Um número limitado de grandes mitos é recorrentemente revisitado para ativar o imaginário social do universo tecnológico. E percebemos bem porquê. Se pensarmos no transumanismo e na imortalidade, na inteligência artificial e na robótica, nos interfaces cérebro-computador e na computação cognitiva, no homem aumentado e nos ciborgues, na realidade virtual e no ciberespaço, na engenharia humana e na bioética, não nos surpreende que se constitua um imaginário social complexo em redor da tecnologia e do caminho para a pós-humanidade e que, nessa trajetória, as alusões a uma mitologia milenar não sejam de todo injustificadas, pois elas contêm muitos arquétipos acerca do comportamento e da compreensão humanos.

A economia simbólica das TIC

A cada tecnologia estão associados uma promessa e um mistério, isto é, um imaginário social que está configurado como se fosse uma linguagem que precisa de ser descodificada. Neste sentido, a transformação digital é erigida como um mito indiscutível, um imperativo categórico para definir as escolhas de sociedade, doravante, a sociedade da informação e do conhecimento. Imaginação e conhecimento, eis pois o caldo de cultura do mistério da transformação digital. Isto quer dizer que o imaginário tecnológico é uma produção simbólica da nossa cultura, agora convertida em cibercultura. Forma-se, portanto, uma verdadeira economia simbólica associada às tecnologias da informação e comunicação, cuja matéria-prima é feita de signos e simbolos, discursos e reputações. Neste sentido, o imaginário social ajuda a socializar as tecnologias, digamos que ajuda, mesmo, a naturalizar as tecnologias.

Um exemplo eloquente desta economia simbólica, quase mitológica, é o complexo da “convergência tecnológica” das NBIC (nanotecnologias, biotecnologia, informática e ciências cognitivas) que na sua sabedoria determinística nos conduzirá ao “admirável mundo novo do transumanismo e pós-humanismo”.

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Este imaginário social tem origens muito diversas e à sua volta configuram-se discursos muito variados e controversos em função do campo dos protagonistas. Desde logo as representações daqueles, “os tecnólogos”, que concebem a inovação em centros de pesquisa fundamental. Depois o governo e a administração pública, com os seus financiamentos e programas de políticas públicas. A seguir os grandes operadores, a comunicação empresarial e os serviços de publicidade e marketing. Depois os meios de comunicação social e os grandes eventos, mas, também, o universo das artes, da moda e da ciência-ficção. Por fim, os próprios utilizadores, em modo de servidão voluntária, vivendo uma espécie de embriaguez tecnológica e digital.

A propósito de representações sociais, acrescente-se que os mitos e os meta-discursos sobre a sociedade da informação e a economia do conhecimento não só têm a sua quota parte de responsabilidade na bolha tecnológica de 2000 como serviram, logo a seguir, para ocultar os grandes movimentos do capitalismo como a financeirização high-tech e a desregulação bancária que nos levaram, em bom rigor, até à grande crise de 2008. O imaginário social da cultura digital e o grande protagonismo dos conglomerados tecnológicos encobriram uma parte substancial das “dores” desta fase do capitalismo que alguns (Boutang, 2007) denominaram de capitalismo cognitivo.

O imaginário social e o campo mitológico da cibercultura

O imaginário social do universo tecnológico tem tanto de ambição como de ambivalência e é esta duplicidade que o associa muitas vezes a diversas referências mitológicas (Musso, 2008). Com efeito, onde está o utilitário está, também, o ficcional, onde está a liberdade está, também, a servidão voluntária, onde está uma grande promessa está, também, uma grande apreensão, onde está o individualismo está, também, uma grande dependência das redes sociais, onde está o paraíso tecnológico está, também, a violação da privacidade. Se revisitarmos os grandes mitos veremos, também, as múltiplas associações que a cibercultura foi forjando para criar um imaginário social mais conforme e conveniente, mas, também, mais constrangedor e, mesmo, mais intimidante. Geralmente, não vivemos histórias inéditas, mas sim velhas histórias com roupagens novas. Senão vejamos.

