“Lamentavelmente [Portugal] não satisfez o nosso pedido [de transmissão do caso Manuel Vicente], alegando que não confia na justiça angolana. Nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos esse tipo de tratamento (…).”

João Lourenço, Presidente da República de Angola, 8 de janeiro de 2018 

1 Vamos começar pelo início, para que não subsista qualquer equívoco: os autos do processo do Departamento Central de Investigação e Ação Penal que envolvem Manuel Vicente não deviam ter sido transmitidos a Angola e só o foram após uma vergonhosa pressão política ao vivo, a cores e em alta definição do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro António Costa sobre o poder judicial. Marcelo e Costa cederam de forma pouco consentânea com o estatuto de líderes de um país da União Europeia à chantagem diplomática e económica do Presidente João Lourenço.

É certo que houve uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa em maio de 2018 a ordenar a transmissão dos autos a Angola mas a pressão política (e mediática de muitos ex-políticos que passaram a ter negócios em Luanda) para chegarmos a essa decisão configura o caso mais grave de violação do princípio da separação de poderes desde o 25 de Abril.

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É verdade que as relações económicas e culturais entre Portugal e Angola são muito relevantes — com muita emigração cruzada pelo meio — mas nada, mesmo nada, justifica o que aconteceu. Muito menos quando isso implica colocar Portugal ao nível da Polónia do PiS, da Hungria de Viktor Orban ou até mesmo da Rússia de Putin.

Até a justificação da Relação de Lisboa que serviu para enviar os autos para Luanda não tem qualquer fundamentação legal: em nome da boa administração da Justiça.

Manuel Vicente foi acusado pelo Ministério Público dos crimes de corrupção ativa, fraude fiscal e branqueamento de capitais enquanto presidente da Sonangol, e não como vice-presidente da República de Angola. Mas a PGR de Angola sempre defendeu que a imunidade diplomática se aplicava ao caso porque Vicente foi  n.º 2 do Governo de Angola não se aplica a este caso.

Basta ler os ensaios de Ricardo Sá Fernandes sobre a matéria publicados no Observador (ver aqui e aqui) para perceber que não é assim. Tal como bastaria ler o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (que disse a mesma coisa) mas que não conhecemos porque nunca foi homologado e publicado pelo Governo de António Costa por não se adequar aos seus objetivos políticos.

2 Não nos esqueçamos igualmente que Manuel Vicente foi acusado de, entre outros ilícitos criminais, de corrupção ativa por ter pago, através de terceiros, uma quantia de cerca de 700 mil euros e outras vantagens patrimoniais ao procurador Orlando Figueira para arquivar determinados processos relacionados com a próprio Vicente mas também com a Sonangol.

O caso não é uma invenção. Tanto é assim que os tribunais portugueses deram como provado nas suas diferenças instâncias (ver aqui e aqui) que Figueira recebeu efetivamente aquela quantia, tendo sido condenado a uma pena de prisão efetiva de seis anos e 8 meses por corrupção, branqueamento de capitais e outros crimes — e que está prestes a transitar em julgado.

Para os tribunais portugueses — aquele órgão de soberania que aplica a lei sem olhar à raça, credo ou influência política, económica ou social dos arguidos —, o procurador Orlando Figueira foi corrompido mas o corruptor ativo não pode ser igual sancionado porque essa parte do processo foi enviada para Angola.

3Quem me lê, sabe que nunca segui os elogios quase unânimes dos meus colegas jornalistas e comentadores às habilidades políticas de António Costa. Nunca fui seu fã como primeiro-ministro (PM) — ao contrário dos elogios que podem ser feitos ao seu trabalho como ministro da Justiça e, principalmente, como presidente da Câmara de Lisboa.

Pela simples razão de que Costa vê apenas a ação política enquanto PM como forma tática de conservar o poder — e não como uma transformação da sociedade por via de uma visa reformista das políticas públicas.

Dito isto, é cada vez mais preocupante a atração que António Costa sente pela autocracia e pelos seus métodos — algo só possível de imaginar se nos recordarmos dos tempos negros da governação de José Sócrates em que os métodos eram efetivamente autocráticos.

