíveis fica sempre bem no plano dos princípios. Mas, depois, o que eles acabam por ver é que a maioria das pessoas parece transformar a sua vida numa mercadoria, e vive com a sensação de que com os seus passos nunca se abre um trilho nem se constrói um caminho. A maioria de nós vive a  vida como se saber viver fosse transformar em atalhos todos os passos que são indispensáveis para mudarmos, sobretudo quando precisamos que a vida nos mude e transforme em entusiasmo de crescer a modorra que nos torna pessoas cansadas de tanto fugir de viver. Ora – num mundo que apela ao individualismo e fala das mudanças como tudo o que se conquista sem dor, sem muito trabalho e quase sempre com vitórias – podem eles ser diferentes e ajudarem a escrever a história, se parecem tão pouco incentivados a construir a sua própria história, ancorada em tudo aquilo que vivem, desde dos seus sucessos aos seus fracassos? Porque é deixámos que se crie a ideia que, quando pedimos ajuda, somos fracos (quando, na verdade, aquilo que se passa é exactamente o contrário)?

A verdade é que vivemos num mundo onde pedir ajuda chega a ser quase revolucionário. E não pode ser. É raro que exista quem peça ajuda! É, por isso, urgente que os nossos filhos percebam que sempre que ajudam estão a aceitar ser ajudados a tornarem-se melhores. Ajudar é sempre um novo recomeço. Um mundo melhor não é, portanto, um mundo que fica paredes-meias com o paraíso. Um mundo bom é um mundo onde as pessoas não enjeitam ser, com a ajuda umas das outras, pessoas melhores.

E, no entanto, é mais fácil que os nossos filhos nos vejam mais a mexericar e a escarnecer do que a admirar ou, mesmo, a elogiar. Serem bons ou pessoas melhores, por culpa nossa, passa mais, aos olhos deles, por identificar o que os outros fazem de mal – o que, aparentemente, nos torna melhores – em vez de reconhecermos aquilo em que eles são melhores que nós. Mudar é um exercício de humildade. Ao contrário daquilo que lhes dizemos quando os incentivamos à mudança. Já mudar o mundo não significa pôr as mudanças dos outros em primeiro lugar. Significa que aquilo que está em primeiro lugar dentro de nós não se faz sem os outros, sobretudo quando eles nos ajudam a fazer com que aquilo que traz sentido à nossa vida não deixe de estar sempre  primeiro.

Mudar não é mau. Antes pelo contrário. Na verdade, só crescemos quando mudamos. Mas como podem os nossos filhos ser felizes, como desejamos que sejam, quando a relação que têm com a mudança é acomodada ou, até mesmo, resignada (ou, nalguns momentos, aparentemente incomodada)? Como podem eles ser amigos da mudança quando lhes alimentamos a ilusão que é o mais fácil que os torna mais felizes e que os muda mais depressa? “Mudar” assim é supor que para se ir muito depressa até à felicidade não é necessário que se mude quase nada. É querer “tudo” mexendo em nada.

Deixarmos que cresçam num mundo pouco solidário é aceitarmos que os nossos filhos mudem o mundo sozinhos. Ora, a mudança começa quando aceitamos que ajudar os outros faz deles parte do nosso crescimento. E quando aprendemos com eles a arte de ser atencioso. Solidariedade não é, por isso, “termos de ser amigos”. É incentivá-los à estima. É olharem o outro como parte da sua mudança. E adverti-los, sempre que não percebam para que serve serem amistosos e ajudar. E é encaminhá-los para compreenderem que mudar o mundo começa quando, com a sua mudança e com os outros, eles se tornam pessoas melhores. Afinal, sempre que somos atenciosos começa a mudança.