Quando abrimos a Caixa de Pandora ou esfregamos a Lâmpada de Aladino libertamos os males da humanidade e muitas vezes aprisionamos a esperança. Quando reportamos os mitos de Ícaro e Prometeu invocamos os valores da ambição, da superação e tenacidade, mas, também, a iminência do fracasso e do insucesso. Quando referimos o mito de Gygés de “ver sem ser visto” associamo-lo às câmaras ocultas e aos drones, mas, também, à hipervigilância. Por sua vez, o mito de Babel associa-nos à linguagem e ao saber universais, por exemplo, dos grandes motores de busca e da wikipédia. O mito da ubiquidade recorda-nos a conexão generalizada das redes e plataformas tecnológicas, mas, também, a “adição digital”. O mito da reprodução perfeita está associado à clonagem, mas, também, aos padrões e perfis comportamentais do Big Data. O mito de Golem está associado à criação de seres artificiais, mas, também, aos agentes inteligentes e avatares virtuais. O mito de andrógeno está associado à liberdade de escolher uma identidade de género, mas, também, à manipulação biotecnológica. Outros mitos estão associados aos grandes espaços, ao mercado universal, à automação generalizada, aos universos imensos do ciberespaço e da cibercultura.

Finalmente, as duas faces de Janus, o mito das transições e dos eternos recomeços, transposto para os rostos inquietos da tecnologia e da humanidade.

O que significam estas referências ao universo mitológico? Como não temos tempo nem recuo suficientes para uma busca de sentido, encurtamos caminho e vamos procurar essas respostas na linguagem ficcional e nas suas metáforas, imagens, signos e símbolos. Todavia, importa sublinhá-lo, esta linguagem simbólica é, também, uma grande simplificação ideológica e, na circunstância, uma enorme manipulação tecno-imaginária veiculada pelo simbolismo de Silicon Valley onde pontificam os grandes conglomerados tecnológicos e capitalistas.

O imaginário tecnológico e a modernidade líquida

Num outro registo, do imaginário social da cultura tecnológica e digital faz, também, parte a “modernidade líquida”. Nesta aceção de modernidade a vida é uma categoria líquida onde o processo se sobrepõe à forma. Prestamos, assim, também, uma singela homenagem a Zygmunt Bauman que faleceu em 2017.

Zygmunt Bauman foi um homem do seu tempo e todos os grandes temas de atualidade mereceram a sua atenção que, de resto, está bem refletida em cerca de meia centena de obras publicadas. Bauman é conhecido por ser o filósofo da “modernidade liquida”, uma metáfora para o estado da nossa condição humana: tudo é volátil, efémero, precário, transitório, passageiro, instável, temporário, fluido, enfim, liquido. No plano teórico-filosófico a passagem do conceito de estrutura (sólido) para o conceito de rede ou conexão (líquida) dá bem conta dessa transição. E estas noções liquidas e fluidas têm aplicação em todas as áreas, desde as relações amorosas e familiares até às relações de poder nos campos da economia, da sociedade, da política e, obviamente, da revolução digital. É esta grelha de leitura transversal dos problemas contemporâneos que dá sentido, consistência e densidade aos seus escritos filosóficos e sociológicos e, bem assim, às suas inúmeras intervenções sociais e culturais.

Zygmunt Bauman é, ainda, conhecido por ser um filósofo do pessimismo pós-moderno. Na linha da “modernidade liquida” contam-se vários títulos, entre eles, Vida Liquida, Tempos Líquidos, Violência Líquida, Medo Líquido e a Cultura no Mundo Líquido. Neste “estado da matéria”, a vida não é um projeto, mas, antes, uma série ou coleção de episódios. Tudo o que dávamos por adquirido está definitivamente posto em causa, a começar pela “herança orgânica e comunitária”. Agora, as relações na comunidade dão lugar às conexões na rede. Tudo é descartável. Por isso mesmo, os valores éticos são um traço comum e dão sentido a todo o pensamento de Zygmunt Bauman. No livro a Cegueira Moral pode ler-se: “Uma insensibilidade moral induzida e manipulada torna-se uma compulsão, quase uma segunda natureza, e as dores morais vêm-se desprovidas do seu papel salutar de prevenir, alertar e mobilizar”.