Veja-se, por exemplo, o argumento da “consciência” que António Costa utilizou para não aceitar a demissão de João Galamba como ministro das Infraestruturas. A “consciência” do PM é totalmente irrelevante quando está em causa a responsabilização mais básica de um membro do Governo (Galamba) por algo que aconteceu no seu próprio gabinete.

Nem vou falar da ativação do Serviço de Informações de Segurança (SIS) para pressionar um cidadão a entregar um computador a meio da noite, basta apenas e só lembrarmos o desprestígio das instituições com as cenas de pancadaria (independentemente de quem tenha a culpa) que membros de gabinete nomeados por João Galamba promoveram no Ministério das Infraestruturas na noite de 26 de abril de 2023.

Ao invocar a “consciência” como um valor político, António Costa agiu como se fosse um líder autocrata porque colocou a sua moral acima da lei, da imagem do Governo e da própria República.

E essa é precisamente a prática que costumamos ver em autocratas, como João Lourenço — e não num primeiro-ministro de um Estado da União Europeia.

Mas há outros exemplo. Veja-se também como António Costa se recusou a responder a perguntas de todos os partidos da oposição no Parlamento sobre o caso da ativação do SIS — a vertente mais perigosa do caso Galamba, como tenho defendido desde o primeiro momento.

É o desrespeito total perante o órgão de soberania (o Parlamento) ao qual o Governo responde e do qual emana — e tudo perante o silêncio e a complacência de Augusto Santos Silva, um presidente da Assembleia da República que age como um líder de uma fação do PS, e não como a segunda figura do Estado.

Veja-se também António Costa decidiu, uma vez mais com o maior desrespeito pelas regras básicas da democracia, enviar primeiro para a comunicação social as respostas às perguntas graves do PSD — e assumindo publicamente que o tinha feito.

Os autocratas também se julgam acima das regras. João Lourenço não diria melhor.

4 Os exemplos são muitos e variados — e só no caso Galamba e no caso SIS. Mas o que me preocupa cada vez mais é a forma como António Costa e o PS construíram uma forma de controlo político sólido das principais instituições do Estado, perante a complacência de outros órgãos de soberania que deveriam ter estado muito mais atentos (como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa), e até da comunicação social.

Veja-se, por exemplo, como António Costa colocou o seu ex-ministro das Finanças como governador do Banco de Portugal. É verdade que várias vozes, nomeadamente em alguns media, alertaram para o perigo da governamentalização de um órgão independente, como é o caso do Banco de Portugal. Mas certo é que o Presidente Marcelo nada fez. E em breve, teremos mais provas de como Mário Centeno é uma espécie de voz do dono — e sem necessidade nenhuma de o ser.

Ou como António Costa meteu no Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações da República Portuguesa a sua ex-ministra da Administração Interna e o ex-secretário de Estado da Justiça. Constança Urbano de Sousa e Mário Belo Morgado provaram de forma clara, ao validarem sem fundamento a ação do SIS no caso Galamba, como é muito perigosa a governamentalização de órgãos do Estado.

Ou veja-se também como António Costa promoveu a substituição de figuras carismáticas e com perfil de liderança, como foi o caso de Joana Marques Vidal na Procuradoria-Geral da República, por personagens que nunca incomodarão o Governo, como é o caso de Lucília Gago.

Os autocratas também preferem figuras passivas para não fazerem sombra à luz natural que emana do líder.

Ou, por último, veja-se como António Costa pressionou o ex-governador Carlos Costa para não retirar a idoneidade a Isabel dos Santos como administradora do banco BIC (agora, Eurobic). E como reagiu, de forma inopinada com o seu famoso SMS em que admitiu que exerceu a pressão por considerar a retirada da idoneidade como “inoportuna”.

Os autocratas também consideram que a aplicação da lei se deve guiar por critérios de oportunidade política.

5 É esta atração perigosa de António Costa por métodos próprios dos autocratas — o que constitui um perigo para um regime democrático como o nosso, muito mais em contexto de maioria absoluta —, que faz com que não fique surpreendido com o convite que o primeiro-ministro fez ao Presidente João Lourenço para ser protagonista das comemorações dos 50 anos do 25 de abril.

