Somos, regularmente, confrontados com notícias da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) a prender especuladores. Geralmente, as notícias são sobre vendas no mercado negro de bilhetes de futebol ou de concertos musicais. Ainda há uns dias, foram detidas meia-dúzia de pessoas por venderem bilhetes para a Supertaça entre um clube de futebol de Guimarães e outro de Lisboa a preços superiores aos tabelados. De acordo com as notícias, chegaram-se a vender bilhetes ao triplo do preço fixado. (Já a Câmara de Guimarães comprar bilhetes para o mesmo jogo e distribuí-los gratuitamente entre eleitores não merece que sequer se franza o sobrolho.)

Vale a pena perguntar qual é o problema de alguém comprar bilhetes por atacado e vendê-los acima do preço. Os clubes, a federação ou os artistas são prejudicados? Não. Muito pelo contrário, assim até podem vender mais bilhetes. Quem compra é prejudicado? Também não. Sabem perfeitamente o preço que estão a pagar e sabem também o valor facial do bilhete. Se compram o bilhete é porque estão dispostos a pagá-lo e porque querem muito assistir ao espectáculo ao vivo. Os únicos prejudicados são as pessoas que não conseguiram bilhete porque estes se esgotaram e, estando dispostos a pagar o valor facial, não estão dispostos a pagar o preço do mercado negro. Ou seja, muito objectivamente, o prejuízo desta venda de bilhetes no mercado negro é muito pequena. Simplesmente, é um mercado livre, que a ASAE não deixa funcionar livremente.

Actuação oposta tem a ASAE noutros casos bem mais graves. Foi na semana passada que soubemos de uns restaurantes em Lisboa que burlam turistas. Seguem um esquema relativamente simples. Encontram forma de impingir pratos aos clientes com preços que não vêm na ementa ou evitam mostrá-la, cobrando depois valores astronómicos.

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Mas aqui, pelos vistos, a ASAE nada pode fazer, pelo que os restaurantes continuam abertos burlando os seus clientes. Compare-se este caso com o dos bilhetes no mercado negro. No restaurante, objectivamente, o cliente é enganado. Ou seja, ao contrário do bilhete para o espectáculo, o cliente do restaurante compra ao engano. Há um claro abuso da confiança do cliente e uma violação da boa-fé que deve estar sempre presente em todas as transacções. E, quando assim é, há uma falha de mercado. Aliás, em Economia, quando se estudam as falhas de mercado, explica-se que a informação assimétrica é uma das principais causas das falhas. O tópico é tão importante que até mereceu honras de Prémio Nobel em 2001 — George Akerlof, Michael Spence e Joseph Stiglitz. Ora, é difícil imaginar uma assimetria maior do que um cliente não saber o preço que vai pagar, porque o vendedor o leva ao engano.

Ainda para cima, para cúmulo da inoperância, a ASAE, em vez de dizer ao cliente que se recuse a pagar, prefere fazer-se de sonsa. Passo a citar: «a ASAE aconselha a que o consumidor ‘esteja atento e verifique os preços antes de encomendar’». A não ser que a ASAE esteja a pensar fazer uma campanha publicitária em Inglaterra, Alemanha, França e Espanha (os nossos principais fornecedores de turistas) alertando-os para as práticas burlonas de alguns restaurantes portugueses, não se percebe como este tipo de conselho possa chegar ao seu público-alvo. Com meios mais modestos, talvez possam distribuir panfletos no aeroporto alertando os turistas para estas burlas, tal como a PSP fez com o louro vendido como haxixe, manchando a reputação do nosso país enquanto destino turístico.

Aquilo que neste assunto me parece mais engraçado é o argumento, que fui lendo em alguns murais do Facebook, que isto é o capitalismo a funcionar. Este tipo de argumento tem piada por ilustrar a ignorância que existe sobre o que é o capitalismo e o funcionamento dos mercados, confundindo-o com uma sociedade sem regras, onde meio mundo anda a enganar o outro meio.

aqui, em tempos, falei numas aulas, em Harvard, de Michael Sandel, disponíveis online, sobre Justiça. Nessas aulas, Sandel dá um exemplo de uma velhota que chegou a acordo com um canalizador para tratar de uns canos que pingavam na casa de banho pelo valor de 50.000$. Como metade dessa verba tinha de ser paga à cabeça, a senhora foi ao banco levantar 25.000$. O bancário, admirado com aquele levantamento, perguntou-lhe para que precisava de tanto dinheiro. Perante a resposta, telefonou à polícia denunciando o caso. O canalizador foi preso. Note-se que a senhora era autónoma e capaz (caso contrário, não teria autorização para movimentar este tipo de valores livremente), que o preço foi conseguido por mútuo acordo, ou seja, não houve qualquer engano e ninguém a impediu de telefonar a outro canalizador. Mas, mesmo assim, o juiz considerou ter bases suficientes para anular o contrato e penalizar o trafulha que estava a abusar da boa-fé da senhora.

Este caso que Sandel relatou passou-se nos Estados Unidos da América. Não sei se lá têm uma ASAE a zelar pela Segurança Económica, mas uma coisa é certa: preocupam-se bem mais com a substância do que com formalismos ocos. Repito, formalismos ocos, porque, como é meridianamente óbvio, o que os restaurantes em causa fazem é arranjar subterfúgios para fugir às regras, o que é visceralmente diferente de cumprir as regras. A ASAE é simplesmente uma palhaçada se não tem instrumentos para lidar com isto. E enquanto as autoridades competentes não lidam com isto — e se aceitam uma sugestão — o meu conselho é muito simples e óbvio: não paguem. Eles que chamem a ASAE ou a polícia e façam queixa.