As suas tomadas de posição mais recentes em matéria de cultura digital, redes sociais e movimentos sociais de protesto são, igualmente, reveladoras da sua “modernidade liquida”. Em entrevistas recentes em órgãos de comunicação social e agora trazidas ao conhecimento do grande público pode ler-se:

  • As redes sociais são uma armadilha, tudo parece muito fácil na esfera virtual, mas perdemos a arte das relações sociais e da amizade;
  • O velho limite sagrado entre o horário de trabalho e o tempo pessoal foi ultrapassado, estamos permanentemente disponíveis, esquecemos o tempo para o amor, a amizade e a solidariedade; hoje discute-se, mesmo, o “direito de desligar” fora das horas de trabalho;
  • As comunidades online são um entretenimento barato, porém, é preciso confirmar e validar esse empenhamento na rua, no contacto com as pessoas e nas comunidades reais offline;
  • A política é doméstica e está territorializada, o poder é global e extra-territorial; a democracia doméstica não convence, é pouco efetiva e é arrastada por esta crise do Estado-nação;
  • As comunidades virtuais online também são extra-territoriais e não se identificam com as antigas comunidades reais offline; a cultura conectada é uma bricolage permanente, muitas vezes é uma verdadeira caricatura, o discurso público é retorica pura e o espaço público está muito fragmentado para ser representativo e eficaz;

A filosofia e a sociologia de Zygmunt Bauman privilegiam a vida quotidiana onde a sensibilidade, a empatia e a felicidade são muito mais importantes do que a pureza teórica e metodológica. No seu ecletismo, a sociologia de bauman busca reconstruir todas as camadas da realidade e tornar a sua linguagem acessível a todos os tipos de leitor. Finalmente, Bauman está muito preocupado com a distração e, portanto, com a “economia da atenção” e com o “foco da atenção”. O acesso fácil e rápido ao oceano de informação que a internet e os motores de buscam proporcionam é uma verdadeira armadilha e deve ser tomado com conta peso e medida; perante tantos fragmentos de informação não admira que aconteçam crises de impaciência e muita irritação e esta é outra faceta da modernidade líquida.

Notas Finais

Num futuro próximo, cada vez mais híper-conectado, automatizado e virtualizado, onde ficam os direitos humanos e as relações humanas, isto é, a humanidade? Porque é que investimos tanto em tecnologia, sistemas automáticos e inteligência artificial e tão pouco em relações humanas, sociabilidade e humanidade?

O grande mito NBIC da “convergência tecnológica” parece disposto a provar que o ser humano é pura transição, uma máquina neuronal gigantesca onde o processo prevalece sobre a forma: do ser natural ao ser melhorado, do ser biónico e ao ser pós-humano.

Num universo cada vez mais digital, qual é a ética que vale? A da inteligência artificial e da computação cognitiva ou a ética da humanidade, mesmo já aumentada e melhorada?

E os novos direitos humanos na era digital, quem traça os limites e onde? O direito a permanecer humano não-aumentado, tão simplesmente, ou o direito a permanecer ineficiente e excluído, ou o direito a permanecer desligado fora do horário de trabalho, ou o direito de permanecer invisível face às câmaras de vigilância, ou o direito e o privilégio de trabalhar exclusivamente com humanos?

Na era digital do ciberespaço e da cibercultura, abrir a Caixa de Pandora ou esfregar a Lâmpada de Aladino pode ser uma operação de alto risco. Cuidado, pois, com a armadilha do narcisismo digital. É urgente renovar o princípio da precaução.

Universidade do Algarve