É certo que o primeiro-ministro, mal percebeu que o seu gesto não foi bem recebido em Lisboa, emendou a mão, insinuando que a ideia tinha sido do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e que outros chefes de Estado dos países de língua oficial portuguesa serão igualmente convidados.

Não está em causa que o movimento histórico do 25 de abril de 1974, que depôs a ditadura e abriu caminho à instauração da democracia em Portugal, está na origem da descolonização e da independência de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe — além de Timor-Leste, mais tarde.

O que está em causa é que a realpolitik não implica que os nossos representantes verguem perante regimes autocráticos, como é o caso do regime angolano.

O 25 de Abril simboliza para os portugueses a Liberdade e a Democracia. E os regimes políticos que ainda hoje perduram em Angola e Moçambique, por exemplo, não podem ser classificados como democráticos. São, no mínimo, regimes híbridos, para ser simpático.

O 25 de Abril simboliza igualmente a construção de um verdadeiro Estado de Direito em Portugal, em que o princípio da separação de poderes é algo que, após um aprofundamento do regime democrático, podemos dizer que é sólido. Mesmo após toda a pressão política de Marcelo e Costa sobre o caso Manuel Vicente.

Em suma, convidar João Lourenço para ser cabeça de cartaz das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril não respeita o espírito de união que a data deve simbolizar para os portugueses.

6Aliás, o próprio João Lourenço fez questão de demonstrar na última entrevista que deu ao Expresso de como não está à altura desse convite. “Não imagino Angola a ter a ousadia de levar aqui José Sócrates a tribunal, se tivesse cometido um crime em Angola”, afirmou o Presidente angolano. É uma frase que diz tudo sobre a visão que Lourenço tem do princípio da separação de poderes — um valor, repito, essencial em qualquer sistema que se diz democrático.

Ou seja, tal princípio, como já era claro para todos, não existe em Angola. Em termos práticos, o presidente angolano está a dizer que é uma “ousadia” que o poder judicial peça contas aos membros do poder executivo.

Daí que, como acontece em Angola, exista a necessidade de exercer o amplo controlo do poder judicial por parte do poder político. E é por isso que, como acontece com o caso de Manuel Vicente, os processos tenham os chamados ‘vetos de gaveta’ — ficam fechados a sete chaves numa gaveta e nada acontece. Mesmo quando a suposta imunidade a que Vicente teria direito (o que não tem, como já expliquei) terminou em setembro de 2022 — cinco anos após ter deixado de ser vice-presidente de Angola.

7 Regressando à citação de João Lourenço que abre este texto, proferida no auge da pressão política e diplomática do regime angolano sobre Portugal. Temos que ser diretos: havia razões para desconfiar da justiça de Angola por ter um controle político que impede a realização de uma verdadeira justiça. O tempo veio dar razão ao MP. João Lourenço viu isso como um insulto, os democratas portugueses e angolanos só podem ver isso como uma questão factual.

O que interessa se Manuel Vicente corrompeu um procurador português enquanto presidente da Sonangol? O que interessa se Vicente não tinha, como não tem, direito a qualquer espécie de imunidade porque nunca foi visado no processo enquanto vice-presidente de Angola?

O que interessa a João Lourenço é assegurar que os segredos e as informações que Manuel Vicente tem em seu poder sobre o regime angolano, sejam jogados a seu favor no xadrez político angolano.

As declarações de João Lourenço ao Expresso só provam que o seu dito combate à corrupção foi apenas um ajuste de contas político — e não uma verdadeira luta pela Justiça.

A Manuel Vicente, por exemplo, foi dada a oportunidade de voar para o Dubai e ali continuar a fazer a sua vida, desde que entregasse algum património (que não lhe deve fazer grande falta) e ficasse calado.

Em Angola, os cidadãos não são iguais perante a lei. E é também por isso que Angola tem um regime político que tenta fingir que é uma democracia. Quem perde são os angolanos, que são expropriados todos os dias das suas riquezas naturais pelos senhores do poder político que se julgam acima dos cidadãos comuns.

É essa a referência que os portugueses devem seguir quando comemorarem os 50 anos do 25 de Abril?

Texto alterado às 23h50m